O futuro é uma ficção séria
Em 2006 li três romances de ficção científica de escritores que se afirmaram fora deste género literário, como «autores sérios»: Dias Exemplares, de Michael Cunnhingham; Nunca me Deixes, de Kazuo Ishiguro e A Possibilidade de uma Ilha, de Michel Houellebecq. Tanto o norte-americano como o britânico de origem japonesa e o francês recorrem ao romance para pensar as condições de uma pós-humanidade definida pelas transformações bio-tecnológicas. Dos três romances o meu preferido é a obra-prima de Kazuo Ishiguro, Nunca me Deixes, um título que merece um lugar entre os melhores publicados em Portugal no ano passado.
Espero que esta escolha não seja entendida como um menosprezo pelo controverso Houellebecq, do qual ainda não tinha lido nenhum livro. À medida que me embrenhava na narrativa tive de me ir desfazendo de ideias-feitas e ver além das máscaras do narrador: a do provocador que mina o texto com piadas «politicamente incorrectas»; a do «intelectual francês» que expõe uma «visão do mundo» alegadamente inspirada em Schoppenhauer com umas pitadas de Jean-Paul Sartre – o homem como «paixão infeliz», etc. Por detrás das máscaras, descobri um moralista céptico e pessimista que usa o cinismo para denunciar as ilusões, a «má-fé» e a hipocrisia da contemporaneidade, as quais não passam da enésima variação da estupidez e crueldade humanas. Sei que encontrar um moralista disfarçado de porco é uma tentação fácil. Mas é o próprio Houellebecq que escancara as portas a esta interpretação quando escreve: «Expliquei-lhe, esvaziando rapidamente a minha tequilla gelada que construíra toda a minha carreira e a minha fortuna explorando comercialmente baixos instintos, a absurda atracção do Ocidente pelo cinismo e pelo mal, e que [me] sentia, portanto, particularmente bem colocado para afirmar que, entre todos os comerciantes do mal, Larry Clark era um dos mais comuns, dos mais medíocres, simplesmente por tomar sem pudor o partido do jovens contra os velhos, por todos os seus filmes não terem outro objectivo para além de incitar os filhos a comportar-se para com os pais sem a menor humanidade, o menor dó, e por isso não ter nada de novo nem de original (...) tratava-se, portanto, de um refluxo brutal, típico da modernidade, para um estádio anterior a toda a civilização, pois toda a civilização podia ser avaliada em função do destino reservado aos mais fracos, àqueles que já não eram produtivos nem desejados.» Resta acrescentar que esta digressão de Houellebecq, se esclarece o seu ponto de vista, também não prima pela originalidade ou pela coerência. Até porque se lhe parece insuportável «tomar o partido dos jovens contra os velhos», já não tem repugnância em tomar o partido dos artistas contra, por exemplo, os camionistas, aos quais atribui as maiores vilanias.
Toda a ficção é construída a partir de uma imagem de Schoppenhauer: «a existência humana assemelha-se a uma representação teatral que, iniciada por actores vivos, terminasse com autómatos vestidos com os mesmos trajes». O actor principal é o humorista Daniel, que assiste à fundação de uma nova religião profana, a dos eloimitas, a qual recorre à clonagem para cumprir a promessa da maior parte das religiões antigas: a eternidade. Os «autómatos» são os clones Daniel24 e Daniel25 os quais, séculos depois, vão comentando o relato de vida do seu antepassado humano. Ao contrário do que Nietzsche apregoava, à morte de Deus e do Homem não se segue o aparecimento de um Super-Homem, mas de um sub-homem, com menos necessidades físicas, capaz de sobreviver quase sem se alimentar e sem conviver, sem sexo e sem humor. Resta a estes sub-homens e sub-mulheres uma sombra de desejo humano, a aspiração à «possibilidade de uma ilha» que seria encontrar o amor, ou pelo menos, uma relação autêntica, próxima, com os seus semelhantes.
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