terça-feira, fevereiro 28, 2006

Rever "O Leopardo"



Este fim de semana revi "O Leopardo", de Luchino Visconti (Nimas, Lisboa), mas, pela primeira vez, no cinema. Ainda há pouco tempo vira, na Cinemateca, "E Tudo O Vento Levou" e os dois épicos sobre o desaparecimento de mundos "aristocráticos" têm semelhanças interessantes. Passam-se exactamente na mesma época (primeira metade dos anos 1860) e deixam no espectador saudade pelo ser e pelos modos de alguns personagens representativos do melhor daqueles mundos "engolidos" pelos acontecimentos. Uma diferença substancial - e que se calhar diz muito da América - é que Scarlett O'Hara não desiste perante a adversidade e sobrevive (na realidade, até prospera) na nova era; já o príncipe de Salina, intérprete da fatalidade siciliana, prefere sobreviver por interposta pessoa (o sobrinho que se coloca bem no novo regime) e "suicidar-se" (pode não parecer escolha dele, mas é: a recusa de um lugar no Senado e os motivos que para isso apresenta tornam-no responsável por esse desfecho). O filme tem cenas inesquecíveis: a entrada da família de Salina na terra e na igreja ou o baile final, no qual o Leopardo tem o seu último momento de "glória" antes de deixar para sempre a cena, quando a noiva do sobrinho cede ainda ao fascínio do príncipe e apaga por breves momentos a vantagem da juventude do noivo. Mas nada volta a ser como antes e o orgulho cede à vida.

Notícias da Dinamarca e outras paragens


Vale a pena dar uma vista de olhos ao registo escrito deste debate na Brookings Institution em Washington a respeito da polémica das caricaturas (apesar do inglês sofrível).

Primeiro dado interessante. Ninguém parece ter reparada que Fleming Rose o editor dinamarquês do Jyllands-Posten, convidado para participar na discussão neste think-tank de centro esquerda, era um perigoso porta-voz de extrema-direita. Devo confessar que eu próprio, a avaliar pelo seu discurso – nomeadamente a preocupação com a integração dos imigrantes muçulmanos, ou as referências ao Partido Popular dinamarquês – tive dificuldade em detectar indícios suspeitos. Talvez esteja a disfarçar.

Revelador que os editores do The Washington Post, do Die Zeit e do Der Spiegel tenham sido mais críticos da decisão de publicar as caricaturas, embora admitindo o interesse do debate gerado depois, do que Ammar Abdulhamid o muçulmano moderado presente. (Ou seja, não fanático, que não quer impor pela força o seu entendimento do Islão a outros muçulmanos e menos ainda aos não-muçulmanos). Este liberal sírio viu nelas um desafio aos muçulmanos para abrirem a sua mente e se deixarem de intolerâncias. Considera evidente que as manifestações violentas foram toleradas e até animadas pelos regimes autoritários do Médio Oriente. Dá exemplos. A publicação das caricaturas há meses num dos principais diários egípcios não provocou qualquer reacção. Em Damasco, o centro cultural dinamarquês que fica no coração da cidade nunca foi visado por qualquer indignação espontânea. Os regimes, segundo Abdulhamid, estão a querer apaziguar os grupos religiosos radicais, e também a usá-los para assustar os defensores da liberalização no Ocidente e no Oriente.
Abdulhamid sublinha ainda que o que está em jogo é também uma luta pelo controlo das comunidades islâmicas na Europa. E que é essencial retirar força e legitimidade aos que querem fazer delas guetos fundamentalistas e assustar o resto da sociedade por forma a tolerar zonas de não-direito no seu seio. Nisto, como em tudo, o essencial é garantir o mais possível a liberdade de escolha de estilos de vida e de crenças. Ele é optimista e considera que a crise levou a que os muçulmanos radicais na Europa ficassem mais isolados.

Uma última informação relevante para quem exibe grande preocupação com questões de coerência satírica. Aparentemente o mesmo caricaturista que desenhou Maomé com uma bomba na cabeça, tinha antes e no mesmo jornal de extrema-direita publicado o desenho de uma bomba com a estrela de David alusiva à ocupação israelita da Palestina, e um Cristo crucificado com notas de dólar a decorar a Paixão. Mau gosto? Mas pelo menos mau gosto anticlerical consistente. Realmente estes jornais de extrema-direita dinamarqueses são um pouco estranhos.

domingo, fevereiro 26, 2006

O desastre iraquiano


Embora tenha estado, desde o início, contra a intervenção norte-americana no Iraque, a situação actual, que Vasco Pulido Valente descreve aqui, supera as minhas piores expectativas. Explico-me: que uma das motivações do ataque fosse económica – o domínio de importantes campos petrolíferos – não invalidava automaticamente os argumentos anunciados pela administração Bush. Esta perspectiva resulta de uma posição de princípio. Mesmo que me provassem que a entrada dos Estados Unidos na II Grande Guerra foi determinada por razões económicas, eu continuaria a achar que tinham sido atingidos outros objectivos pelos quais valia a pena lutar: o derrube do nazismo com o encerramento de campos de concentração e o fim de políticas de extermínio; a salvaguarda da democracia representativa na Europa Ocidental.
A invasão do Iraque, além de ter sido motivada pelo controlo de fontes de petróleo, foi justificada com três argumentos que mereciam ser analisados em si mesmos: (1) a destruição de armas de destruição maciça que Saddam Hussein mantinha escondidas com as piores intenções; (2) o derrube de um ditador que recorria a métodos de tortura; (3) o desencadeamento de um «dominó democrático» que traria paz ao Médio Oriente. O primeiro argumento era fraco, pois, mesmo que Saddam Hussein tivesse as armas de destruição maciça, nada provava que as tencionava usar contra qualquer outro país e muito menos contra os Estados Unidos e os seus aliados. Provou-se que Saddam não possuía quaisquer armas de destruição maciça.
O segundo argumento cheirava a hipocrisia, pois os Estados Unidos apoiaram ou apoiam outras ditaduras que não se distinguem na defesa dos direitos humanos. O cheiro tornou-se sufocante quando as imagens de tortura nas prisões de Abu Ghraib circularam pelo mundo e após as violências dos militares britânicos. A pretensa lição de superioridade moral do Ocidente tornou-se arma de arremesso de fundamentalistas islâmicos. Segundo declarações atribuídas a Osama Bin Laden, as forças norte-americanas e iraquianas usam agora as mesmas tácticas «bárbaras» de Saddam Hussein.
Quanto ao dominó «democrático», não só não se verificou, como os fundamentalistas islâmicos foram eleitos nas democracias rudimentares do Médio Oriente: o Hamas na Autoridade Palestiniana e Ahmadinejad no Irão.
A violência desencadeada após a destruição da mesquita de Samarra lança uma nova luz sobre o descalabro iraquiano. Estamos perante um desastre, não só face às justificações da intervenção militar norte-americana, mas perante a própria «aquisição civilizacional» do regime de Saddam Hussein: um Estado laico que garantia a ordem pública e a paz religiosa.

sábado, fevereiro 25, 2006

Almanaque do Povo

N. B. Selecta semanal desprovida de intenções ocultas ou pretensões normativas. Aceitamos sugestões, claro.

Blogue em boa hora reactivado: Rua da Judiaria, de Nuno Guerreiro. O adjectivo que melhor se lhe aplica é substantivo.

Afirmação blogosférica a propósito da qual se ouviu um silêncio mortuário: "O mundo do trabalho, a não ser em determinadas funções profissionais do jornalismo ou da academia, ou nalguns blogues de mulheres, com o trabalho feminino doméstico, praticamente não aparece na blogosfera. Isso tem a ver muito com a composição social da blogosfera, traduzida também no mundo simbólico dos autores de blogues. É como no cinema, parece que ninguém trabalha [bold meu]." cf. José Pacheco Pereira, in Abrupto.

Blogue que desconhecíamos e ao qual voltaremos com frequência: Escrita Em Dia, alias Blogda-se, de Carlos Narciso. Há lá muito mais, mas para quem só visita novos blogues iscado por tiradas provocadoras, aqui fica uma: "Ah!, aquela sensação de lavar o rabo com água gaseificada…".

[Foto: BND]

Etiquetas:

Povo Parabólico, Cap. 1 - Os Influenziáveis


[faça-você-mesmo, com Strip Generator]

sexta-feira, fevereiro 24, 2006

A Trapalhada do Choque das Civilizações


Digam-me de que forma se explica o conceito de choque de civilizações, em versão "popular" ou "académica", olhando para a guerra civil iraquiana envolvendo sunitas e shiitas (todos pertencentes à chamada civilização islâmica). É que nem sequer é a primeira. E certamente não será a última!

Os gauleses e a pandemia


Não sei se alguém já o disse mas se há povo que assite em pânico ao avanço da gripe das aves é o francês. Salvar-se-ão os imigrantes a quem ainda não foi dada nacionalidade gaulesa.

Eu, eu e só eu!


Como sublinhou Vasco Pulido Valente algures, o único objectivo da corrida de Manuel Alegre a Belém era ser "segundo". Ficar à frente de Mário Soares para alimentar o seu orgulho, o seu imenso orgulho. E claro, para ajustar contas com Soares e com o PS. Ontem foi a SIC Notícias dar uma entrevista. O que é que disse? Fez queixinhas e falou muito bem da sua altíssima figura. E viu-se aflito para citar Churchill. Mais um Narciso na vida política portuguesa. Só que este é talvez o mais irrelevante dos últimos 50 anos.

A arca perdida em Munich

A crítica de Nuno Ramos de Almeida à inverosimilhança do enredo de Munique, aqui, é um bom ponto de partida para colocar o filme no devido lugar. Não julgo que faça sentido ver esta película de um modo muito diferente das outras de Spielberg, a partir de uma falsa dicotomia entre obras «realistas» e «de fantasia», «de entretenimento» e «sérias». Para ver Munique, como para ver O Tubarão, ET, Os Salteadores da Arca Perdida, ou a Guerra dos Mundos, o espectador deve «suspender a descrença». Porém, não estamos apenas perante mais um filme de Hollywood. O enredo faz eco de histórias muito mais antigas. Como em as Mil e uma Noites, estamos perante uma narrativa de sobrevivência. Como na Bíblia, as personagens expulsas de um lugar de harmonia mítica – o paraíso – lutam pela Terra Prometida e debatem-se com problemas éticos.
Este é um filme de autor, com vasos comunicantes com outros filmes de Spielberg. O terror e a luta pelo território faz-nos pensar em A Guerra dos Mundos, mas o ambiente psicológico é familiar a O Tubarão, principalmente na espiral fóbica – os caçadores do tubarão viam-se reduzidos a um pequeno barco mantendo-se com dificuldade à tona de um mar donde, a qualquer momento, podia surgir o predador. O duro Avner partilha com o ET a busca de uma casa/«home». A demanda da Arca Perdida era motivada pela posse de uma arma capaz de destruir os inimigos e a história saldava-se pela destruição dos nazis pelos espíritos saídos da Arca.
A «suspensão da descrença» pode ser entendida num duplo sentido, pois do que se trata em Munique é também de reflectir sobre as crenças e o sentido do judaísmo. O conflito israelo-palestino é abordado por um judeu norte-americano que, em filmes anteriores, nomeadamente A Guerra dos Mundos, como já escrevi aqui, tende a identificar o messianismo judaico com a mitologia norte-americana. Ao aproximar-se do desfecho, o narrador insinua um distanciamento em relação ao ponto de vista israelita: a Terra Prometida não seria necessariamente Israel, mas os Estados Unidos. Israel, encarada no século XX como um abrigo de último recurso para judeus de todo o mundo, tornou-se fonte de terror. A personagem busca refúgio em Nova Iorque. Mas o plano das torres do World Trader Center expõe a continuidade entre os conflitos do velho e do novo mundo. O judaísmo teria de ser outra concepção, talvez próxima da de Emmannuel Levinas, que afirma o primado da ética, ao escrever: «Faz obra de justiça – a rectidão do frente a frente – para que se produza a abertura que leva a Deus». Julgo ser esta a perspectiva do narrador. O Luís já sublinhou aqui a importância do episódio em que Avner convida o agente da Mossad para ir a sua casa e partilhar o pão. O outro recusa. Percebe-se: quem é capaz de partilhar o pão com um homem de um país diferente estaria disponível para dividir a terra com estrangeiros.

quinta-feira, fevereiro 23, 2006

Lá na terra

© Duarte Belo

"We are nearly all descended from people who, only a few genertions back, worked on the land. The countryside is our final link with them, and with a past wich seems from here to have been more ordered and possessed of deeper certainties."
Ian McEwan [Prefácio], Town and Country,Vintage/Random House, 1999.

Em Novembro de 1995, Roger Scruton convidou Paul Hirst, Anthony Barnett, Bob Grant e Sophie Jeffreys a fundar Town and Country, um fórum mensal composto por pessoas de diferentes sensibilidades políticas, que em comum tinham o objectivo de discutir e projectar o futuro do espaço rural. Numa década em que o arroteamento de áreas protegidas e a expansão imobiliária ameaçavam esse espaço, Town and Country significou a ampliação do seu debate público, até então cativo de meios estritamente técnicos. Lembrei-me dele a propósito do que tão lucidamente aqui disse Rui Ângelo Araújo. Apesar de a nossa circunstância ser totalmente diferente da dos britânicos da década de noventa, também precisamos de decidir o que fazer lá na terra, no interior, onde a população é escassa e dispersa. Necessariamente, com base numa discussão alargada, multidisciplinar e não-sectária, que a predisposição social para a mudança é, de momento, inexistente. A resistência fundamental assenta num dominante e ancestralíssimo apego ao chão herdado dos pais. Vender um lameiro, permutar uma courela, ou aceitar de boa vontade a expropriação de uns metros quadrados para benefício público ainda é coisa inominável em bastante Portugal. Muito por legalizar, mato por todo lado, filhos, netos e bisnetos sem saber estremas do que quer que seja. Não vai ser fácil.

quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Irving & Hitler: limites na expressão, limites na interpretação


O João Miranda é uma mente sistemática devotada à clareza conceptual e doutrinária. Isso leva-o a abordar temas complicados de ângulos pouco populares, o que é sempre interessante. Para ele é evidente que, ao contrário do que refere Vasco Pulido Valente, a salvaguarda da liberdade de expressão se aplica ao caso do duvidoso David Irving. O facto de ele ser ou não um bom ou mau historiador do III Reich é uma questão de opinião. Por isso não pode, ou não deve, num entendimento liberal, ser julgado ou condenado.
Este não é o primeiro julgamento de Irving. Ele perdeu um caso cível na liberal Inglaterra, que ajuda a mostrar que é perfeitamente possível concluir que ele é um falsificador da história. Não se trata de uma questão de opinião, como o tribunal austríaco mais uma vez confirmou. O principal perito usado contra Irving foi Richard J. Evans, um dos mais laboriosos historiadores da Alemanha nazi, que explica como desmascarou a fraude de Irving no livro Lying About Hitler.
Aliás, a história tem uma, talvez não evidente, proximidade com os tribunais. Trata-se, num caso como noutro, de arrolar testemunhos, registar factos, cruzar tudo isso por forma a criar um todo minimamente coerente pelo menos em relação a determinados aspectos centrais do que se passou. Umas vezes consegue-se uma imagem mais nítida da realidade. Noutras as coisas são mais nublosas. Nunca é um exercício fácil. Daí a importância da revisão, ou do recurso no caso dos tribunais. Os factos nunca falam por si. Por isso são necessários profissionais. Mas entre reconhecer que há zonas de dúvida, algo que todo o bom historiador aprende a fazer sem problemas, e dizer que vale tudo vai uma grande distância. E vai uma distância ainda maior entre esta falácia do cinzento universal e a deliberada distorção ou supressão de factos documentados em nome de uma verdade alternativa desonesta.
Irving falsificou deliberadamente os factos por ser um racista e um filo-nazi. Não se pode assumir a pose de historiador da Alemanha que denunciar a «tese» do genocídio nazi dos judeus, para depois ignorar ou amputar partes essenciais dos documentos em que assentavam os argumentos que ele atacava. A morte de perto de 6 milhões de judeus – dos quais cerca de 100.000 só no gigantesco campo de trabalho e de extermínio de Auschwitz-Birkenau – é um dos factos mais exaustivamente documentados da história humana, apesar dos esforços para apagar os seus traços. Pode-se discutir muita coisa mas não isto. Não de boa fé. Ora a falsificação deliberada e a burla são crimes. Nem é preciso explicar porquê, mas é por boas e liberais razões. Misturar esta questão, como alguns fazem, com uma longa tradição de caricaturas deliberada e reconhecimente satíricas é não quer perceber o que está em jogo. Será a prisão a pena mais adequada para Irving? Penso que não. Ele enfrentou a bancarrota a seguir perder o processo em Inglaterra. Essa foi sem dúvida uma punição exemplar para quem tinha feito uma pequena fortuna a vender livros que apagavam a desgraça alheia.

terça-feira, fevereiro 21, 2006

A Matriz

Segundo a UNESCO, existem seis milhares de línguas no nosso planeta. Mercê de um tempo em que o isolamento físico ou comunicacional das comunidades humanas é excepcional, metade dessa cifra enfrenta a extinção. Sim, necessitamos de uma língua global, da língua da rede. Mas há uma língua primeira, a que estrutura a nossa cognição, condiciona a percepção da realidade, permite o relacionamento com o outro; esse património que os mais próximos nos transmitem alimenta-nos, torna-se nosso. Molda-nos. É em cada sotaque, dialecto e regionalismo dessa matriz que realmente estamos.

[Registos sonoros da dita, aqui.]

segunda-feira, fevereiro 20, 2006

Época de caça à blogosfera?


Andrew Sullivan comenta: the blogosphere doom-mongers and critics are gaining traction. Não sei se estaria (também) a pensar em Pacheco Pereira e neste exercício de sociologia cultural aplicado à crítica da blogosfera (a que talvez volte depois). Mas refere dois textos. O mais interessante dos quais é este, publicado na revista do Financial Times e intitulado provocadoramente «Time for the last post?». Ao contrário de JPP não me parece que o texto seja um ataque violento e simplista aos blogues.

Curiosamente JPP usa a blogosfera para a criticar (como antes fazia com a imprensa). Não menos interessantemente o nosso amigo Trevor do FT cria um blogue para continuar a debater o assunto do futuro da blogosfera: quem quiser pode lá ir dizer de sua justiça (como eu fiz). E, last but not least, o magnífico Andrew Sullivan é um bom exemplo daquilo que o artigo do FT apelida de profissionalização da blogosfera, da sua absorção parcial pelos meios de comunicação tradicional - neste caso, o dinossáurio que é a Time Warner. Nem por isso, porém, Sullivan deixou de ser um blogger para passar a comentador impresso. Nada disto me parece mal. Mas mostra que as coisas não são tão simples como podem parecer.

Os blogues têm evidentes vantagens em termos de facilidade de publicação e de permitirem o debate ou a crítica instantânea. Não vejo por que é que desapareceriam. Mas também não os vejo a acabar com a imprensa profissional. A tendência na história dos media é para a multiplicação dos meios não para a sua substituição. A maturidade da blogosfera medir-se-á em parte pelo ultrapassar da versão heróica dos blogues como libertadores dos povos da velha e má imprensa, e pelo surgimento de uma visão crítica – nem apocalíptica, nem conformada – desta nova realidade.

domingo, fevereiro 19, 2006

A democracia representativa em crise


A crise da democracia representativa encontra-se na ordem do dia. Vasco Pulido Valente já colocou em O espectro, aqui, o seu texto sobre a vulnerabilidade do PSD à «chuva». José Pacheco Pereira tem escrito no Público e no Abrupto uma série de textos sobre a «lenta dissolução dos partidos». Por exemplo, este. Vital Moreira escreveu no mesmo jornal, e não chegou a arquivar na Aba da Causa, um texto em que chama a atenção para o facto de, nas últimas eleições, setenta por cento do eleitorado ter votado em candidatos que se distanciaram dos respectivos partidos – Cavaco e Alegre. Como é hábito seu não se fica pelo diagnóstico e sugere que a realização de eleições primárias, à semelhança do que acontece nos Estados Unidos, podia ter evitado a divisão dos militantes socialistas entre dois candidatos.
Registo com alguma surpresa a calmia crítica que se tem seguido à tempestade em torno do episódio da sucessão de Durão Barroso por Pedro Santana Lopes no lugar de Primeiro-Ministro. Continuo a ver neste enredo da nossa história política recente a expressão máxima da crise da democracia representativa. Acontece que muitos dos antigos revoltados pela designação de Santana Lopes como Primeiro-Ministro adoptaram a filosofia de que «tudo está bem quando acaba bem». Enquanto no PSD surgiu uma espécie de silêncio traumático acerca do acontecimento. Há mesmo quem veja em Jorge Sampaio uma espécie de Rei Salomão do nosso regime democrático, reforçando a sua componente parlamentar ao aceitar Santana Lopes como Primeiro-Ministro e reavivando o carácter semipresidencialista do sistema ao dissolver o parlamento.
Com a tranquilidade que o desfecho do drama político permite, devíamos evitar fulanizações e reflectir sobre processos. Em causa não se encontram as decisões de Jorge Sampaio nas suas circunstâncias e moldura legal, mas a fragilidade das instituições democráticas que todo o caso expõe. Propunha aos militantes do PSD e do CDS/PP o seguinte exercício de imaginação: José Sócrates aceitava um cargo num organismo internacional e…Manuel Alegre substituía-o. Imediatamente remodelava o Governo e adoptava uma política mais à esquerda. Não quero com este cenário colocar Alegre e Santana no mesmo saco – apenas os comparo porque ambos têm em comum representarem sensibilidades políticas minoritárias dentro dos respectivos partidos. Face à nossa história política recente, esta hipótese é, não só possível, como a sua legitimidade não pode ser incontestada pelos antigos defensores do Governo Santana Lopes /Paulo Portas.
Abstraindo-nos de figuras políticas concretas também podemos imaginar que, saindo um Primeiro-Ministro, este pudesse ser substituído não por um trapalhão simpático como Santana Lopes, que se pôs muito a jeito para a dissolução do parlamento e convocações de novas eleições, mas pelo líder de uma corrente minoritária de direita que tomasse friamente o poder nas mãos. Uma vez levado ao poder por uma centena de notáveis, poderia tentar condicionar os meios de comunicação social e lançar medidas populistas com sucesso a curto prazo que garantissem uma vitória nas eleições legislativas seguintes.
Não há uma solução mágica para a crise da democracia representativa e, por muito estimulantes que sejam, os movimentos cívicos não podem substituir os partidos. Mas o caminho correcto encontra-se na democratização e na transparência e não no enclausuramento e defesa de interesses corporativos. Uma solução que me parece muito razoável quanto ao problema da sucessão de um Primeiro-Ministro, é que o sucessor seja obrigatoriamente eleito pela bancada parlamentar que apoia o Governo. Refiro-me, como é óbvio, a uma eleição a sério, entre diferentes candidatos, não a uma ratificação formal de um nome escolhido por uma centena de barões e aceite pelo Presidente da República. Neste caso estaríamos por um verdadeiro reforço do carácter parlamentar do regime. No enredo que passou à História vimos apenas uma comédia que se poderia repetir como tragédia.

Sobre as caricaturas dinamarquesas

Nos Evangelhos, Jesus fala dos escândalos como algo necessário à exortação da fé (Mateus 18:7). Esta sabedoria faz falta a muitos "crentes" que para aí andam.

Publicado em L&LP, AP e CL

sábado, fevereiro 18, 2006

A Função Espiritual da Caricatura


[fonte Jyllans-Posten por via Acidental]

Pedir às autoridades religiosas que recomendem e elogiem a blasfémia e a caricatura de si próprias é talvez pedir um pouco demais. Um pouco como a Coca Cola elogiar a Pepsi. Nesta altura pareceria hipócrita haver líderes católicos, protestantes, judeus, budistas que viessem defender as caricaturas de Maomé. Pelo menos, pelo que vi, todos deixaram claro que os protestos eram legítimos se fossem pacíficos. Um ponto em que a maior parte das autoridades religiosas islâmicas, aliás, insistiu também.

Mas não é impossível fazer o elogio da função religiosa da caricatura. A caricatura é, em verdade vos digo, o melhor remédio contra a idolatria que supostamente justifica todo este tumulto: Again and again, theologians have warned against uncritical subordination to representations of God, power or authority. That's the unlikely link between the iconoclasm of Milton, Marx and the Sex Pistols and that of the Judeo-Islamic tradition. And it's why a condemnation of the Danish cartoonists by those within other Abrahamic faiths, acting in solidarity with our Muslim brothers and sisters, is not quite so straightforward. A faith tradition that is never offended is one that is never challenged to give itself the necessary critical scrutiny. Indeed, the tendency to create dangerous idols of the divine is primarily a sin of the religious, not a blasphemy of the irreligious. Eu próprio não teria dito melhor, provavelmente até um bocadinho menos bem.
ADENDA - Ver aqui a justificação pelo editor do Jyllans-Posten da publicação das caricaturas.

sexta-feira, fevereiro 17, 2006

A minha vida dava um filme (e se calhar já deu)

quinta-feira, fevereiro 16, 2006

Vil tristeza



O mais inquietante e talvez melhor texto de sempre da blogosfera portuguesa. Só hoje o li. Está no Acidental.

Só Saúde!


Ontem Vasco Pulido Valente escreveu isto. O New York Times respondeu imediatamente disposto a não dar quartel. Para espanto dos incautos no Camboja cura-se tudo. E lá está, como se não bastasse, a culpa é dos Khmers Rouge. Os piores esquerdistas da história.

quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Do Tibete para o mundo


Em tempos em que tanto se fala de «choque de civilizações» e de «guerra de religiões» é refrescante ler Ética para o Novo Milénio, do Dalai Lama. Na discussão acerca da superioridade da civilização ocidental entre o Rui Tavares e o Vasco Pulido Valente, o caso de Gandhi foi controverso. Para o Rui, como escreveu aqui, é um exemplo de superioridade ética na crítica ao Ocidente. Pulido Valente vê nele apenas um produto do império britânico, expondo os seus argumentos aqui. A ambos aconselho o livro, embora o ponto de vista do Rui Tavares saia beneficiado. Gandhi recebeu parte da sua formação no Reino Unido e, na luta política, usou a consciência ocidental para a derrotar. O Dalai Lama viveu na fechada sociedade tibetana até 1959. Exilou-se na Índia e visitou um país ocidental pela primeira vez em 1973. O seu adversário político não tem sido qualquer país ocidental, mas a China. A falta de sucesso não o afastou dos caminhos da não-violência.
O discurso do Dalai Lama só pode ser o de um outro civilizacional e religioso. Ele não procura iludir a questão e admite que na língua tibetana não há palavra equivalente a «culpa». É mesmo possível que não tenha percebido o conceito, tal como os ocidentais distorcem o sentido de karma, tornando-o sinónimo de destino quando significa acção. Frases curiosas como «todos nós temos oito dedos e dois polegares» lembram-nos a diferença entre quem escreve e quem lê. No entanto, este monge tibetano descortina em todos os seres humanos a vontade de evitar o sofrimento e de ser feliz. É a partir desta concepção e do reconhecimento da interdependência humana que propõe uma revolução espiritual. Distingue, no entanto, entre espiritualidade e religião. Todos os homens, tenham ou não uma vida religiosa, podem ser uma vida espiritual: esta consiste em cultivar valores que fundamentam a felicidade duradoura: o amor, a compaixão, a paciência, a tolerância, o perdão. A vida religiosa fundamenta a espiritualidade dos seus adeptos, mas pressupõe concepções sobrenaturais: Deus, o Nirvana, a Reencarnação, etc. O Dalai Lama não pretende afirmar que, no fundo, todas as religiões são o mesmo e cita, a propósito, um provérbio tibetano: «não devemos pôr a cabeça de um iaque no corpo de uma ovelha». Acredita é que em todas as tradições religiosas, e também em tradições ateias, se pode valorizar a ajuda ao próximo e a paz.
A ética do novo milénio define-se mais facilmente a nível individual do que do ponto de vista da sociedade global e das relações internacionais. Adepto, da não-violência, o Dalai Lama admite que «Nem podemos esperar uma paz verdadeira enquanto houver regime totalitários apoiados por forças armadas que, às suas ordens, não hesitam em praticar injustiças. Isto porque a injustiça mina a verdade e sem verdade não pode haver paz duradoura». O ideal é o desarmamento, a realidade desaconselha que este se faça unilateralmente. Sem pretender possuir uma resposta no bolso, o Dalai Lama avança com algumas ideias: a criação de «Zonas de Paz», desmilitarizadas, como já acontece na Antárctida e poderia acontecer no Tibete; a eliminação de alguns tipos de armamento como as minas pessoais, o que tem sido feito, e o as armas nucleares, o que devia ser feito.
A História e a Actualidade estão repletas de massacres em nome de Deus, da Política, da Moral e da Lei. Nunca se matou ninguém em nome da Ética. Por isso, que o nosso grito, ou a nossa oração, seja «a Ética primeiro».
Ética para o Novo Milénio, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000

Choque de civilizações encore


O choque das caricaturas, tal como o choque do 11 de Setembro, trouxe de volta à ribalta o Choque das Civilizações de Samuel Huntington. O Paulo Gorjão aproveitou para aprofundar a questão. Agradeço-lhe o pretexto para voltar ao local do crime. Tentei contribuir para isso há uns anos num «artigo de fundo» no N. 21 da Política Internacional. (Então ainda não editada pelo Paulo Gorjão, portanto não há aqui amiguismos). Não resultou. E foi um passo importante na perda da minha inocência quanto às potencialidades do debate académico em Portugal. (Tem havido umas ainda escassas melhoras). Por contraste, nos EUA, o sucesso de uma tese avalia-se grandemente pela discussão que gera. Neste aspecto a tese de Huntington foi um grande sucesso. A Foreign Affairs cuidou de publicar um dossier com o artigo original - o segundo mais citado de sempre na história da revista - e as principais respostas críticas ao mesmo. Em Portugal nem sequer é vulgar haver uma secção de cartas e polémicas nas revistas académicas (Creio que António Barreto tentou na Análise Social, mas debalde).

Para gerar tanta discussão alguma coisa Huntington terá feito bem. (Como diz JMF do licencioso French Kissin). Uma das coisas foi sem dúvida o título: O Choque das Civilizações! Até parece jogo de computador. É claramente mais vendável do que 99% dos ensaios académicos. Por exemplo, o primeiro grande livro dele, ainda hoje muito reconhecido... por muito pouca gente, dá pelo nome de The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil-Military Relations. Não é mau. Mas NUNCA se coloca teoria no título de um livro que se quer vender. Choque das Civilizações é um título deliberadamente provocador, fácil de assimilar e falar superficialmente. (Ou seja, no fundo, caro Pacheco Pereira, a culpa também é dele.) Assim se faz um best-seller.

Quanto às fragilidades da tese de Huntington disparo na mesma direcção de Paulo Gorjão e do sínico Mai Tei Long. (No meu velho artigo tratava longamente das confusões entre religiões e civilizações, por isso me desobrigo de voltar a essa via sacra.) E que para mim se resumem a dois problemas fundamentais. 1. As civilizações não são conjuntos suficientemente homogéneos e organizados para poderem ser consideradas como actores no campo internacional. 2. Os Estados não são suficientemente motivados por factores ideológicos ou identitários para se determinarem absolutamente em situações de crise a um critério civilizacional. O Paulo Gorjão dá vários bons exemplos de como os interesses e uma lógica de razão de Estado sobrepesaram factores civilizacionais. (Mas vê-se isso num caso tão cultural como o das caricaturas dinamarqueses. O Ocidente dividiu-se de acordo com as conveniências diplomáticas.) Huntington tem estado a recuar nestes dois aspectos desde que publicou o livro.

Há, no entanto, um elemento novo na política internacional que reforça o interesse da tese de Huntington nos tempos que correm. O peso crescente de actores não estatais: grupos religiosos, ONGs, organizações regionais, e até essas ONGs ou multinacionais «negras» que são os grupos terroristas. Claro que é impossível funcionar na sociedade internacional sem um elemento de cálculo de poder. Mas estes grupos podem dar-se mais ao luxo da ideologia «pura e desinteressada», fanática em vez de pragmática, do que os Estados. Como refere Huntington (oportunamente citado pelo Sínico): bin Ladin quer o Choque das Civilizações!

Relativamente a estes grupos terroristas concordo com o Henrique Raposo que é mais pertinente falar da continuação de um choque entre o sistema vigente e ideologias militantes, do que do confronto entre grandes e infinitamente complexas religiões tradicionais. Mas com o que não concordo é que essas ideologias possam ser reduzidas a variações de velhas ideologias ocidentais. Apontar para as influências comunista e nazista no pensamento político do Islão é importante para se perceber que não somos assim tão diferentes (ou inocentes). Não se pode reduzir, no entanto, o entendimento da Irmandade Muçulmana às influências do fascismo ou do comunismo. Ele tem uma forte base na teologia islâmica (e na filosofia grega). E o movimento evoluiu. Apesar de sujeito a uma repressão feroz em muitos países, acabou por rejeitar a violência. Grupos como a al-Qaeda surgiram de rupturas sucessivas deste núclero central do islamismo político - como Olivier Roy mostra (a meu contento) - em organizações dissidentes cada vez mais pequenas e mais radicais, numa dinâmica semelhante aos grupos terroristas no Ocidente. Além disso, as nefandas influências ideológicas ocidentais (nazis ou comunistas) foram bem mais espalhadas no Médio Oriente. Por exemplo, influenciaram fortemente os movimentos nacionalistas e socialistas seculares que fundaram os actuais regimes Árabes – Nasser e outros. Os quais, no entanto, de acordo com as conveniências, não deixaram de se aliar ao Ocidente, ou de instrumentalizar politicamente o Islão (como se viu agora nalguns países neste caso das caricaturas).

Apesar das fragilidades, no entanto, Huntington aponta para factos importantes. Também por isso o livro aparece repetidamente como pertinente. Factos que contrariam uma leitura simplista do fim da Guerra Fria, a cuja grelha ideológica de leitura a tese de Huntington oferece uma alternativa. Cito dois.
Aos dois modelos ideológicos seculares e pretensamente universais em competição na Guerra Fria substituíram-se, em parte, outras divisões ideológicas, mais de tipo cultural e identitário. Os interesses são fundamentais na vida internacional, mas a escolha de amigos e inimigos também pesa alguma coisa. Parece ser bem mais provável que os EUA invadam militarmente um qualquer país afastado em termos ideológicos – em termos de regime político mas também em termos culturais – do que o contrário. O que é duvidoso é que civilização seja a única, ou necessariamente a melhor forma de falar disso.

A modernização económica, o capitalismo, não significam automaticamente ocidentalização e, menos ainda, subordinação ao Ocidente como pólo de poder no sistema internacional. Não é pelo facto de na China se beber Coca-Cola que os chineses passaram a ser americanos (estranhamente). Na medida em que cada vez mais os países não-Ocidentais crescem economicamente e ganham peso internacional, é normal que o choque entre interesses instalados e interesses emergentes seja ainda complicado por diferenças culturais.

É significativo que uma versão mais sofisticada do tema principal de Huntington – o peso das ideias, das normas, da identidade, da cultura, nas relações entre Estados – tenha dado origem na última década à corrente mais dinâmica no estudo das relações internacionais: o constructivismo. Com autores como Alexander Wendt, que procuram suplementar o realismo com máximas como esta: “A anarquia [do sistema internacional] é o que os Estados fizerem dela”. Ou seja, a visão do mundo importa. A tese de Huntington no fundo andava em torno disto. O poder pesa muito, mas as ideias contam alguma coisa.

ADENDA. Para quem quiser ler (ainda) mais. Para uma abordagem nuanceada e historicamente rica do conceito de civilização – justamente reclamada por Luís Marvão no Office Lounging – veja-se o clássico de Fernand Braudel, A Gramática das Civilizações. E para quem acha que o Islão tem pouco para oferecer intelectualmente, ocupem-se da obra fundadora da sociologia histórica e do que por aqui se chama world history, de Ibn Khaldun, Muqaddimah ou Introdução à História Universal.
[Ilustração - David Levine]

terça-feira, fevereiro 14, 2006

Amores Internacionais em dia de S. Valentim



Para quem quiser perceber o estado dos amores e desamores no Mundo, ou como a Foreign Policy também pode ser licenciosa de vez em quando, fica esta amostra de uma vasta sondagem em trinta e tal paises sobre quem gosta de quem no Mundo. (O Irão de Ahmadi-Nejad não deve portanto ter muitos postais este ano).

O magnífico ministro


Foi em vão que Vasco Pulido Valente, num post com o sugestivo título de «O Diogo do costume», chamou a Freitas do Amaral «menino exemplar do salazarismo e o discípulo dilecto de Marcelo». Em declarações à RTP, o professor mostra o nível a que chegou: «Quem têm sido os maiores agressores nos últimos tempos ? Somos nós !». Convém explicar que Freitas se refere à relação entre o Ocidente e o Médio Oriente. Grandes agressões nos últimos tempos ? Lembro-me de três: o 11 de Setembro, os atentados de Madrid e os de Londres. Excepto, claro, as que resultam da intervenção norte-americana no Iraque. O que é que o Ministro dos Negócios Estrangeiros quis dizer: que os citados atentados eram «agressões pequenas» ? Que considera uma «grande agressão» a intervenção no Iraque da qual o seu Governo é solidário ? Suspeito que a resposta a estas questões pressuponha um quadro conceptual do qual Freitas do Amaral já se libertou. O antigo discípulo tornou-se num verdadeiro mestre Zen.

segunda-feira, fevereiro 13, 2006

Meios e Fins

"Uma história verdadeiramente cíclica só é imaginável se aceitarmos a possibilidade de uma determinada civilização poder desaparecer por completo sem deixar o mínimo vestígio. Isso ocorreu, de facto, antes da invenção da ciência natural moderna. Esta é, no entanto, tão poderosa, tanto para o bem como para o mal, que é duvidoso que alguma vez possa ser esquecida ou 'desinventada', excepto no caso da aniquilação física da raça humana. E, se o domínio da progressiva ciência natural moderna é írreversível, também não são fundamentalmente reversíveis a história direccional e todas as outras consequência económicas, sociais e políticas que dela seguem."
Francis Fukuyama, O Fim da História e o Último Homem, 1992, Gradiva, pp. 102-103.

Suponho que as ameaças nuclear, química e biológica à sobrevivência da espécie humana terão estado, desde o fim da II Guerra Mundial até ao dia de hoje, sempre vivas nas mentes dos governantes do planeta. Porém, desde meados da década de oitenta que no imaginário colectivo o fim do mundo foi progressiva e mornamente substituído por uma multiplicidade de outras preocupações, de proporções menos alarmantes ou menos definitivas. Só por força da afinal injustificada justificação para a ocupação do Iraque, no pós-11 de Setembro de 2001, se voltou a dar nos media conta diária de diagramas de ogivas, da geografia e mundividência das novas potências nucleares, dos meios e fins dos actuais grupos terroristas, dos diferenças civilizacionais abissais entre grupos ou nações beligerantes. Ao que é dado a perceber, contamos com basta quantidade de recursos para a nossa própria aniquilação, numa quantidade de mãos sem precedentes. Se assim for, vale o appeasement mais ou menos que há sessenta e vários anos atrás?

domingo, fevereiro 12, 2006

Alguém já perguntou a (alguns) muçulmanos moderados?!

Na verdade, sim senhora. E é essencial continuar fazê-lo. Lembrar que o Islão não é monolítico. Embora em vários dos Estados do Mundo Islâmico - onde houve pela primeira vez e milagrosamente protestos e manifestações «espontâneas» e incontroladas! - a vida dos dissidentes (ou dos cristãos) seja muito complicada. Noutros, as reformas e um certo pluralismo vão fazendo progressos. Quer na Jordânia, quer no Egipto, quer no Iémen, quer na Argélia, houve editores (alguém pergunta porquê esta falta de bom senso?) que publicaram os cartoons e foram despedidos e presos por isso (alguém pergunta porquê esta falta de bom gosto?) .

Mas demos então voz a um do mais conhecidos e populares (não em todo o lado, claro) bloggers saudita: The Religious Policeman. Obviamente a viver no exílio em Londres. (Onde a polícia religiosa saudita, a muttawa, ainda não o incomoda, por enquanto). OK, é verdade que ele não é perfeitamente moderado. Os exilados raramente o são. É um muçulmano árabe liberal (licencioso mesmo) com a verve à flor da pele, e é fácil perceber porquê. Na questão dos cartoons ele insiste em dois pontos: se a Europa se vergar na defesa dos direitos e liberdades está a prestar um mau serviço aqueles que procuram liberalizar o mundo islâmico; e na hipocrisia dos regimes autoritários dos países islâmicos e no facto de, nem eles, nem os manifestantes, falarem em nome dos muçulmanos.

Nomeia para citação do mês este excerto da imprensa saudita em que se compara as liberdades no Ocidente (não tem problemas com o conceito) e na Arábia Saudita: a poignant comparison of Saudi and Western freedoms. «Abdullah Al-Othaim, executive president of Al-Othaim Holding Company, has said that his company would boycott of Danish products. “As Denmark has freedom of the press, we Muslims have freedom to buy or not to buy their products,” he said.»

Brilhante a escala da indignação muçulmana. E a propósito relembra o óbvio: I've got news for you guys; the Danes don't read Saudi newspapers, any more than 1.3 billion Muslims read Danish newspapers and get offended.

Quanto à análise dos cartoons propriamente ditos vale a pena ler tudo. Na verdade, ele é mais tolerante (ou licencioso) quanto ao gosto duvidoso de alguns do que muitos ocidentais (como eu). Mas eis uma selecção dos seus escritos com direito a tradições corânicas e citações da imprensa saudita:


The outrage has been caused by the fact that drawing or depicting a physical image of the Prophet is against Islamic law. Yes, but Islamic law applies only to Muslims, not non-Muslim Danes.

«The WAMY firmly believes that all prophets (peace be upon them) should be kept away from derogatory and slanderous attacks, because these were the chosen lot of the Almighty to guide humanity on the right path,” said Wohaibi. “Therefore, mocking at the prophets (peace be upon them) is highly degrading and subverts the call for human values and freedom of faith advocated by the United Nations Charter.»
Well, that's the World Association of Muslim Youth for you. […] But now you happen to mention the UN Charter and "freedom of faith", when is "Father Jim" going to be able to build his Christian church in Riyadh, to demonstrate the "freedom of faith" in Saudi Arabia? […]

«Muslims will never accept this kind of humiliation. The article insulted every Muslim in the world.» At last. Someone is being open! It's not about the Prophet (PBUH) at all. It's all about us. Me, me, me! We are insulted. Why? Because we choose to be, it's our right. The cartoonists are mocking the present-day distortions of true Islam by the bigots and zealots and terrorists, and the bigots and zealots and terrorists don't like it. And they are telling the rest of the 1.3 billion that they feel insulted as well, even if they don't.

E é tudo. As-Salam Alaikum!

[blogue recomendado por «Jackie of Arabia»]

Manifestamente

[fonte Ed Stein via Micas]

O manifesto por Uma Liberdade, está aqui para quem quiser assinar. Eu assinei. Simpatizo alguma coisa com as dificuldades do Rui Tavares quanto a estas acções colectivas. Também tive diferentes dúvidas académicas e práticas. Mas que pesaram bem pouco no final.

Dúvida práticas. Profissão (qual e para quê)? Doutorando? É um estado que se espera passageiro de quem já teve outra ocupação remunerada. Historiador? A história é para mim cada vez mais meio e não fim, e não me parece credível como profissão, infelizmente (e com desculpas aos colegas). Investigador, foi isso que me apeteceu professar, mas in pectore no sentido brasileiro do termo, de detetivar. Sobretudo, hesito sempre em manifestações colectivas, que têm necessariamente um lado de espectáculo. Também me parece que se trafica muito em indignações e eu prefiro análises. Há ainda uma dificuldade de comunhão (começa logo com a minha Igreja). Mas tenho poucas ilusões nestas coisas de acção colectiva (para não me desiludir). Portanto, se concordo com o essencial e se o essencial é realmente importante: manifestemos. Afinal um abaixo-assinado de um só seria uma certa contradição.

Dúvidas eruditas. O recurso ao conceito de tolerância (escrevi um artigo sobre o assunto, o que nos deixa sempre um pouco dogmáticos). Na lógica da tolerância existe uma assimetria intrínseca: há sujeito e objecto, há quem tolera e quem seja tolerado (ou não). Em Locke havia quem estivesse excluído da tolerância que ele advogava (os católicos e os ateus). A tolerância é um primeiro passo para a plena liberdade de expressão e consciência, mas não é um seu sinónimo. No entanto, é precisamente, e bem, por causa dessa filiação histórica que a tolerância aparece no manifesto; e também no sentido comum de tolerância mútua, de convívio de ideias diferentes.

Estas dúvidas pouco importaram porque estava de acordo no essencial e havia um esforço para não se cair em maniqueísmos. Civilização ou Ocidente não me causam incómodos nem devoções. São conceitos que vão servindo. Ou seja para descrever um certo aspecto da realidade. Ou seja para carregar uma (legítima, mas sempre questionável) tralha ideológica em cima. (Como sucede com muitos outros: desde a nação até aos trabalhadores). Eu, ao contrário da baronesa Thatcher, acredito que existem sociedades que, não sendo evidentemente homogéneas, têm normas e preferências que as definem e aproximam ou diferenciam de outras. Como sou de esquerda e liberal não acredito que essas diferenças sejam indiferentes. Há que respeitar os outros (por exemplo: o gosto europeu pela caricatura). Mas relativista é coisa que nunca fui: liberalismo para os liberais e canibalismo para os canibais nunca me pareceu um grande ideia. A dignidade e a liberdade humanas não são relativas. Isto é essencial. Isto está em causa nestes apelos aflitos e aflitivos à auto-censura. Isto estava no título do manifesto por Uma Liberdade. Houve ainda no texto o cuidado fundamental de referir os que corajosamente no seio das sociedades islâmicas combatem o fanatismo. Por isso o manifesto me pareceu um bom manifesto, tanto quanto um manifesto pode ser. E esta era uma ocasião em que ele era manifestamente necessário.

sexta-feira, fevereiro 10, 2006

Diálogo de Civilizações ou Diálogo de Surdos



[de Jeff Stahler via Micas]

Gosto da Ana Sá Lopes. (De vez em quando farei uns elogios destes só para despistar). E nem sequer a conheço. Escreve bem. Pensa independentemente. Mas neste texto, em que ela mostra essas duas qualidades, no entanto, para mim, não percebe o essencial. Bom senso? Bom senso, como regra, numa caricatura? Desde quando é que isso existe?!

Num comunicado do MNE, aí sim, devia haver bom senso. E o bom senso e o bom gosto mandam que os governos da europeus deixem claro que não têm nada que se pronunciar sobre caricaturas nenhumas. Nem do Maomé. Nem da Nossa Senhora. Nem do Afonso Costa. As caricaturas foram publicadas na Europa e se alguma lei foi violada é um problema para os tribunais, que supostamente sabem distinguir entre sátira e injúria. Os governos europeus devem deixar claro que tal como não aceitam a ideia de que todos os muçulmanos são uns fanáticos violentos, também não aceitam que os dinamarqueses todos, ou os europeus todos, sejam ameaçados por caricaturas que só vinculam quem as desenhou e quem as publicou, e que nunca poderiam justificar actos violentos. Dizer isto era essencial. Podia-se juntar alguma coisa mais diplomática, admito que sim, é para isso que serve a diplomacia. Mas isto tinha de estar lá.

E há um dado fundamental a ter em conta se se traz o (complicado) diálogo de civilizações para esta questão. (Desde logo duvido que as caricaturas sejam o melhor meio; e se calhar, para quem ainda não percebeu, havia que explicar o que são). Como se pode ver aqui, o motivo da encomenda da série de caricaturas de Maomé (algumas de gosto duvidoso, mas são caricaturas) foi o facto da autora de uma respeitosa história infantil sobre a vida do profeta do Islão em dinamarquês - um contributo para o diálogo de civilizações - se ter queixado de não ter conseguido encontrar nenhum ilustrador! Estavam todos demasiado assustados com a possibilidade de terem problemas com fanáticos islamistas só por desenharam, por mais inocentemente que fosse, Maomé.
Liberdade é diferente de licenciosidade? É. Mas também é um mito se toda a gente se auto-censurar. Por isso é que a sátira tem uma função tão importante, e anda sempre na corda bamba.

Diálogo? Sim. Dar força aos moderados no Islão? Evidente, se for possível. Não misturar alhos com bugalhos? Claro. Mas para dialogar é preciso ter alguma coisa para dizer. E se estamos tão condicionados pelo bom senso e pelo bom gosto, pelo temor de ofender ou provocar represálias, que não dizemos nada, é capaz de ser um diálogo de surdos.

O Bobo

[por sir Lionel Lindsey - fonte: www.joseflbovicgallery.com]

Pergunta o Paulo Varela Gomes (e não, ou talvez também, o Ivan, como inicialmente disse): o gosto ocidental pela sátira manteve-se durante os mil anos da Idade Média? A resposta é sim. Lembrai-vos d’O Bobo! Mesmo nas sociedades tradicionais havia um mecanismo de crítica, com a defesa do exagero cómico, que era tolerada pelos poderes instalados. A caricatura é herdeira dessa função de distorção salutar, de crítica mordaz, de escape: é o bobo da sociedade de massas. (Sim, eu sei, é um pouco grandiloquente, deve ser do chá). Recuar nisto, sobretudo quando se trata de criticar os poderosos e as grandes instituições, seria recuar para um período mais negro do que a Idade Média (talvez a Idade Moderna).

Por outro lado (para não ser pelo mesmo), a figura do bobo da corte até ajuda ao argumento principal desse poste, e com o qual estou completamente de acordo. É que o bobo está longe de ser exclusivo do Ocidente. Bobos existiam também nas sociedades islâmicas, aliás durante muitos séculos, mais ricas, mais cultas, mais diversas e mais tolerantes do que as do Ocidente (se se quiser ir por aí). Moral da história (parece que tem de ter, nos tempos que correm): bobos há em muitos lados, e em mais do que um sentido.

quinta-feira, fevereiro 09, 2006

Moral, ética, Lei


O editorial de hoje de José Manuel Fernandes no Público não esclarece a confusão entre moral, ética e lei ao afirmar: «se as leis consagram as regras éticas por que se rege uma sociedade, não podem impor-lhe uma moral». É que nos meus ouvidos ainda zunem as declarações de Pina Moura recusando ter tido um comportamento eticamente criticável, pois não infringiu a lei.
Por moral entendo os costumes de uma determinada comunidade ou indivíduo. A ética consiste numa reflexão sobre a moral, numa «ciência da moral». Esta distinção não é clara e alguns autores usam a expressão «filosofia moral» para designar o que eu considero ser o papel da ética.
Mas a distinção entre ética e a lei deve ser clara. De um ponto de vista ético, condeno veementemente as caricaturas de vítimas do Holocausto ou de qualquer outro massacre. De um ponto de vista legal, o Estado de Direito democrático deve assegurar o máximo de liberdade de expressão, defendendo o bom nome, o direito à integridade moral dos cidadãos de eventuais injúrias ou difamações. Vale apena ler o post do Pedro Mexia sobre o assunto aqui.
PS. Esta imagem apareceu-me quando fiz a pesquisa de imagens no google pela palavra «moral». Não tenho a culpa.

Mas alguém já perguntou ao Maomé!?!

O Charlie sim: «C'est dur d'être aimé par des cons.» Mas deixa estar profeta amigo, cretinos fanáticos há um pouco por todo o lado.

Sopesar a próstata e passar à clandestinidade


Como se não bastasse o triste espectáculo de oportunismo e de cobardia dado nos últimos dias pelo nosso Governo, visto o conteúdo dos comentários oficiais que produziu como resposta à onda violência que varre alguns países islâmicos desde há uma semana, veio agora o nosso presidente, o doutor Sampaio, dar uma prova de grande coragem e apreço pela democracia – neste caso apenas pela portuguesa. A sua visita ao concelho de Nelas na manhã do dia de hoje – um dos não sei quantos que ainda não tinha inspeccionado ao longo dos dez anos em que pastou tranquilamente em Belém – foi um episódio repugnante.
Há uns anos Sampaio vetou a criação do concelho de Canas de Senhorim, impedindo dessa forma aquilo que o povo pedia e que o Governo e o Parlamento da altura quiseram dar. Não sei se o presidente fez bem ou fez mal. O mesmo se aplica à maioria PSD-CDS de então e ao Governo de “centro-direita” que sustentava. Não me interessa absolutamente nada. Sabe-se, porém, que depois de tal veto o doutor Sampaio tem sido alvo de todo o tipo de protestos – na sua grande maioria legítimos e apenas um ou outro merecedor de uma especial atenção por parte das polícias e dos tribunais. A população de Canas ou, pelo menos, uma comissão muito participada que deseja a restauração do dito concelho tem-se desdobrado em iniciativas de todo o tipo, sendo que em muitas delas revela um ódio especial pelo nosso chefe de Estado.
Este chefe de Estado, garante do regular funcionamento das instituições democráticas, o que é que faz quando decide ir a Nelas? Mantém a agenda secreta, mesmo assim altera-a à última hora, reduzindo a sua passagem pelo Concelho de Nelas, que é também o da freguesia de Canas de Senhorim, a uma visita com a duração de uma ou duas horas a uma empresa que se dedica à exportação de bens. Aliás. e não fosse o diabo tecê-las, a empresa ficava a uma distância segura do centro da vila de Nelas.
Moral da história. Era mais fácil enfrentar a força bruta e ilegítima da polícia de choque salazarista no início da década de 1960, do que os protestos – legais ou ilegais – com que o povo de Canas desejaria naturalmente brindar Jorge Sampaio aquando da sua visita a mais um recanto do Portugal profundo.
A partir daqui ficamos ainda a saber que Jorge Sampaio é um político sem coragem – como quase todos – incapaz de enfrentar aqueles que, bem ou mal, não lhe perdoam uma atitude política que legitimamente tomou mas que não consegue assumir em todas as suas consequências. Para Sampaio a democracia e liberdade só podem ser exercidas nos termos em que lhe convém e nos termos em que o povo a queira legal ou ilegalmente manifestar, assumindo as partes todas as consequências do exercício do jogo democrático. Afinal Jorge Sampaio não andou gratuitamente a sopesar a próstata aos juízes. Fê-lo porque quer que os portugueses sopesem diligentemente a sua. O exercício da democracia e da liberdade não é para todos. Nem para o presidente da República nem para o povo de Canas de Senhorim. Chamar cobarde a Sampaio, enquadrado por pesado e abundante vernáculo, é coisa que não pode nem deve ser feita, especialmente pelo povo. Sobretudo em liberdade. Sobretudo em democracia. Passemos todos à clandestinidade como Sampaio fez no Concelho de Nelas.

A tolerância do Daniel Oliveira (ilustrada)

[fonte: Barnabé]

A minha tolerância do Daniel Oliveira na sua actual encarnação atingiu o limite. O Daniel ocupa-se aqui a traçar as contradições entre o que jornal dinamarquês quis publicar ou não quis publicar e a denunciar os seus alegados preconceitos ideológicos altamente selectivos, por sinal caricaturados num desses mesmos cartoons. Parece-me legítimo. (Embora pouco pertinente, porque o teste da liberdade de opinião é a defesa de coisas de que não gostamos, sobretudo na caricatura, e para o resto há tribunais).

Mas aqui está uma comparação que a mim me parece pertinente (talvez não ao Daniel). Comparem o Daniel tão-ciente-da-necessidade-de-não-se-ofender-as-crenças-alheias-de-propósito Oliveira actual, com o Daniel Oliveira como eu o conheci no seu primeiro choque comigo no Barnabé, queixando-se das minhas “missas diárias” e de “homilias”. Supostamente os epítetos justificavam-se por um obituário, não completamente acrítico, de João Paulo II, que era para aí o meu terceiro poste no dito blogue sobre questões de religião (qualquer deles dificilmente classificável de ortodoxo). Isto não é um kit humorístico. É outra coisa.

A minha resposta – caricatural, nem de propósito – aparentemente deixou-o sem palavras. Mas não perdi pela demora. Na crise final do Barnabé acusou-me de ser um Padre Melícias infiltrado. Ainda estou a recuperar do choque! A que propósito? Boa pergunta. Suponho que o mais que se arranja é eu ser de esquerda e católico (mas como vêem muito pouco praticante), e ele não gostar disso.

Enfim, o que dizer: sonsínico? Não consta do meu dicionário. Progressos assinaláveis? Talvez, espero que sim. Ou então uma grande capacidade para a indignação selectiva.

PS - Tinha assente que não voltaria ao Barnabé. Lamento ter ido incomodar o morto. Ou talvez tenha sido o morto a vir incomodar-me a mim.

quarta-feira, fevereiro 08, 2006

Passa-Palavra

A pedido de várias famílias, aqui fica o seguinte comunicado:

"Na próxima 5ª feira, dia 9 de Fevereiro, pelas 15 horas, um grupo de cidadãos portugueses irá manifestar a sua solidariedade para com os cidadãos dinamarqueses (cartoonistas e não-cartoonistas), na embaixada da Dinamarca, na Rua Castilho, nº 14, em Lisboa.
Convidamos desde já todos os concidadãos a participarem neste acto cívico em nome de uma pedra basilar da nossa existência: a liberdade de expressão
."
[texto integral aqui, aqui, aqui ou aqui]
(a) Rui Zink, Manuel João Ramos e Luísa Jacobetty.

Confesso que a tentação de plagiar o título deste post (copyright André Carvalho) foi mesmo muito grande.

Profissão de Fé

[Foto: Álbum pessoal de Agostinho da Silva,in AAG, 1981.]

"Não se julgue, porém, que significa alguma coisa saber ler quando se não lê ou quando a leitura ainda divorcia mais da realidade das coisas e anula a capacidade do sonho e do projecto (...)."
Educação de Portugal, Lisboa, Ulmeiro, 1989.

No dia 13 de Fevereiro George Agostinho Baptista da Silva tornar-se-á centenário. Já se revisita a sua obra, pelo Insónia e pelo Mascroscópio. Mais que recordar, professar o professor.

terça-feira, fevereiro 07, 2006

Choque de Civilizações na Blogosfera e Mark Twain


O nosso Ocidente como civilização superior? É um termo escorregadio em que VPV patina um pouco. Superior em quê? Felicidade, génio, amor ao próximo, ou até, potência sexual? Elogio em boca do próprio é vitupério (faz Camões dizer ao pobre Vasco da Gama antes de ele fazer precisamente isso, «porque Vossa Alteza pede»). É avisado aviso. Convém desconfiar da tentação de pensar que nós somos os melhores. Tentação a que os radicais Islamistas cedem em elevadíssimo grau. O que só por si nos deveria levar a evitar tais caminhos. Tudo pontos em que estou inteiramente de acordo com o que diz o Rui Tavares, com quem eu convivi com gosto, apesar (por causa?) de algumas disputas, no Barnabé.

Mas parece-me que aquilo a que VPV realmente se refere é, com mais precisão, e como deixa mais claro aqui, o facto do Ocidente ter sido a civilização dominante nos última séculos. Ou seja, aquela que, pela pujança económica, tecnológica e militar tem dominado o sistema internacional. Isto é um facto. Foi precisamente este predomínio que permitiu perpetrar os massivos massacres a que o Rui Tavares alude. (E que têm a vantagem e honestidade de mostrar que isto de fanatismos sangrentos não é reserva dos crentes; ateus e anticlericais também têm garantido um abastecimento regular do produto).
Certo, estas coisas não duram sempre. O Islão, a Índia, ou a China já estiveram nessa posição de predomínio, pelo menos na parte do mundo que lhes era útil. (E não massacraram menos tendo em conta as limitações da época). A China poderá estar agora de regresso. Mas isso são outras conversas.
Um outro facto fundamental neste debate é que o Ocidente realmente oferece mais direitos, liberdades e conforto material aos seus cidadãos. Dizer isto é perfeitamente legítimo. Contrariá-lo também, claro, estamos no Ocidente. Mas todos os dados apontam nesse sentido: desde o grosseiro PIB per capita; até ao bem mais relevante índice de desenvolvimento humano; passando pelos direitos garantidos na lei e os índices de democraticidade efectiva da Freedom House; para chegar aos países de origem de migração forçada e aqueles onde mais se procura asilo (embora aqui os números sejam mais difíceis de comparar). É este constraste que explica as exigências de que o governo dinamarquês peça desculpa pela publicação de caricaturas num jornal. No Ocidente isso não faz sentido. Em muitos outros sítios faz.

Como é válido – sobretudo à esquerda, diria eu – defender que há valores liberais de valorização da dignidade humana, que tendo surgido no Ocidente, podem e devem ter um alcance universal. Estão consagrados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, a que todos os membros da ONU prestam pelo menos hipócrita vassalagem. Isto não quer dizer que se defenda a sua imposição pela força. Mas estes valores, não sendo naturais no Ocidente, consolidaram-se aqui com muita luta. E podemos e devemos continuar a lutar por eles no Ocidente e fora dele. Quem quiser que os siga. Eu sinceramente acredito – ao contrário talvez de VPV, provavelmente neste aspecto de acordo com o Rui Tavares – que há muito quem o queira fazer, se os deixarem.

Particularmente pertinente ao discutir a querela dos ícones é, como o fez VPV, recordar que existe, uma longa tradição de sátira do Cristianismo nos últimos séculos. Um bom exemplo na blogosfera nacional é o abaixo assinado promovido pelo Barnabé para libertar a irmã Lúcia do seu convento. (Na altura comentei que era um pouco como os escuteiros que querem obrigar uma velhinha a atravessar a rua para reclamarem uma boa acção). Sempre achei um exercício saudável para os crentes conviver com a sátira. E retaliarem. Mas na mesma moeda. Ou seja, testando o sentido de humor dos humoristas: uma prova que alguns «livre-pensadores» falham miseravelmente. (Não é o caso do Rui Tavares.) É que há uma diferença fundamental entre o protesto pacíficos de cristãos no Ocidente, há muito habituados a estas liberdades com mais ou menos piada, e estas manifestações de radicais islâmicos cada vez mais ameaçadoras e violentas.
Finalmente, fica mais uma vez claro que há muito quem se empenhe em suprimir opiniões alheias e diversas, nas religiões, mas também fora delas, com vários pretexto e de várias maneiras. Que lhes faça bom proveito (e certamente fará, o mundo sendo o que é). Eu vou estar sempre do contra, desde que certos princípios básicos sejam respeitados. Mais haveria a dizer sobre isto, mas prefiro dar voz, para terminar, a um dos meus gurus preferidos. Veste-se bem. Tem bigode farfalhudo. É pouco dado a homilias. (Assim não ofendemos as sensibilidades eventualmente mais delicadas de alguns não-crentes). Dá pelo pseudónimo de Mark Twain: it is admirable to do good, it is also admirable to say to others to do good – and a lot less trouble. [Tradução: pregar (tolerância, respeito pelas crenças alheias) é fácil, praticar é mais difícil].
ADENDA - A este propósito, evidentemente que o comunicado do MNE é absurdo. Foi violada alguma lei na Dinamarca? Foi violada alguma lei em Portugal? Haveria caricaturas se esses critérios fossem seguidos? O que é que o governo português (ao invés do tribunais) tem que ver com isso? Pelo menos, valeu-nos a UE vir deixar claro que se forem decretados boicotes de bens dinamarqueses isso resultará em sanções retaliatórias. Não menos evidente é que se isto resultar num quebra do abastecimento de petróleo - o que apesar de tudo me parece improvável, há demasiados interesses em jogo - a defesa dos nossos valores vai sair-nos cara. Quem disse que eram baratos? Quem disse que uma política energética sustentável era coisa de ecologistas chatos?

Pesos e medidas


O Daniel Oliveira coloca no Aspirina B a questão da equivalência entre as caricaturas na origem de toda esta polémica e caricaturas sobre o Holocausto. Acho bem que a coloque, pois vale a pena analisar as diferenças. Eu não sou a favor de uma liberdade de expressão ilimitada – e já o provei neste blogue apagando um comentário racista sobre muçulmanos. Entendo é que a «susceptibilidade religiosa» é um limite demasiado vago, que facilmente leva o feitiço a voltar-se contra o feiticeiro. Até porque os muçulmanos são muito mais parecidos com os católicos do que geralmente se pensa.
Deve haver um limite à liberdade de expressão: o racismo. Aceito discutir se a fronteira deve ser entregue à ética ou ser definida pela lei, mas recuso qualquer equivalência moral entre caricaturas de agressores e caricaturas de vítimas. Não me indigno com a caricatura de um terrorista islâmico pelas mesmas razões por que não me indigno com a caricatura de um fanático judeu invocando a sua religião para justificar o massacre de palestinianos. As caricaturas do Holocausto são tão obscenas como qualquer caricatura do extermínio de populações árabes ou muçulmanas. Em suma: pode gozar-se com os que promovem a violência, abusam do poder ou incitam ao ódio, seja qual for a sua raça ou religião. Devem respeitar-se as vítimas. Todas as vítimas.

O meu nome é Vermelho


Assim começa o magnífico romance de Orhan Pamuk. Falar de realismo mágico ou (des)estrutura pós-moderna é dizer qualquer coisa, mas não muito: clichés não puxam carroça. Mas é o livro mais interessante que me ocorre a pretexto da actual querela das imagens.

É uma estória de Istambul no final do século XVI, de traição, assassínio, amor – a faca e alguidar do costume, portanto.

Aquilo que torna o livro interessante e especialmente actual é o facto da «acção» se centrar na comunidade de iluminadores que trabalham para o sultão otomano. De todos os velhos temas de paixão e morte estarem demolhados em problemas tão actuais como as trocas culturais entre civilizações, a fascinação e ódio entre Oriente e Ocidente. De ser central no enredar do texto o problema da representação e da arte como acto estético, mas também (algo que só raramente nos ocorre nos tempos que correm) político e religioso. Em suma, como viviam estes iluminadores, estes produtores de imagens cada vez mais tentados pela pintura ocidental, na capital de um império islâmico? Resposta curta: perigosamente.
Aquilo que torna o livro notável é o facto de Pamuk conseguir criar personagens inteiramente credíveis e dotadas de forte personalidade, invejas, opiniões estéticas ou interesses teológicos, de algo tão inesperado como a cor Vermelho, ou (favorito meu) um cão, que, apesar de não ser um cão (como diria Magritte), nem por isso deixa de explicar ao leitor, a (des)propósito, que as interpretações do Alcorão usadas para denegrir o bom nome da raça canina estão erradas.

A linguagem arcaizante e um pouco embrulhada para olhos ocidentais pode não atrair à primeira (a mim atraiu). Mas vale a pena perseverar.

PS – Quem quiser um versão compacta da questão das imagens e iluminuras no Islão (que vi primeiro referida aqui e aqui) pode ficar-se pela BBC. Um ponto curioso é que uma das razões porque se podia defender que as iluminuras não desafiavam a proibição islâmica de criar imagens era o seu aspecto estilizado e o pequeno tamanho. Ora isso parece pertinente para as caricaturas da discórdia, não?