domingo, abril 02, 2006

Histórias Exemplares

O novo romance de Michael Cunningham , Dias Exemplares, não é uma obra-prima, mas vale a pena ler até ao fim. Não entendo que o tenham criticado por repetir a fórmula de As Horas. A fragilidade da obra consiste mesmo em não ser possível repetir a fórmula, pois glosar um romance é muito diferente de glosar um livro de poemas. A relação entre a intriga e os poemas de Walt Whitman parece arbitrária e as histórias pouco acrescentam à compreensão do poeta ou do seu público. No primeiro conto, que se passa no século XIX, e no qual Whitman surge como personagem secundária, Cunningham comete o erro de intercalar fragmentos poéticos com a narrativa. O resultado é que os versos parecem relâmpagos atravessando um texto, por contraste, demasiado prosaico. Uma impressão injusta, pois a narrativa vai ganhando cor e fôlego visionário.
Cunningham é um épico perverso, interessado em dissecar a alienação humana e a irrupção do pesadelo no sonho americano. A intenção não podia ser mais séria, o método é uma ironia em crescendo até ao nível do humor corrosivo. A nível formal, o tão característico e imitado realismo norte-americano é invadido por referências de géneros literários marginais: o fantástico, o thriller, a ficção científica. O que o narrador mostra é um mundo paradoxal em que os seres humanos se vêem ameaçados por um processo de artificialização, de confinamento e de diluição do humano numa sociedade cada vez mais tecnológica e complexa. Mas a condição humana não se extingue, desloca-se, sendo apropriada por seres hoje desconhecidos ou situados além da fronteira do humano, como os ET ou robôs.
O problema não é Cunningham servir de novo meta-literatura, mas serem fracos os fios ligando três histórias, passadas em diferentes séculos, e os poemas de Whitman, usados como mote. Demasiado fracos para cimentar um romance. Suficientes para justificar a reunião, num só livro, de três histórias com classificação de bom a óptimo. Por ordem crescente.