sexta-feira, fevereiro 16, 2007

O desfecho de Little Children


Se ainda não viu e conta ver Little Children, filme candidato a três óscares e que em Portugal se encontra em exibição com o desastroso título de Pecados Íntimos, é melhor ignorar este post. Porque o que vou discutir aqui é o final da história e, mesmo evitando entrar em pormenorizações desnecessárias, tenho de contar parte do enredo para comentá-lo. João Paulo Sousa, que eu costumo ler, faz um juízo negativo do filme partindo da sua conclusão, pois, escreve, «é quando uma narrativa chega ao seu termo que o processo de releitura tem a possibilidade de se iniciar (...) é a partir desse instante que a obra em questão pode começar a ser verdadeiramente conhecida.»
Acontece que, após uma reacção imediata de desconcerto perante o desfecho, a minha releitura do filme foi no sentido exactamente oposto ao de João Paulo Sousa. Para este blogger, o guião remata com uma «deslavada manutenção da ordem, do statu quo, sem ironia ou perversão redentora. Para cúmulo, a voz off, que vai impondo uma leitura da narrativa, ainda se atreve a propor a conciliação das personagens, ao afirmar que todas têm um passado, mas que apenas importa o futuro, e este deve ser começado em qualquer lado.»
Neste filme, a voz off foi um factor de distanciação imediato em relação à narrativa. Como se ela despertasse as ressonâncias de outra voz off, de outro filme sobre a mediocridade e crueldade nas pequenas cidades norte-americanas: Dogville de Lars von Triers. O desfecho, em vez de repor a ordem redutora dos subúrbios norte-americanos, redime, de modo perverso e irónico, duas personagens: o pedófilo em liberdade condicional e o ex-polícia desempregado, obsessivo vigilante dos bons costumes. São estas duas personagens, completamente fora dos padrões de normalidade, que se mostram capazes de começar um outro futuro. Todas as outras se encontram condenadas a repetir a «ordem natural das coisas» até à exaustão. Brad (Patrick Wilson) auto-boicota-se ao seguir a pulsão regressiva de voltar a sentir-se na pele de um adolescente. A Sarah (Kate Winslet) aplica-se o que ela própria diz de madame Bovary: é uma mulher lutando pela sua felicidade. Mas comete o pecado original de fazer depender a sua felicidade de um desejo formado e espoletado sob o olhar de três mulheres resignadas às suas frustrações. A saída está reservada aos feios e anormais, é a ilação a retirar do filme. Ou seja, estamos perante um filme blasfemo.