Aborto: sim, mas
Mas não aceito que se diga que a Igreja Católica, a todos os seus níveis, não podia participar na campanha. Se os senhores bispos não podem falar sobre o aborto, podem falar exactamente sobre o quê? Talvez a imaculada conceição, a pobreza, a guerra no Iraque. E por autorização de quem, do Estado? Isso não violaria a separação? Ficou mais uma vez evidente nesta campanha que havia quem, mais do que defender um ponto de vista, queria calar outro, em nome de um sacrossanto Estado Laico, a qual é bem distinta da Separação e não tem, graças a Deus, qualquer base na prática política portuguesa ou na nossa lei constitucional.
Mas não acho que a Suécia ou os EUA tenham de ser necessariamente um guia neste campo ou noutro qualquer. Afinal nos anos trinta foram eles, juntamente com a Alemanha nazi, os grandes pioneiros da eugenia, face aos protestos vigorosos da “retrógrada” Igreja Católica. Hoje parece consensual que estes "avanços civilizacionais" afinal eram recuos.
Mas tenho respeito e admiração por muita gente no campo do Não. Num país onde as palavras são abundantes porque são de graça, e as acções concretas são raras, há que louvar quem realmente pôs mãos à obra desde há anos para oferecer uma escolha real às pessoas grávidas, dando-lhe mais condições para terem bebés desejados mas difíceis de sustentar.
E, no entanto, voto sim. Não por achar que o aborto é uma coisa boa, uma escolha heróica. Não por questionar os princípios fundamentais da doutrina católica a este respeito. Mas por duas outras razões: uma política, a outra pessoal.
A política de proibição legal do aborto nunca o eliminou. E são as pessoas menos informadas, as menos apoiadas, as menos abonadas que mais recorrem ao aborto clandestino e mais sofrem com ele. Tudo ponderado considero que despenalizar a prática do aborto – e não apenas as mães que o façam – em estabelecimentos de saúde autorizados deverá permitir a todos, e não apenas a alguns como agora sucede, um acesso confidencial (é essa a obrigação dos médicos) a um aconselhamento profissional, incluindo naturalmente os contactos das associações de apoio à gravidez, e, ao fim de alguns dias de reflexão obrigatória, a um aborto seguro na fase mais embrionária possível.
Deixo para o fim o lado da memória pessoal que é, no entanto, talvez determinante. Ainda há pouco recordei três casos de abortos que terminaram em morte. Dois de pessoas da aldeia da minha avó nos distantes anos oitenta. Mas também bem mais recentemente a de uma jovem menor que morreu depois de um aborto mal improvisado pela mãe enfermeira. Claro que estas pessoas não foram livres de escolher. Estavam muito condicionadas pelo meio. Mas não tinham meios de lhe escapar. A minha esperança é que a despenalização evite situações destas, e acabe até por ser facilitadora do acesso, por exemplo, a associações de apoio a grávidas. A política é muitas vezes o reino do mal menor.
Estou certo? Não sei. Espero, no entanto, que se o não ganhar o PS se deixe de chantagens e melhore a lei existente e sua aplicação na medida do possível. Espero bem que se o sim ganhar se concretizarão na lei as prometidas garantias de aconselhamento, de período de ponderação, de acesso ao máximo de informação a favor e contra o aborto.
1 Comments:
Excelente texto!
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