quarta-feira, fevereiro 21, 2007

Cartas de Iwo Jima

Cartas de Iwo Jima é uma obra-prima de Clint Eastwood, cineasta que começou como actor em westerns spagheti e, na fase final da sua carreira, faz de um filme da II Grande Guerra, simultaneamente, um western e um filme de samurais. A busca da «última fronteira» já levou Clint Eastwood à estratosfera e agora coloca-o no pacífico, numa ilha rodeada de mar como uma cidade, um rancho ou um acampamento de colonos pode estar cercado pelo deserto ou por uma planície infinda. A surpreendente variação é que os soldados norte-americanos desempenham agora o papel de «índios» empenhados no último assalto.
Se quisermos encontrar no cinema clássico a construção de um olhar que culmina nas Cartas de Iwo Jima, A desaparecida de John Ford é uma boa aposta. Neste filme, a personagem de John Wayne, partindo com o objectivo de resgatar a sobrinha dos índios ou, no caso de ela se ter passado para «o outro lado», a matar, acaba por aceitá-la como um outro, ou seja, uma índia de origem branca. Eastwood radicaliza este olhar a ponto de ver uma guerra norte-americana na perspectiva dos japoneses. A sua atitude cruza-se com a de Akira Kurosawa, que, após ter realizado, durante a II Grande Guerra, um filme de apologia do esforço bélico japonês, O Mais Belo, passou o resto da sua carreira cinematográfica a reavaliar a História do Japão face aos valores e códigos estéticos do país vencedor. Num dos seus filmes mais famoso, Os Sete Samurais, que deu origem a uma réplica em «filme de cowboys», Os Sete Magníficos, um punhado de samurais defendia uma aldeia de camponeses da pilhagem de um bando de salteadores.
Algo do espírito dos Sete Samurais perpassa pelas Cartas de Iwo Jima. Muito se tem escrito acerca da crítica radical à guerra, o pacifismo que o filme tem, mas não tem somente. No meio do absurdo e do horror, descortina-se a racionalidade da guerra: Kuribayashi acredita valer a pena sacrificar-se se esse sacrifício garantir a segurança das crianças japonesas, nem que seja apenas por mais um dia. A relação do General com o soldado Saigo, um padeiro na vida civil, só aparentemente reproduz a dupla do herói/pícaro que remonta a D. Quixote e Sancho Pança. É certo que Kuribayashi está disposto a lutar até à morte e Saigo quer sobreviver a todo o custo. Porém, a linha do ridículo não se situa entre eles, mas entre ambos e o tenente Ito, um tenente opressivo e suicidário, sem amor à sua vida nem à dos outros.
Clint Eastwood filma os japoneses de Iwo Jima como Homero cantou Ulisses e Heitor, faz do cinema um teatro de sombras vagamente coloridas, esbatidas a ponto de quase não se distinguirem da terra e do mar cinzentos, eco e reflexo de homens que, com a sua carne e ossos, fizeram uma parte da História do século XX.

4 Comments:

Blogger JSA disse...

Caro João, há aí uma asneira do tamanho do Mundo. Os Sete Samurais não é uma réplica de um filme de cowboys. Os Sete Magníficos, esse sim, é um remake em formato de western d'Os Sete Samurais. Basta ver as datas de um e outro filme: 1954 para o japonês e 1960 para o americano. Há que ter cuidado com coisas destas, até porque são das que fazem parte do cânone de qualquer cinéfilo.

Quanto ao Cartas de Iwo Jima, fico à espera que chegue pelas minhas paragens para o ver. Para já, a ânsia é muito grande.

8:42 da manhã  
Blogger João Miguel Almeida disse...

Mea culpa, mea culpa. Vou corrigir. Fui induzido em erro porque o Akira Kurosawa distinguiu-se a fazer transposições para o Japão de obras do cânone ocidental: o Rei Lear de Shakespeare (Ran), Macbeth, o Idiota de Dostoieveski, etc. Neste caso, fechou-se o ciclo de influências: Kurosawa inspirou-se em John Ford e os norte-americanos inspiraram-se em Kurosawa.

12:14 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Democracia, que Democracia ?

Se algum dia existir um concurso para eleger a pior marosca de sempre, esta será uma forte candidata. Em resposta à eleição d’Os Grandes Portugueses, na RTP, o programa Eixo do Mal, transmitido na SIC Notícias e produzido pelas Produções Fictícias, iniciou em Dezembro do ano passado uma votação para eleger O Pior Português de Sempre, onde se propunha encontrar “a personalidade que mais contribuiu para a ruína do nosso País”.
Mas, apesar do símbolo da iniciativa e da insistência dos protagonistas do Eixo do Mal em que António de Oliveira Salazar deveria ser eleito como O Pior Português, os resultados da votação online no blogue oficial iam numa direcção diferente (a outra tese defendida por eles no programa era a que "os piores portugueses de sempre são os que votam em Salazar na eleição para os Grandes Portugueses"). Até que, uma semana antes do fim do escrutínio, foi anunciada uma fase extraordinária e criada uma votação nova, ignorando os mais de 26000 votos da anterior. Ao contrário da primeira, esta segunda votação nunca apresentou os resultados em tempo real. É também curioso que quando esta nova votação começou foi logo gravada uma reportagem sobre a eleição de Salazar como O Pior Português.
Na passada terça-feira, dia 13, foi dada por terminada a eleição. Nesse dia, pouco antes da transmissão do documentário sobre Salazar na RTP, a SIC Notícias emitiu uma gala onde, com pompa e circunstância, o Eixo do Mal anunciou o vencedor da votação do Pior Português: António de Oliveira Salazar, com 5132 votos (39.21%). Este "facto" fez a primeira página de jornais como o Público (na imagem). No entanto, no decurso de uma exaustiva e melindrosa investigação virtual, conseguimos ter acesso aos verdadeiros resultados das duas fases de votações, que podem ser vistos aqui:
Votação 1 (1 de Dezembro a 4 de Fevereiro)
Votação 2 (5 a 13 de Fevereiro)
Em ambas as votações o vencedor é outra figura bastante diferente, um tal de Mário Soares. Se isto era tudo uma brincadeira, para quê a marosca? É evidente o conceito de democracia destes senhores. Epa, para a próxima tenham mais cuidado! É que nas eleições que temos tido em Portugal a coisa é feita de forma um bocadinho mais discreta… tão a ver?
Já agora, será que o vencedor d’Os Grandes Portugueses também será escolhido assim?
É também de referir o facto de Soares já ter sido eleito como O Pior Português de Sempre numa votação feita o ano passado no blogue Do Portugal Profundo.


www.riapa.pt.to

6:53 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Um pequeno comentário para o anónimo: Se uma votação for feita no meu sítio para eleger o pior português de sempre, desconfio que o resultado seria muito diferente, não podemos esquecer que estamos a falar de pessoas que colocou Portugal na UE. Não sei se sabem como antes era Portugal??! É talvez sensato isto perguntar as criancinhas que votaram.

Mas do filme aqui se trata. É sempre interessante observar uma guerra pelas duas trincheiras. Os realizadores americanos têm a tendência em transformar, no caso das guerras, as tropas americanas em heróis universais, os bons contra os maus, é como sempre uma questão de relatividade. Por isso os parabéns a este grande trabalho dou.
E o resto da história a conhecemos, uma bombinha do céu caiu, e uma espadinha cortante partiu-se…

6:37 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home