quarta-feira, fevereiro 28, 2007

Carne para alcatrão

Não gosto de conduzir. Podia ser questão de preguiça, inépcia. Uso o automóvel porque e quando não posso deixar de o usar, só. Enquanto passageira e pedestre estive envolvida em meia dúzia de acidentes de viação, todos de pouca ou média gravidade; não faço ideia de se esta experiência é banal ou atípica, sei é que na estrada, a não ser que não haja nada que se mexa num raio de 800 metros, não me sinto segura. Não é a coisa mecânica, é a coisa humana: queria um país de condutores previsíveis, certinhos, chatos. Faltam automobilistas secantes nas nossas estradas. Abundam criativos como o que nesta manhã encontrei a fazer marcha atrás em plena faixa de auto-estrada, entre vento forte, nevoeiro sebastiânico e uma bátega de água. Não há dia em que me sente ao volante sem medo de ser carne para alcatrão.

[foto subtraída à Aba de Heisenberg]

segunda-feira, fevereiro 26, 2007

Os óscares no Amigo do Povo


Melhor filme, melhor realizador, melhor guião adaptado, melhor montagem: The Departed de Martin Scorsese.
Melhor actor: Forest Whitaker em O Último Rei da Escócia.
Melhor guião original e melhor actor secundário: Little Miss Sunshine.
Melhor guarda-roupa: Maria Antonieta.
Melhor edição de som: Cartas de Iwo Jima.

Óscares 2007

Finalmente, Scorsese, um dos maiores cineastas norte-americanos vivos, e Forest Whitaker, um dos meus actores preferidos, ganharam o Óscar. No caso de Whitaker, o Óscar podia ter vindo mais cedo, quer por causa do papel em Bird de Clint Eastwood, quer por um dos muitos magníficos papéis secundários que desempenhou. Para Scorsese, o Óscar tem um sabor imerecido a consolação. The Departed é um dos melhores filmes que realizou nas duas últimas décadas, mas não está ao nível de obras que marcaram uma época como Taxi Driver ou Ranging Bull. Nem está ao nível da obra-prima de Eastwood, Cartas de Iwo Jima. Fica a suspeita que o rival de Scorsese perdeu porque se atreveu a realizar um filme falado em japonês, quase só com actores japoneses, que punha em causa os clichés norte-americanos sobre a II Grande Guerra Mundial no momento em que decorre uma outra guerra, no Iraque. Scorsese, que na sua juventude foi um maverick (um touro sem marca e portanto incontrolado pelo sistema) chega ao Óscar com um remake do primeiro filme de uma trilogia asiática que é um sucesso comercial. Eastwood, que começou no cinema como uma estrela de segunda ordem, mostra-se um autêntico maverick quando já conta mais de setenta anos. Ironias da História do cinema. A minha admiração vai toda para Eastwood. Quanto a Scorsese, dada a sua formação católica, espero que, depois de obter o ídolo dourado, se redima continuando nos trilhos abertos pelo seus filmes maiores.

sábado, fevereiro 24, 2007

República Federal Portuguesa

Se Alberto João Jardim ganhar com uma maioria absoluta reforçada e generosa as eleições que provocou, ficará numa situação duplamente curiosa. Por um lado, será o líder da oposição ao Governo socialista comandado por José Sócrates. Por outro lado, iniciará um processo, com contornos que ainda não são claros mas com consequências de alguma maneira imprevisíveis, e que, certamente, o tornarão no primeiro chefe de um Governo regional com laços cada vez mais reduzidos com a República.
Será que José Sócrates se irá então arrepender pelo facto de ter iniciado, com a revisão da lei das finanças regionais, um processo de federalização da República? E que não se invoque a Constituição. Porque será impossível, em democracia, limitar pela lei aquilo que politicamente Jardim e os madeirenses irão reclamar pelo voto. Sem dramas.

quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Uma rodada de gelados

Suspeito que Robert Baden-Powell soltaria uma daquelas reputadas gargalhadas se soubesse que no dia do seu 150º aniversário se continua a oferecer, em memória, uma rodada de gelados aos alunos de Rose Hill. Cheers, Stephe.

[Foto: 1907]

Poder É Querer

Fui ver O Último Rei da Escócia/The Last King of Scotland, (semi)ficcão decorrida nos anos de Idi Amin Dada à proa do Uganda. Felizmente, a qualidade da obra - romance de Giles Foden transposto para cinema por Kevin MacDonald - poupa-nos a estereótipos, tanto relativos ao recém-ex-colonizado africano, quanto ao recém-ex-colonizador europeu. Ao centro, a braços com o poder, um kakwa e um escocês aproximados por coincidências, empatia e algum passado em comum. No caso de Amin, a força do absoluto mando; no caso de Garrigan, o privilégio da influência. Em Amin lemos admiração, manipulação e ressentimento; em Garrigan, fascínio, desconhecimento e má-consciência. E não são estas, paradoxalmente, características recorrentes nos estereótipos acima apontados? Interpelativo e provocatório. Gostei bastante.

[segmento do cartaz cinematográfico]

quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Cartas de Iwo Jima

Cartas de Iwo Jima é uma obra-prima de Clint Eastwood, cineasta que começou como actor em westerns spagheti e, na fase final da sua carreira, faz de um filme da II Grande Guerra, simultaneamente, um western e um filme de samurais. A busca da «última fronteira» já levou Clint Eastwood à estratosfera e agora coloca-o no pacífico, numa ilha rodeada de mar como uma cidade, um rancho ou um acampamento de colonos pode estar cercado pelo deserto ou por uma planície infinda. A surpreendente variação é que os soldados norte-americanos desempenham agora o papel de «índios» empenhados no último assalto.
Se quisermos encontrar no cinema clássico a construção de um olhar que culmina nas Cartas de Iwo Jima, A desaparecida de John Ford é uma boa aposta. Neste filme, a personagem de John Wayne, partindo com o objectivo de resgatar a sobrinha dos índios ou, no caso de ela se ter passado para «o outro lado», a matar, acaba por aceitá-la como um outro, ou seja, uma índia de origem branca. Eastwood radicaliza este olhar a ponto de ver uma guerra norte-americana na perspectiva dos japoneses. A sua atitude cruza-se com a de Akira Kurosawa, que, após ter realizado, durante a II Grande Guerra, um filme de apologia do esforço bélico japonês, O Mais Belo, passou o resto da sua carreira cinematográfica a reavaliar a História do Japão face aos valores e códigos estéticos do país vencedor. Num dos seus filmes mais famoso, Os Sete Samurais, que deu origem a uma réplica em «filme de cowboys», Os Sete Magníficos, um punhado de samurais defendia uma aldeia de camponeses da pilhagem de um bando de salteadores.
Algo do espírito dos Sete Samurais perpassa pelas Cartas de Iwo Jima. Muito se tem escrito acerca da crítica radical à guerra, o pacifismo que o filme tem, mas não tem somente. No meio do absurdo e do horror, descortina-se a racionalidade da guerra: Kuribayashi acredita valer a pena sacrificar-se se esse sacrifício garantir a segurança das crianças japonesas, nem que seja apenas por mais um dia. A relação do General com o soldado Saigo, um padeiro na vida civil, só aparentemente reproduz a dupla do herói/pícaro que remonta a D. Quixote e Sancho Pança. É certo que Kuribayashi está disposto a lutar até à morte e Saigo quer sobreviver a todo o custo. Porém, a linha do ridículo não se situa entre eles, mas entre ambos e o tenente Ito, um tenente opressivo e suicidário, sem amor à sua vida nem à dos outros.
Clint Eastwood filma os japoneses de Iwo Jima como Homero cantou Ulisses e Heitor, faz do cinema um teatro de sombras vagamente coloridas, esbatidas a ponto de quase não se distinguirem da terra e do mar cinzentos, eco e reflexo de homens que, com a sua carne e ossos, fizeram uma parte da História do século XX.

Uma retirada político-militar enquanto movimento táctico.

A foto regista o avanço de uma coluna militar britânica em direcção ao Iraque.
Agora que o príncipe Harry se prepara para embarcar para o Iraque - ou já embarcou - para ali participar em operações militares, parece que as tropas britânicas se preparam para sair daquele país. Se a promessa de Tony Blair for cumprida, uma chamada de atenção posso aqui deixar. Como no passado mais ou menos recente, ou mais ou menos longínquo, as forças armadas britânicas regressarão ao Iraque. Resta saber quando, como e porquê…

terça-feira, fevereiro 20, 2007

Almanaque do Povo

Blogo Vox: A VoxBlogs vai já no segundo número. Trata-se de uma revista digital dinamizada por João Ferreira Dias, contando com um entusiasmado sortido de colunistas.

Dark, Calm, Positive, Energetic: Escolha a disposição, ou contrarie-a, no Musicovery Channel. Cores, gostos e alinhamentos para todos.

Em época de gracinhas: Eis uma partida projectada e executada por claqueiros verdadeiramente espertos. Que os há.

Não, não é treta: o blogue do Partido Democrata dos Estados Unidos da América chama-se Kicking Ass. Por cá, molemente, os partidos nem têm blogues, quanto mais pica bloguística.

[Capa do Almanaque: Georges Damour, alias Dam, alias, Piwitt.]

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O Estado do Estado Novo era liberal na economia?

Quem leia este texto de Pedro Arroja sobre as causas do crescimento económico português durante o Estado Novo (penso que estará a falar apenas do período que vai de 1950 a 1973), há de ficar a pensar que salazarismo e marcelismo foram uma espécie de liberalismo económico, com Estado mínimo e probo, desburocratizado, cumprindo muito bem algumas das suas tarefas essenciais em áreas como a da justiça. Será que nunca ninguém lhe falou, a Pedro Arroja, do tristemente célebre “condicionamento industrial”?
Se eu fosse liberal nunca diria que o Estado português nos tempos de Oliveira Salazar e Marcello Caetano fomentou o crescimento económico. Diria exactamente o contrário. Afirmaria que a economia cresceu apesar do Estado Novo. É que na economia o Estado Novo protegeu, interferiu e burocratizou. Aliás, nasceu em grande medida com esse objectivo. Justamente quando a depressão económica mundial da década de 1930 exigia Estado e mais Estado na vida económica das nações por esse mundo fora. Terminada a Segunda Guerra Mundial foi uma trabalheira retirar o Estado da economia portuguesa (tarefa que proseegue sem grande êxito nos dias de hoje). Aliás, quando Marcello Caetano chegou a presidente do Conselho – logo ele que tinha sido um dos maiores teóricos do corporativismo português – passou a queixar-se sistematicamente do peso do Estado na economia portuguesa (estão aí as “Conversas em Família” para o recordar), das regulamentações absolutas e absurdas que impusera desde a década de 1920 (ninguém se lembra dos preços tabelados a torto e a direito?) e da devoção que muitos portugueses – pobres, ricos e remediados – tinham pelo Estado e pelas regulamentações que, de igual modo, lhes afagavam a vida. Marcello Caetano quis, entre 1968 e 1974, dar aos portugueses um módico de liberalismo económico. Mas o raio dos portugueses não aceitaram. Parece, aliás, que ainda não aceitam. Portanto, o Estado Novo não foi, nem podia ter sido, um "el dorado" do proto-liberalismo económico português.

segunda-feira, fevereiro 19, 2007

Na Alemanha...

Máfias sim... mas com "qualidade"

Murro na mesa

Hoje dei, literalmente, um murro na mesa (ou no "guichê") no centro de saúde... e resultou! A minha mulher foi atendida quando devia (no turno que terminava às 12h) e não quando um "complô" entre uma "administrativa" e uma "médica" de serviço às urgências desejavam: só depois das 18h. Ainda vale muito a pena ser falcão.

domingo, fevereiro 18, 2007

Black & White?

Excepto para mentes simplistas ou simplórias, todos sabemos que na vida, como na política, nada é a preto e branco. Mas há sempre quem não pense assim e faça questão de o sublinhar. Na entrevista transmitida ontem na "Antena 1" – dada por Ana Gomes a Maria Flor Pedroso – percebemos que, para a deputada socialista no Parlamento Europeu, a vida e a política ou são pretas ou são brancas. Vem isto a propósito, mais uma vez, dos voos da CIA que teriam tocado pistas de países da União Europeia e, portanto, tornado, putativamente, estes países numa de duas coisas: ou cúmplices da Administração Bush; ou vítimas desta. Não ocorre à Sra. deputada que a realidade pode estar, e certamente estará, entre uma destas possibilidades, ou, até, fora delas. Resumindo, é óbvio que à deputada Ana Gomes falta em subtileza aquilo que lhe sobrará, dizem alguns, em coragem.

sexta-feira, fevereiro 16, 2007

Venezuelano Suave


Com Santana Lopes tivémos na política portuguesa (continental) umas espécie de Venezuelano Furioso. Um populista latino-americano descontrolado. Com o seu braço direito, Carmona Rodrigues, temos o direito ao mesmo populismo, à mesma navegação à vista, às mesmas mudanças súbitas, mas com um estilo suave, adormecedor.
O Venezuelano Suave voltou agora a atacar. É normal estando em causa a sua sobrevivência. Desde feita tentou docemente convencer o bom povo lisboeta que é completamente diferente alguém estar acusado de corrupção, ou seja de receber dinheiro privado para ferir o interesse público, do que estar acusado de peculato, ou seja de apropriar-se indevidamente de dinheiro público para seu proveito privado. Realmente é diferente. Mas é menos grave, é menos lesivo do interesse público? Parece evidente que não. Alguém pode continuar a administrar bens públicos acusado destes crimes? Não creio, por muito suavamente que se ponha a questão. Pode um Presidente que vê os seus dois principais colaboradores acusados de tais crimes continuar em funções? Pode, se for um Venezuelano Suave. Carmona só sai se o PSD o forçar por não querer continuar a ser cozinhado em lume brando.
É Carnaval, portanto, em Lisboa. Mas nem é seguro que se acabar a brincadeira, se houver novas eleições, a brincadeira acabará realmente, e haverá quem seja capaz de governar com visão de futuro e enfrentando os interesses instalados. O Carnaval em Lisboa pode estar para durar.
ADENDA - Parece que, no curto prazo pelo menos, terá de ser a oposição a forçar eleições se o quiser. Serão capazes de se unir para essa tarefa tão difícil?

Modernos ou nem tanto


Parece que a Modernidade em Portugal vai durar menos de uma semana. Mais precisamente desde domingo passado até hoje, início da "ponte" de Carnaval. É normal. Sempre fomos melhor a chegar a um sítio do que a ficar lá muito tempo.
Parece que o Carnaval - essa festa tão arcaica, tão medieval, tão católica anticipação da Quarema e da Páscoa - é um "costume enraizado". Parece que nem tudo o que a Santa Madre Igreja enraizou é mau. Parece que o Português Moderno se cansou depressa.
E eu? Em vez de ir desenjoar desta Modernidade pateta (nem chega a ser patética) com um arrozinho de lampreia na aldeia da minha avó, vou ficar a trabalhar que nem um sueco, ou pior ainda, um norte-americano. É a vida. Ou como se diz em moderno: life is a bitch! Bom proveito aos arcaicos e que Deus vos acompanhe!

O desfecho de Little Children


Se ainda não viu e conta ver Little Children, filme candidato a três óscares e que em Portugal se encontra em exibição com o desastroso título de Pecados Íntimos, é melhor ignorar este post. Porque o que vou discutir aqui é o final da história e, mesmo evitando entrar em pormenorizações desnecessárias, tenho de contar parte do enredo para comentá-lo. João Paulo Sousa, que eu costumo ler, faz um juízo negativo do filme partindo da sua conclusão, pois, escreve, «é quando uma narrativa chega ao seu termo que o processo de releitura tem a possibilidade de se iniciar (...) é a partir desse instante que a obra em questão pode começar a ser verdadeiramente conhecida.»
Acontece que, após uma reacção imediata de desconcerto perante o desfecho, a minha releitura do filme foi no sentido exactamente oposto ao de João Paulo Sousa. Para este blogger, o guião remata com uma «deslavada manutenção da ordem, do statu quo, sem ironia ou perversão redentora. Para cúmulo, a voz off, que vai impondo uma leitura da narrativa, ainda se atreve a propor a conciliação das personagens, ao afirmar que todas têm um passado, mas que apenas importa o futuro, e este deve ser começado em qualquer lado.»
Neste filme, a voz off foi um factor de distanciação imediato em relação à narrativa. Como se ela despertasse as ressonâncias de outra voz off, de outro filme sobre a mediocridade e crueldade nas pequenas cidades norte-americanas: Dogville de Lars von Triers. O desfecho, em vez de repor a ordem redutora dos subúrbios norte-americanos, redime, de modo perverso e irónico, duas personagens: o pedófilo em liberdade condicional e o ex-polícia desempregado, obsessivo vigilante dos bons costumes. São estas duas personagens, completamente fora dos padrões de normalidade, que se mostram capazes de começar um outro futuro. Todas as outras se encontram condenadas a repetir a «ordem natural das coisas» até à exaustão. Brad (Patrick Wilson) auto-boicota-se ao seguir a pulsão regressiva de voltar a sentir-se na pele de um adolescente. A Sarah (Kate Winslet) aplica-se o que ela própria diz de madame Bovary: é uma mulher lutando pela sua felicidade. Mas comete o pecado original de fazer depender a sua felicidade de um desejo formado e espoletado sob o olhar de três mulheres resignadas às suas frustrações. A saída está reservada aos feios e anormais, é a ilação a retirar do filme. Ou seja, estamos perante um filme blasfemo.

quinta-feira, fevereiro 15, 2007

, então o pato és tu.

O caso foi o seguinte: a 20 de Janeiro, dia em que aqui publiquei um dos corriqueiros almanaques, deu-se uma coincidência bizarra, coincidência essa que, acrescentada a outras quantas, me fez pela primeira vez ter consciência que, num ou noutro momento, por mais cautelosos e espertos que nos achemos, todos contribuímos para a exasperante cacofonia cibermundista. Já sabia - toda a gente sabe - que os blogues potenciam, formalmente, as mais variadas expressões de espontaneidade e emotividade de quem não vive neste medium programaticamente; só ainda não tinha enfiado o barrete correspondente àquele aforismo instantâneo do Rounders: "se ao fim de meia-hora não sabes quem é o pato, então o pato és tu".
Se não, veja-se. No dito post, as duas últimas rubricas - Na Terra dos Cedros e Readiness is All - falavam de outras tantas mulheres, uma chamada Rute Monteiro, outra Maria Elisa Guimarães. A primeira, ambígua, fazia eco do alegado rapto e uma jornalista portuguesa no Líbano; a segunda, mais explícita, reproduzia notícia da morte de uma blogger brasileira de primeira geração, e dizia-lhe adeus. No caso Rute Monteiro, já esclarecido, fui cúmplice da performance virtual de boa vontade, por achar que as pistas que a ela conduziam (mesmo antes de ter sido convidada a participar, acompanhei o concurso de Ano Novo promovido por Luís Carmelo, ilustrado dia após dia por diferentes versões do Rapto das Sabinas, as quais não deixavam grandes dúvidas quanto ao tema e lançamento da obra) eram suficientemente desenganadoras, e, também, por achar graça à ideia; na segunda, rememorei com sincera tristeza o desaparecimento de uma pessoa que lia há anos e com quem tinha trocado algumas palavras, cumprimentos. Ambas as mulheres geraram polémica de dimensões que nunca me teriam passado pela cabeça. Rute Monteiro, afinal, não existia; Maria Elisa Guimarães, afinal, não tinha deixado de existir. Quanto a Rute Monteiro, pessoa imaginada, pareceu-me exagerada a reacção da comunidade, e o facto de bloggers que conheço e aprecio pelo seu bom humor e senso escreverem com grande desapontamento e indignação, atribuí-o à inadvertida e infeliz coincidência com o bem real caso falado nos media, o da disputa paternal por Esmeralda. Porém, quando me foram dados a conhecer os factos sobre a não-morte de Meg, ou seja, quando o pato da performance virtual fui eu, aí já não achei graça nenhuma.
Em comum, estes dois casos têm apenas o facto de exporem, por voluntário desejo dos seus autores, a forma como a nossa percepção do que é realidade e ficção é, com alguma facilidade, manipulável. E como detestamos a manipulação, quando nos descobrimos manipulados. O caso português deixava pistas de resolução desde o seu início, e visava lançar discussão sobre um tema literariamente tratado em livro a publicar; o caso brasileiro foi, humanamente, muito mais longe e fundo.
Uma pessoa gosta de acreditar que sabe distinguir entre o que é e não é, e por isso move-se com reserva, defensivamente, cepticamente. Cruza informação, valida fontes, blá, blá. Mas depois acontecem destas, e, bem, essa pessoa recolhe-se para pensar melhor.

Um “hurra” pela Coreia Medieval do Norte

Na Dra. Joana Amaral Dias sempre invejei - saudavelmente - a inteligência, o bom senso e a capacidade que tem para falar sobre tudo. Fá-lo continuamente, muito bem preparada, combativa e com uma enorme, mas sempre autêntica, humildade. Ontem, a propósito da solução internacional putativamente encontrada para o problema nuclear criado pela Coreia do Norte e que se arrasta há anos, a Dra. Joana Amaral Dias classifica de "feudal" o regime que vigora no topo setentrional da península coreana. Eu, que ignorava tal coisa, imagino o que será aquele belo país, para além, claro está, da vida quotidiana muito dura que levam os servos da gleba (tudo por causa das fomes, guerras e pestes cíclicas que os atormentam e dizimam). Na Coreia feudal, ou medieval, tirando estes pormenores que a Dra. Joana não ignora, antes pelo contrário, temos então: os castelos, as catedrais, os "torneios", os conventos, o latim medieval, os cavaleiros e “duas” bombas atómicas...
É uma querida a Dra. Joana Amaral Dias ao chamar “feudal” a uma coisa que alguns ignorantes apelidam, superficial e indiscriminadamente, ora de socialista ora de comunista. “Feudal” é muito mais giro e deve recordar-lhe os castelos e as bonequinhas com que brincava na sua saudosa e feliz infância, os filmes e as séries de televisão sobre o Robin dos Bosques e quejandos, além dos contos de encantar lidos antes de ir para a caminha e protagonizados por princesas adormecidas e príncipes encantados. Gritem-se então dois grandes “hurras”. Um pela Coreia Medieval/Feudal do Norte e outro pela Dra. Joana Amaral Dias que já foi uma criança como qualquer um de nós.

quarta-feira, fevereiro 14, 2007

Chapeladas democráticas.

Não quero, sinceramente, ofender a memória de ninguém, mas a “eleição” ontem à noite de Oliveira Salazar como “o pior português de sempre” – ou coisa que o valha – fez-me lembrar as “eleições” presidenciais de 1958. Uma fraude eleitoral de todo o tamanho. Curvo-me respeitosamente perante os seus autores (os da perpetrada ontem, não os da outra).
Já agora devo também dizer que apreciei muito, no dito programa, a forma como foram democraticamente humilhados os putativos apoiantes de Oliveira Salazar caçados à má fila nuns quantos recantos de Lisboa. Só gostava de saber se haverá próximas vítimas e se terão todos as mesmas “inclinações”.

Daniel Oliveira Salazar

O que verdadeiramente importa é o facto de Daniel Oliveira, ao ver escarrapachada na RTP uma opinião diferente da sua sobre o defunto presidente do Conselho – supondo que sobre Oliveira Salazar Daniel Oliveira tem uma opinião digna desse nome –, se apressar a evocar a censura (que designa como "serviço público de televisão") e, portanto, os para ele saudosos princípios e primorosas instituições da Ditadura Militar e do Estado Novo – embora em linguagem pós-moderna. Ao lermos ou ouvirmos Daniel Oliveira “sobre” Oliveira Salazar uma coisa é certa. Sobre o defunto ditador não aprendemos nada. Sobre as grandes linhas do pensamento de Daniel Oliveira ficamos elucidados.

Publicamente

O "novo" Público está aí. Embora bem disfarçado: parece um suplemento de um outro jornal (por exemplo o G2 do Guardian).
É evidentemente um jornal para quem sabe ler... de lado. A ideia de colocar o nome do jornal ao alto será original. Mas por vezes nunca ninguém tentou uma coisa porque ela é evidentemente uma má ideia.

Primeiras impressões. É verdade. Primeiro estranha-se, depois entranha-se? Provavelmente. Por outro lado, o pessoal habitua-se a tudo. Mas ao título na vertical, não sei porquê, duvido um bocadinho.


Falta o mais importante: ver o que substituirá o Mil Folhas. Críticável, melhorável, claro, mas do melhor que tínhamos. Será caso para dizer, sic transit gloria mundi, ou então, estes romanos são loucos.

Espero, no entanto, que tudo isto corra pelo melhor e seja um sinal de vitalidade. Porque faz falta imprensa de qualidade em Portugal. E porque a surgir algo de novo à procura do indispensável sucesso comercial desconfio que será para baixar de nível e não para o alevantar.

terça-feira, fevereiro 13, 2007

Odontocetos

A ciência tem destas coisas. Num dia os cachalotes estão quase extintos no Mar Mediterrâneo. No dia seguinte, e por causa dumas sondas de profundidade, passam a existir umas largas dezenas a umas poucas dezenas de quilómetros da Catania. Vivam, então, os cachalotes sicilianos, caçadores de lulas gigantes a dois mil metros de profundidade.

O El País, o grupo PRISA e o Portugal.

O El País publicou hoje um editorial sobre a vitória do “SIM” no referendo ao aborto ocorrido no passado Domingo aqui no burgo. O texto, que tudo diz sobre o seu autor mas nada sobre Portugal, é, em grande medida, um arrazoado de disparates, de lugares comuns, uma evocação da lenda negra sobre os efeitos nefastos do catolicismo, de ignorância sobre a lei em vigor (que aparece inspirada na espanhola) e, já agora, sobre a substância ideológica do espectro partidário português – nomeadamente ao classificar-se o inócuo CDS/PP como um partido de “ultra-direita.” Isto ao mesmo tempo que os distritos em que ganhou o “SIM” com uma grande margem, como os de Évora, Beja, Setúbal e Faro, são considerados implicitamente como os política e ideologicamente mais avançados de Portugal.
Há já muito tempo que deixei de dar importância à amplíssima gama de periódicos, estações de rádio e de TV detidos pelo grupo PRISA em Espanha e ao qual o El País pertence. O jornalismo de causas é-me indiferente (aprecio-o quando tem qualidade e o jornalismo do grupo PRISA genericamente não tem), mas aborrece-me quando é mau e, já agora, quando quer ser vendido sob a capa da independência e da isenção. O grupo PRISA é hoje, mais do que nunca, e vá-se lá saber como e porque razões, um prolongamento de uma parte do PSOE. É ainda um instrumento mais de oposição deste e do Governo Zapatero ao Partido Popular espanhol, além de um parceiro na estratégia de aproximação à ETA e aos nacionalismos históricos de Espanha. Mas como não são de hoje os favores prestados pelo grupo PRISA ao PSOE, este, imediatamente depois de ter chegado ao poder, ofereceu ao grupo PRISA uma muito desejada licença de televisão em sinal aberto.
De qualquer forma, trago aqui o estilo, e o que me parece ser a subjectividade, a ignorância e os lugares comuns do editorial "linkado" acima, além dum retrato parcial daquilo que politicamente é o grupo PRISA, pelo simples facto de ter o dito grupo comprado não apenas a TVI mas, também, o Rádio Clube Português e outros media que pertenciam, ao menos formalmente, a Pais do Amaral. Se na TVI o impacte político-ideológico da compra ainda não se nota no rumo tomado pela informação, já no Rádio Clube Português os resultados, com a nova grelha posta em marcha há uma ou duas semanas sob o comando do grande líder Luís Osório e sob a batuta matinal de João Adelino Faria, são interessantes. Longe de desprezar a estação, apesar dos percalços diários e dos muitos erros de "casting", de lhe louvar programas e apontamentos, a verdade é que ela tem uma agenda política que não é nem independente nem isenta. É de causas e é de esquerda, estando para o PS e este Governo como a TSF está para o Bloco de Esquerda há vários anos. E isto convém ser dito porque não tenho memória de que em Portugal, e nos últimos trinta anos, o jornalismo político tenha dado dinheiro a quem investe.

O “escarro”.

Mas por que raio é que naquilo que Daniel Oliveira reputa apenas como uma “brincadeira”, não é permitido aos portugueses escarrarem à vontade? E sobretudo, por que razão, e em vez de se limitar a mandar umas “bocas”, Daniel Oliveira não tenta encontrar uma explicação racional para o facto de Salazar, numa “palermice”, e Mário Soares, na tal “brincadeira”, se arriscarem a ser os portugueses mais votados pelos seus concidadãos? Não me digam que é só pelo facto dos nossos concidadãos serem estúpidos ou de a extrema direita lusa ser afinal tão ou mais organizada do que o PCP. Se se confirmar aquela hipótese de resultados finais – que na minha ingenuidade reputo de absurda e me é totalmente indiferente – presumo então que a extrema direita ganhará eleições em Portugal muito antes do Bloco de Esquerda. Nesse caso, eu e o Daniel Oliveira, como grande parte da população portuguesa, não teremos mais do que uma entre duas hipóteses: o exílio ou a clandestinidade… na companhia do eternamente jovem Mário Soares.

segunda-feira, fevereiro 12, 2007

O anacrónico

Um homem que só por volta da queda do Muro de Berlim deixou de ser estalinista, resume-se hoje a um anti-clerical primário. Uma coisa é certa. Vive e viveu sempre fora do seu tempo.

“Top-models”.

Desde 1976, e até ao momento em que António Guterres abandonou a chefia do Governo por causa do “pântano”, a Europa foi o modelo, ou a referência, para os líderes dos dois maiores partidos políticos portugueses. Era a “luz” que iluminava a pátria e mostrava o caminho a percorrer. Com Durão Barroso e Paulo Portas como a “Europa” deixou de estimular, porque demasiado abstracta numas coisas e demasiado prosaica noutras, o “modelo” passou a ser a República da Irlanda. Entretanto, e com Sócrates a mandar, já tivemos vários “modelos”. Primeiro foi a Finlândia, fosse por causa do “choque tecnológico”, fosse por causa do sistema de ensino – devoção que, aliás, Jorge Sampaio também partilhava. Depois foi a vez da Dinamarca por causa da “flexi-segurança”. Agora é a Alemanha, por causa da liberalização do aborto. Como se o sistema nacional de saúde alemão que, por exemplo, tem médicos a mais, se pudesse comparar ao português. De tudo isto o que é que fica? Um enorme delírio. Um delírio com mais de trinta anos.

Almanaque do Povo

Da Praia: Gostei de passar por este local, devotado a granjolas, passados e presentes.

Do Campo: Nunca tinha visto um episódio da Flor, mas depois de ler o cap.4 dos momentos floribella teve mesmo de ser.

Da Cidade: O Corta-Fitas fez anos, mas só agora pude enviar parabéns (shame on me!): um abraço a todos, e saudinha.

Do Espaço: Para quem gosta de ver as coisas por outra perspectiva, aqui fica um link de brincar ao satellitespotting.

Do Tempo: J. Rentes de Carvalho abriu o Tempo Contado, já há algumas semanas.

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Papa Louçã

Já sabíamos que Francisco Louçã era um papá babado. Ontem ficámos a saber que também quer ser Papa. Fico a aguardar comentários a respeito do impacto desta revelação na Separação entre Igreja e Estado.

Quanto às consequências para o Bloco do referendo não auguro nada de bom. Afinal os bloquistas descobriram durante esta campanha os malefícios da demagogia eleitoral. Já imaginaram o impacto desta descoberta nas campanhas do Bloco?

domingo, fevereiro 11, 2007

O que aí vem.

Ganharam as “luzes” e perderam as “trevas”. Mas, e sobretudo, o primeiro-ministro José Sócrates ganhou em toda a linha. Se os contentinhos da esquerda do PS, do PCP e do BE pensam que a vitória do “sim” lhe faz politicamente bem, estão redondamente enganados. Ser-lhes-á agora, e mais do que nunca, muito difícil fazer oposição a este Governo ou influenciar a sua governação em questões substanciais. Mas sempre lhes resta, claro está, andar a morder as canelas ao Governo por causa daquilo que será a incapacidade do Estado para aplicar uma lei que liberalize o aborto. Isto presumindo que a maioria dos activistas do “sim” são gente de bem. Mas mesmo isso será pouco, muito pouco. A esquerda da esquerda, de facto, teve uma vitória de Pirro. O futuro confirmará que esta esquerda da esquerda ganhou no acessório para ser derrotada em toda a linha naquilo que é e será substancial. Amanhã, e se ignorarmos a questão jurídico-política que a elevada abstenção poderá suscitar – mas que eu não vejo como –, o Governo e José Sócrates estarão mais fortes. Valha a verdade que bem precisam.

Trevas e Luzes

Aqui no Dafundo o tempo e o ambiente parecem estar mais para a confirmação do espírito da "Idade das Trevas" do que para um triunfo da "Época das Luzes". Logo à noite saber-se-á quem triunfou. Entretanto vou desfrutando deste ambiente medievo. Por pouco tempo? Espero que não. É que não me esqueço que à vitória do racionalismo das luzes sucederá o triunfo da "revolução" e o "terror".

Pergunta actual e muito pertinente.

Na foto um S. Pedro de Rubens.
Será que as alterações climáticas, ou mais prosaicamente o São Pedro, irão determinar o nível de afluência às urnas em dia de referendo sobre a "despenalização" da "IVG"?

sexta-feira, fevereiro 09, 2007

Aborto: sim, mas

Hesitei em escrever sobre um tema tão delicado e tão extremado. Falta-me tempo. Sobram-me dúvidas. Mas acabo por fazer um declaração de voto para marcar a diferença. Voto sim, mas...

Mas não aceito que se diga que a Igreja Católica, a todos os seus níveis, não podia participar na campanha. Se os senhores bispos não podem falar sobre o aborto, podem falar exactamente sobre o quê? Talvez a imaculada conceição, a pobreza, a guerra no Iraque. E por autorização de quem, do Estado? Isso não violaria a separação? Ficou mais uma vez evidente nesta campanha que havia quem, mais do que defender um ponto de vista, queria calar outro, em nome de um sacrossanto Estado Laico, a qual é bem distinta da Separação e não tem, graças a Deus, qualquer base na prática política portuguesa ou na nossa lei constitucional.

Mas não acho que a Suécia ou os EUA tenham de ser necessariamente um guia neste campo ou noutro qualquer. Afinal nos anos trinta foram eles, juntamente com a Alemanha nazi, os grandes pioneiros da eugenia, face aos protestos vigorosos da “retrógrada” Igreja Católica. Hoje parece consensual que estes "avanços civilizacionais" afinal eram recuos.

Mas tenho respeito e admiração por muita gente no campo do Não. Num país onde as palavras são abundantes porque são de graça, e as acções concretas são raras, há que louvar quem realmente pôs mãos à obra desde há anos para oferecer uma escolha real às pessoas grávidas, dando-lhe mais condições para terem bebés desejados mas difíceis de sustentar.

E, no entanto, voto sim. Não por achar que o aborto é uma coisa boa, uma escolha heróica. Não por questionar os princípios fundamentais da doutrina católica a este respeito. Mas por duas outras razões: uma política, a outra pessoal.

A política de proibição legal do aborto nunca o eliminou. E são as pessoas menos informadas, as menos apoiadas, as menos abonadas que mais recorrem ao aborto clandestino e mais sofrem com ele. Tudo ponderado considero que despenalizar a prática do aborto – e não apenas as mães que o façam – em estabelecimentos de saúde autorizados deverá permitir a todos, e não apenas a alguns como agora sucede, um acesso confidencial (é essa a obrigação dos médicos) a um aconselhamento profissional, incluindo naturalmente os contactos das associações de apoio à gravidez, e, ao fim de alguns dias de reflexão obrigatória, a um aborto seguro na fase mais embrionária possível.
Haverá pessoas que fazem abortos levianamente? Haverá talvez. Mas o que é que isso nos diz sobre a sua preparação para uma maternidade responsável? A adopção ou a institucionalização são opções sempre arriscadas, e mais ainda num país como o nosso, onde as fragilidades desses sistemas que têm vindo a público recentemente. Pelo que se percebe que provoque resistências a muita gente que, no entanto, não se sente preparada para a maternidade. E não há métodos anticoncepcionais completamente seguros, até porque o amor não é exactamente conhecido por ser razoável, e os recomendados pela doutrina da Igreja neste momento são particularmente falíveis.

Deixo para o fim o lado da memória pessoal que é, no entanto, talvez determinante. Ainda há pouco recordei três casos de abortos que terminaram em morte. Dois de pessoas da aldeia da minha avó nos distantes anos oitenta. Mas também bem mais recentemente a de uma jovem menor que morreu depois de um aborto mal improvisado pela mãe enfermeira. Claro que estas pessoas não foram livres de escolher. Estavam muito condicionadas pelo meio. Mas não tinham meios de lhe escapar. A minha esperança é que a despenalização evite situações destas, e acabe até por ser facilitadora do acesso, por exemplo, a associações de apoio a grávidas. A política é muitas vezes o reino do mal menor.

Estou certo? Não sei. Espero, no entanto, que se o não ganhar o PS se deixe de chantagens e melhore a lei existente e sua aplicação na medida do possível. Espero bem que se o sim ganhar se concretizarão na lei as prometidas garantias de aconselhamento, de período de ponderação, de acesso ao máximo de informação a favor e contra o aborto.

Medições


É bom saber que, na vizinha Espanha, um cidadão nigeriano poderá ser ilibado num caso de violação que o tem feito passar um mau bocado. A peritagem ao tamanho e volume do seu pénis, a pedido pelo seu advogado, poderá servir como prova da sua inocência. Será então caso para dizer que há males que vêm por bem. Ou nem isso!

quinta-feira, fevereiro 08, 2007

Ansiedade e decepção nos media portugueses.

A notícia dando conta de que está, como se esperava, bem de saúde a portuguesa que trabalha em Inglaterra na exploração de perus dizimados por causa do aparecimento de um foco de gripe aviária provocada pelo vírus H5N1, parece ter deixado muitos jornalistas e órgãos de informação portugueses muito decepcionados. Perante o tom acabrunhado que acompanha a divulgação desta “não-notícia” e o destaque inusitado dado à crise aviária inglesa nos últimos dias, torna-se cada vez mais evidente que a chegada daquele vírus a Portugal, ou a morte de um português em qualquer parte do mundo vítima da gripe aviária, são as notícias por que mais anseiam muitos daqueles que trabalham nas redacções de jornais, rádios e televisões portuguesas. Perante tamanha miséria nada pretendo acrescentar. Excepto, talvez, que muitos jornalistas parecem possuir cérebros de qualidade idêntica à da ave representada na foto acima.

Um “negócio conveniente”

Num dia em que a Grã-Bretanha está coberta por um manto branco como já há muito não se via, em que grande parte dos EUA está com neve por tudo quanto é sítio. Num dia em que em Lisboa o dia acordou com muita chuva, ao fim da manhã e princípio da tarde o sol brilha, mas em que logo à noite regressarão as nuvens, a chuva e terá início mais uma descida significativa de temperaturas neste Inverno que já vai longo, Al Gore, o ex. vice-presidente norte-americano, veio a Portugal falar daquilo que o politicamente correcto por esse mundo fora se pela por ouvir: as alterações climáticas. Olhando para os cerca de 150 mil euros que a personagem cobrou - e para a verdadeira fortuna que tem cobrado desinteressadamente por esse mundo fora - parece-me cada vez mais que a "verdade inconveniente" que dá título ao documentário que recelebrizou o homem, se transformou num "negócio [muito] conveniente" (e não estou só a falar de dinheiro). Já agora pergunto: o cavalheiro fez a viagem rumo à Lusitânia num barco à vela ou em avião a jacto?

Paz e Liberdade

O debate em Espanha em torno da questão basca, e segundo a discussão ocorrida ontem no programa “59 segundos” da TVE Internacional, parece agora resumir-se ao campo dos que são pela “liberdade” e daqueles advogam a primazia da “paz”. Os “transigentes” ou “apaziguadores” (as expressões são minhas), situados quase todos à esquerda do PP, defendem a paz com os terroristas a qualquer preço (ou, pelo menos, pelo preço que podem pagar e que parece ser muito alto), e consideram que sem ela não haverá liberdade em Espanha. O PP, e todos aqueles que estão próximos das suas posições, colocam a liberdade acima de tudo, temendo que o processo de paz esteja a minar as instituições democráticas e os direitos dos espanhóis conquistados no processo de transição democrático que foi globalmente consensual até que Zapatero chegou à presidência do Governo em Madrid.
Uma coisa é certa, ao velho mas sempre actual dilema entre liberdade e igualdade que divide os sujeitos da luta política e ideológica em Democracia, sucede um outro fruto das circunstâncias únicas em que se vai fazendo o combate político em Espanha.

Sentidos pêsames por Erika Ortiz (1975-2007)

Em circunstâncias que ainda não foram tornadas públicas, Erika Ortiz (na foto acima), irmã da princesa das Asturias, faleceu. Morreu só, no seu apartamento em Madrid. Como o Amigo do Povo é, como o próprio nome indicia, um blogue plebeu (tal como os cônjuges das infantas Cristina e Helena e do príncipe Filipe), aqui deixo os meus sentidos pêsames. Mas fico à espera que sejam divulgadas as causas da sua morte. É que o casamento de Filipe com Letizia, uma ex. jornalista da RTVE, e a consequente vulgarização da instituição monárquica espanhola, impõe que não se coloque um manto de silêncio sobre o trágico acontecimento que comoveu muitos espanhóis e outros devotos da “nova” monarquia espanhola que se conhecem por esse mundo fora.

quarta-feira, fevereiro 07, 2007

Pela fertilidade

Uma das críticas feitas ao projecto de despenalização do aborto até às 10 semanas a referendo é que poderia afectar negativamente a taxa de fertilidade das portuguesas, que já se encontra a níveis muito baixos. Tenho sérias dúvidas acerca da justeza destas críticas, por duas razões: em primeiro lugar, nenhum aborto será autorizado sem que a grávida passe por um gabinete de acompanhamento e aconselhamento onde lhe serão apresentadas alternativas e os apoios que poderá receber caso leve a gravidez até ao fim; em segundo lugar porque a realização de um aborto seguro eliminará as maleitas associadas ao aborto clandestino que podem incapacitar as mulheres para outras gravidezes.
Escrito isto, considero que a baixa fertilidade actual é de facto um problema do nosso país e que deviam ser tomadas medidas para resolvê-lo. Até porque creio que ela resulta, pelo menos em parte, de problemas sócio-económicos. Apresento aqui uma proposta simples, concreta, mas que poderia ter um impacto significativo: baixar o período de carência dos seguros de saúde que prevêem despesas de gravidez, parto, etc. A pertinência do público-alvo desta medida parece-me indiscutível: trata-se de potenciais mães cujos sentimentos de responsabilidade as leva a fazer seguros antes de ficarem grávidas. Acontece que o período de carência deste seguro, por exemplo, na Médis, é de 18 meses. O que significa que terá de mediar um ano e meio entre o momento em que pais responsáveis decidam ter o filho e aquele em que a grávida esteja protegida pelo seguro. A idade em que uma mulher tem o primeiro filho tem tendência para subir, especialmente entre aquelas que gozam de maior escolaridade. A redução significativa do período de carência podia portanto representar mais um filho nos casais que recorrem a este seguro, ou, no mínimo, diminuir os riscos associados à gravidez. Uma mulher com mais de 35 anos dificilmente se pode dar ao luxo de adiar uma gravidez por razões contratuais.
É certo que outros seguros de saúde que protegem a mulher grávida oferecem períodos de carência mais curtos: o da Unibanco é de 300 dias e o da Multicare também. Não tendo feito uma comparação minuciosa de todas estas alternativas, parto do princípio que a vantagem de um menor período de carência é compensada por outros tipos de custos. Se queremos aumentar a taxa de fertilidade em Portugal temos de oferecer melhores condições às mães responsáveis e não contar com as gravidezes indesejadas.

Grandes Portugueses, Grandes Derrotados



Começaram ontem os documentários dos Grandes Portugueses. Por falta de tempo não sei quantos irei ver. Mas estou curioso para ver se os apresentadores levam a questão da defesa do laureado a peito, ou preferem fazer um trabalho menos de juízo e defesa, e mais de interpretação histórica, para mim mais interessante. Uma via media seria insistir sobretudo na questão do impacto destas figuras. Veremos (alguns).

Já a ideia de reunir dez pessoas no domingo para discutir (também e até principalmente) história de Portugal sem incluir um único historiador é um pouco estranha. Mas torna-se cómica quando têm abundado neste programa as lamentações pela falta de conhecimento da história.

Quanto ao casalinho Cunhal-Salazar, de que todos falam, ainda direi mais. Não insultem Álvaro Cunhal. Não o transformem retroactivamente num democrata burguês. Ele resistiu, como outros comunistas, corajosamente ao Estado Novo. Mas resistir a uma ditadura nunca foi prova de querer construir uma democracia. Cunhal queria fazer uma outra ditadura, melhor, do proletariado, comunista. A democracia à ocidental que ele tentou evitar mas acabou por aceitar foi um mal menor e não pode ser tida na conta dos seus méritos.

Oliveira Salazar era um político muito hábil. Mas por muito hábil que fosse precisou da polícia, da prisão arbitrária, da tortura e da censura. Precisou de ser ditador para se aguentar no poder. O que Salazar não precisou foi de criar o atraso português, esse herdou-o. E em certos aspectos bem medíveis – por exemplo a taxa de analfabetismo – deram-se avanços importantes durante o seu regime. (O 25 de Abril não caiu dos céu aos trabalhões: a sociedade tinha mudado muito desde 1928). Todos as pessoas com alguma maturidade sabem que não há santos sem mácula e que até os piores ditadores conseguem fazer umas coisas. O anti-salazarismo primário e ignorante não ajuda, nem a perceber o Estado Novo, nem a combater o fantasma de Salazar, pelo contrário, só o alimenta.
Dois grandes portugueses? Dois grandes derrotados da história. Mário Soares ficou em 12, mas se algum destes dois ganhar, ganham um prémio de consolaçãozinha: um concurso. Soares ganhou onde realmente conta. Foi a sua política - de levar Portugal do império para a Europa e da democracia para a ditadura - que triunfou e não a deles. Aliás, se não tivesse triunfado não havia sequer este concurso como escape para militantes de causas defuntas.
PS - Votar, votar, não voto, prefiro gastar o dinheiro numa boa biografia. Mas por muitas falhas que possa vir a ter o programa, tem pelo menos o mérito de suscitar debate sobre temas interessantes e levar a TV pública a fazer mais documentários.

segunda-feira, fevereiro 05, 2007

Clássicos para o Povo: Justiça Salomónica


Duas prostitutas foram ter com o rei [Salomão]... Uma das mulheres disse: «Meu Senhor, eu e esta mulher moramos na mesma casa. ... Quando acordei de manhã, para dar de mamar ao meu filho, vi que estava morto. Olhei bem e notei que não era o filho que eu tinha dado à luz.» A outra mulher disse: «É mentira! O teu filho é que está morto e o meu é que está vivo». E começaram a discutir diante do rei. Então o rei interveio. ... «Trazei-me uma espada.» E trouxeram ao rei uma espada. O rei disse: «Cortai o menino vivo em duas partes e dai metade a cada uma.» Então a mãe do menino vivo ... suplicou: «Meu senhor, dá-lhe o menino vivo, não o mates.» A outra, porém, dizia: «Não será nem para mim, nem para ti. Dividam o menino ao meio.» Então o rei pronunciou a sentença: «Entregai o menino vivo à primeira mulher. Não o mateis, pois é ela a sua mão.»

I Reis 3, 16-28

Parece que há uns milhares de anos na velha Judeia já havia prostitutas: se não é profissão mais velha do mundo deve andar perto. Parece também que havia quem percebesse que em questões de maternidade o que conta é o superior interesse pela criança, um senso comum que tem sido incomum pelas nossas bandas. O teste foi um bocadinho radical. Mas a sentença é merecedora do estatuto de clássico. Será demasiada ousadia nestes tempos de laicismo galopante pedir aos nossos juízes que leiam uns bocadinhos da Bíblia de vez em quando? (Não precisam de se converter nem nada.)

Lutxana, Barakaldo, Vizcaya.

Uma estação de caminho de ferro localizada nas imediações de Bilbau (Lutxana, município de Barakaldo) foi, esta madrugada, alvo de um ataque terrorista levada a cabo por um grupo a que as autoridades policiais e políticas bascas definem há muito, metafórica e eufemisticamente, como “kale borroka”. Este ataque significa várias coisas mas, sobretudo, que a parada dos grupos “kale borroka” está subir e não se sabe onde parará e se parará. Entretanto, e num comunicado, o governo basco produziu uma declaração patética onde declara que assim não pode ser, os rapazes e raparigas da “kale borroka” têm que saber comportar-se, não foi para isto que foram, criados, que assim a paz nunca mais chega, etc., etc.
Eu sei que os tempos são outros, mas tenho a sensação de que já voltou mais para que o Exército espanhol seja chamado a intervir no País Basco. Só não sei o nome do general que comandará as tropas, como ainda não vislumbro o nome do presidente do Governo espanhol que assinará o decreto que as despachará. Ainda assim, e ainda que por más razões, convém evocar a memória do homem da foto ali acima e as trágicas circunstâncias que o tornaram, durante quarenta anos, protagonista e figura cimeira da vida política espanhola.

Dez semanas e um minuto de gravidez, ou como o tratamento neo-realista do aborto continuará a fazer sentido

Uma mulher de classe média, com uma vida que num determinado momento lhe parece financeiramente estável, engravida. A gravidez foi planeada. Tem um marido – ou companheiro – e um filho. Trabalha, mas não tem um salário elevado. Ronda os 700 euros líquidos por mês. A única pecha na vida financeira do casal é o pagamento da hipoteca da casa que ronda os 650 euros, mas que não tem parado de subir nos último ano. De qualquer modo o marido chega a trazer para casa, mensalmente, mais de 2000 euros.
Quando a gravidez chega às 14 semanas, o marido morre estupidamente num acidente de automóvel. Como se não bastasse, e porque o seu emprego era “precário”, percebe que poderá ficar sem trabalho quando o contrato cessar (quando soube da gravidez, a patroa aconselhara-a, legitimamente, a interromper voluntariamente a gravidez). De repente, chega à conclusão que não pode ter mais um filho. A sua vida e a da sua família alterou-se completamente num abrir e fechar de olhos. Vai ter que interromper voluntariamente a sua gravidez. Como é que faz? Como não tem dinheiro para ir Londres onde a interrupção voluntária da gravidez às 14, 15 ou16 semanas, a pedido da mulher, é completamente legal, decide interromper a sua gravidez em Portugal.
No seu país, onde vota e paga impostos, e apesar do sim ter ganho no referendo de 11 de Fevereiro de 2007, o seu problema não pode ser resolvido senão clandestinamente. Os partidários do sim ao aborto no último referendo ganharam, mas não trataram de resolver o problema do aborto clandestino depois das 10 semanas. Aliás, não apenas porque 10 semanas é um prazo curto, mas porque o Serviço Nacional de Saúde não dá abasto aos pedidos de interrupção voluntária da gravidez até às 10 semanas a pedido da mulher. A nova lei apenas contribuiu para banalizar ainda mais a interrupção voluntária da gravidez, ao mesmo tempo que ajudou a que proliferassem as interrupções voluntárias da gravidez clandestinas antes e depois das 10 semanas.
Com parte das curtas economias que lhe restam a nossa grávida dirige-se a uma clínica em que se fazem interrupções voluntárias da gravidez clandestinamente. Dizem-lhe para não ter medo, não apenas porque o pessoal médico que ali trabalha é competente, mas porque a Polícia Judiciária e o Ministério Público, ilegitimamente pressionados pelo poder político, reduziram bastante, desde que a nova lei foi aprovada, as investigações sobre o crime de “aborto” depois das 10 semanas de gravidez. Mas como só reduziram as suas investigações e não as cancelaram, por coincidência, ou azar, a interrupção voluntária da gravidez ilegal e clandestina que a nossa protagonista decidiu fazer acaba investigada. Como não podia deixar de ser, a nossa ex. grávida acaba julgada e condenada – até por que o mesmo poder político que antes parecia fechar os olhos ao “aborto clandestino” depois das 10 semanas, está agora, e porque se aproximam eleições, disposto a mostrar serviço ao eleitorado de centro-direita que lhe deu a vitória nas últimas legislativas. Os direitos e o bem das mulheres que comoviam o primeiro ministro na campanha para o referendo desapareceram de cena. Ele agora só pensa em ganhar as eleições e prosseguir a sua obra de regeneração de Portugal.
O único filho da nossa protagonista foi, desde a detenção da mãe, internado numa instituição que recolhe menores cujos pais não podem deles cuidar (não tem avós e os tios não quiseram ou não puderam dele cuidar). Mesmo assim, e todos os fins de semana, visita a mãe na cárcere. Dentro de 3 anos poderá voltar a viver com ela. Isto, claro, se a mãe arranjar meios de sustento. Mas certamente, nessa altura, muitos dos partidários do sim no referendo de 11 de Fevereiro de 2007 ajudá-la-ão a preencher os impressos para pedir o rendimento social de inserção. Logo a seguir tudo farão para lhe arranjar um emprego digno, ajudando-a a preencher os impressos do centro emprego e formação profissional da área da sua residência. Pior será se a ex. grávida, e agora ex. presidiária, for viver para debaixo da ponte, com outras ex. presidiárias que abortaram clandestinamente em Portugal a partir das semanas e um minuto de gravidez. Não terá morada fixa e ser-lhe-á mais complicado preencher os impressos de acordo com as exigências dos burocratas.

A esquerda proibicionista do aborto

O Professor Marcelo Rebelo de Sousa sublinhou neste vídeo que a questão do aborto não podia ser considerada a partir das dicotomias de esquerda/direita ou religiosas/ateias. Completamente de acordo. O Professor citou um nome da esquerda portuguesa para ilustrar este ponto de vista. É pouco. Eu acrescento mais duas figuras de esquerda, de projecção internacional, que proibiram o aborto e, infelizmente, têm sido esquecidas neste debate: Estaline e Ceausescu.
Estaline proibiu o aborto em 1936. José Pacheco Pereira, no primeiro volume da biografia de Álvaro Cunhal, sublinhou as contradições que o facto colocou aos comunistas portugueses. Estes defendiam a legalização do aborto em Portugal, onde as mulheres se encontravam sujeitas à exploração capitalista, mas aprovavam a proibição do aborto na União Soviética, essa sociedade ideal onde, como se escrevia no Avante, «ser mamã é uma das grandes aspirações das jovens soviéticas.»
Ceausescu, o líder comunista do Estado oficialmente ateu da Roménia, lançou uma campanha anti-aborto em 1966, no contexto de uma política demográfica destinada a aumentar a população. O aborto era ilegal, mas a punição não bastava, adoptou-se uma políticas de prevenção – as mulheres em idade fértil eram submetidas a inspecções periódicas para detectar eventuais gravidezes – e de mobilização. Os slogans mais utilizados eram: «o feto é propriedade de toda a sociedade» e «Qualquer pessoa que evite ter filhos é um desertor que abandona as leis da continuidade nacional.» Vale a pena ler mais sobre os resultados desta política aqui. E, claro, também vale muito a pena pensar nisto.

domingo, fevereiro 04, 2007

Sim: as minhas razões

No referendo de dia 11 de Fevereiro irei votar Sim. Ponderei muito se devia ou não a escrever um post a explicar as minhas razões. Em primeiro lugar, porque não considero que uma lei deste tipo devesse ser decidida em referendo. Em segundo lugar, porque a blogosfera é um meio hostil à ponderação e ao debate sereno, potenciando todos os demónios despertos pela necessidade da sujeição a voto de decisões implicadas em assuntos fundamentais. Mas o referendo está aí, não faz sentido ignorá-lo, e o blogue é o meio de que disponho para expor o meu ponto de vista.
As minhas convicções éticas são que o aborto só se justifica em situações-limite, excepcionais. A defesa da vida da mãe parece-me a mais óbvia dessas situações. Como o leitor já terá adivinhado, estabeleço uma diferença entre ética e legalidade. Mas, antes de abordar a questão do ponto de vista jurídico, devo examinar a crítica principal dos partidários do Não, que umas vezes assume a forma de acusação e outras de insinuação: será verdade que os comportamentos éticos que poderiam justificar o aborto já se encontram contemplados na actual lei e que seria anti-ético abortar fora dos três casos previstos – perigo para a saúde física e psíquica da mãe, má-formação grave do feto, violação? Será o «aborto a pedido» necessariamente irresponsável, fruto de imaturidade ou de degradação moral?Vejamos o seguinte caso: uma mulher adulta, casada, empregada, mãe de um filho, engravida de um segundo filho. O emprego que tem é precário e sabe que a segunda gravidez o porá em risco. O marido morre subitamente num acidente de automóvel. Ela decide abortar porque considera que essa é a única forma de prover o sustento económico da criança, a qual se encontra a seu cargo. Se me objectarem que o enredo é complicado e improvável, respondo que não deixa de ser possível e até frequente se imaginarmos variações que não beliscam o dilema ético: em vez da morte acidental, divórcio ou separação de um marido que se recusa pagar a pensão (quantas separações e divórcios assim existem em Portugal?); em vez da responsabilidade por uma criança, a responsabilidade por um familiar doente ou idoso (quantos idosos em Portugal dependem da assistência familiar?). Um militante católico poderá objectar que esta mulher devia aceitar o desemprego e pedir ajuda. Mas alguém poderá considerar não ético que esta mulher prefira exercer as suas responsabilidades em vez de se sujeitar à caridade ou solidariedade de instituições privadas ou públicas? Alguém poderá acusá-la de egoísmo se decide abortar para cumprir deveres morais? O seu comportamento pode não ser aprovado pela ética católica, mas o catolicismo não possui o monopólio da ética e se fôssemos por aí Sócrates (o filósofo) ou Séneca não tinham comportamentos éticos. A tradição ética europeia não é apenas cristã, mas também judaica, greco-romana e iluminista, etc.
Do reconhecimento da natureza ética de um comportamento não decorre necessariamente a sua legalidade. Será portanto necessário examinar atentamente a argumentação especificamente jurídica dos defensores do Não. O que já foi bem feito, por exemplo, aqui. A posição do Não é de uma fragilidade surpreendente. Argumenta que, respeitando a mulher, o que está em causa no aborto são os interesses de outra pessoa. Mas, em vez de, consequentemente, reivindicar uma aproximação entre a pena por aborto e a pena por homicídio, afirma que não pretende mandar as mulheres que abortam para a prisão. O que se pretende então? Pelos vistos, que os juízes brinquem aos padres, julgando, dando sermões e, eventualmente, aplicando penas simbólicas às mulheres que abortaram. Como se os juízes não tivessem mais que fazer. E como se o exercício da autoridade eclesiástica não fosse claramente vantajoso: no púlpito, o sacerdote condena a «cultura de morte»; no segredo do confessionário, ouve mulheres atormentadas, procede à «cura das almas» e, talvez, absolve.
Que, tendo em conta a complexidade e gravidade dos dilemas éticos associados ao aborto, a lei preveja a despenalização até às dez semanas só mostra que não estamos perante uma liberalização irresponsável.

Almanaque do Povo

Destaque a quem destaca: compêndio de novidades é, verdadeiramente, o Posto de Escuta.
Blog Novo, Blogger Veterano: A Memória Inventada, vol. 2, de Vasco Barreto.
Mais ad hominem é difícil: Tão queridos, no 31 da Armada, segregado por Pedro Marques Lopes.
Standing by: Esplanação do estado das coisas, segundo Carlos Leone.
Entretanto, nos E.U.A: bloggers e pré-campanha, rumo a 2008, a velocidade e débito difíceis de acompanhar.

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Os efeitos prováveis do H5N1…

Parece que há cerca de mil portugueses a trabalhar na exploração avícola na Grã-Bretanha onde um peru apareceu engripado. Com a contaminação de uma ave naquela exploração com o mais tenebroso vírus da gripe aviária – o célebre H5N1 –, a minha pergunta é: será que aqueles nossos concidadãos vão ter que ser abatidos?

Os retrovisores

Em todas as manifestações há que ter em conta tanto os que saem à rua como os que ficam em casa, sendo que dificilmente qualquer manifestação, por mais justa ou unitária que seja, consegue pôr na rua a totalidade, ou sequer a maioria, daqueles que nessa manifestação podem participar. Em Madrid saiu ontem à rua uma multidão impressionante, superior em número de marchantes àquela realizada há umas semanas na sequência do atentado de Barajas levado a cabo pela ETA. Na de ontem pediu-se o regresso ao pacto antiterrorista e o fim de negociações com os etarras. Na primeira apoiava-se o governo socialista, choravam-se sinceramente as vítimas, mas era evidente que se continuava a apoiar a solução de diálogo (a qualquer preço) reivindicado há muito por Zapatero.
Voltando à manifestação de ontem, e do ponto de vista do seu significado político, poderá concluir-se que uma parte muito importante da opinião pública espanhola rejeita a política de Zapatero ou, de modo mais prosaico, que aqueles que organizaram a mais recente manifestação têm, ao menos momentaneamente, uma melhor capacidade organizativa e de mobilização. Porém, o seu verdadeiro impacte, se o tiver, ainda tardará em ser medido.
Mas não é sobre isto que eu quero falar. O que a mim me importa é o facto de, olhando para as duas manifestações, para as palavras de ordens gritadas, para a estética de ambas – das bandeiras até ao modelo de organização, passando pela movimentação das massas nelas participantes –, e para os respectivos objectivos, perceber-se que a sociedade espanhola está profunda e, talvez, irremediavelmente dividida. Está-o, por incrível que pareça, numa questão sobre a qual se manteve global e aparentemente unida desde que a transição democrática se consumou já lá vão quase trinta anos. As culpas desta divisão serão de todas as forças políticas e devem-se a múltiplos factores, mas convém recordar que foi Zapatero e o seu governo quem decidiu romper com o “consenso democrático” que na questão terrorista amarrava os dois grandes partidos nacionais espanhóis (PSOE e PP). Zapatero fê-lo, certamente, pelas melhores razões e com a maior das boas vontades (embora eu não acredite). No entanto, convém recordar que a última guerra civil espanhola não foi apenas entre “nacionais” e “vermelhos”. Foi também, e muito, uma guerra sobre a melhor forma de organizar o estado espanhol e sobre visões opostas sobre essa mesma organização política e administrativa. Os “nacionais” eram maioritariamente centralistas, ao passo que os “vermelhos” pareciam ser maioritariamente favoráveis à transformação de Espanha numa realidade política federal ou confederal, hipótese que, por exemplo, assustava tanto ou mais as autoridades portuguesas do que a possibilidade do triunfo da revolução a la bolchevique no nosso único e imprevisível vizinho. Sucede que a guerra de 1936-1939 em Espanha não foi a única em que a questão da estrutura do estado espanhol esteve em jogo. Quem não se lembra da guerra de sucessão espanhola iniciada em 1701, concluída treze anos mais tarde e na qual toda a Europa, e também a monarquia lusa, acabariam por se envolver directamente?Eu sei que a história não se repete. Mas quem olha para o estado da Espanha hoje não pode nem deve deixar de olhar mais para trás. É como ir ao volante. Olhar em frente, mas sempre atento aos retrovisores, não vá alguém surpreender-nos irremediavelmente numa ultrapassagem mal feita. O perigo, a maior parte das vezes, vem atrás, vem de trás.

quinta-feira, fevereiro 01, 2007

O futuro é uma ficção séria


Em 2006 li três romances de ficção científica de escritores que se afirmaram fora deste género literário, como «autores sérios»: Dias Exemplares, de Michael Cunnhingham; Nunca me Deixes, de Kazuo Ishiguro e A Possibilidade de uma Ilha, de Michel Houellebecq. Tanto o norte-americano como o britânico de origem japonesa e o francês recorrem ao romance para pensar as condições de uma pós-humanidade definida pelas transformações bio-tecnológicas. Dos três romances o meu preferido é a obra-prima de Kazuo Ishiguro, Nunca me Deixes, um título que merece um lugar entre os melhores publicados em Portugal no ano passado.
Espero que esta escolha não seja entendida como um menosprezo pelo controverso Houellebecq, do qual ainda não tinha lido nenhum livro. À medida que me embrenhava na narrativa tive de me ir desfazendo de ideias-feitas e ver além das máscaras do narrador: a do provocador que mina o texto com piadas «politicamente incorrectas»; a do «intelectual francês» que expõe uma «visão do mundo» alegadamente inspirada em Schoppenhauer com umas pitadas de Jean-Paul Sartre – o homem como «paixão infeliz», etc. Por detrás das máscaras, descobri um moralista céptico e pessimista que usa o cinismo para denunciar as ilusões, a «má-fé» e a hipocrisia da contemporaneidade, as quais não passam da enésima variação da estupidez e crueldade humanas. Sei que encontrar um moralista disfarçado de porco é uma tentação fácil. Mas é o próprio Houellebecq que escancara as portas a esta interpretação quando escreve: «Expliquei-lhe, esvaziando rapidamente a minha tequilla gelada que construíra toda a minha carreira e a minha fortuna explorando comercialmente baixos instintos, a absurda atracção do Ocidente pelo cinismo e pelo mal, e que [me] sentia, portanto, particularmente bem colocado para afirmar que, entre todos os comerciantes do mal, Larry Clark era um dos mais comuns, dos mais medíocres, simplesmente por tomar sem pudor o partido do jovens contra os velhos, por todos os seus filmes não terem outro objectivo para além de incitar os filhos a comportar-se para com os pais sem a menor humanidade, o menor dó, e por isso não ter nada de novo nem de original (...) tratava-se, portanto, de um refluxo brutal, típico da modernidade, para um estádio anterior a toda a civilização, pois toda a civilização podia ser avaliada em função do destino reservado aos mais fracos, àqueles que já não eram produtivos nem desejados.» Resta acrescentar que esta digressão de Houellebecq, se esclarece o seu ponto de vista, também não prima pela originalidade ou pela coerência. Até porque se lhe parece insuportável «tomar o partido dos jovens contra os velhos», já não tem repugnância em tomar o partido dos artistas contra, por exemplo, os camionistas, aos quais atribui as maiores vilanias.
Toda a ficção é construída a partir de uma imagem de Schoppenhauer: «a existência humana assemelha-se a uma representação teatral que, iniciada por actores vivos, terminasse com autómatos vestidos com os mesmos trajes». O actor principal é o humorista Daniel, que assiste à fundação de uma nova religião profana, a dos eloimitas, a qual recorre à clonagem para cumprir a promessa da maior parte das religiões antigas: a eternidade. Os «autómatos» são os clones Daniel24 e Daniel25 os quais, séculos depois, vão comentando o relato de vida do seu antepassado humano. Ao contrário do que Nietzsche apregoava, à morte de Deus e do Homem não se segue o aparecimento de um Super-Homem, mas de um sub-homem, com menos necessidades físicas, capaz de sobreviver quase sem se alimentar e sem conviver, sem sexo e sem humor. Resta a estes sub-homens e sub-mulheres uma sombra de desejo humano, a aspiração à «possibilidade de uma ilha» que seria encontrar o amor, ou pelo menos, uma relação autêntica, próxima, com os seus semelhantes.
Houellebecq, Michel, A Possibilidade de uma Ilha, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 2006