À União Nacional da ditadura podia ter sucedido uma «união de esquerda» durante o período revolucionário? Que papel é que desempenhou Mário de Sottomayor Cardia durante a transição para a democracia? Eis questões às quais a História sobre o período revolucionário, ainda nos seus primórdios, deve responder. Este meu
post, apresentando uma memória sobre a tese de Cardia do risco da diluição dos recentes partidos de esquerda no MDP, foi contestado. Não só por pessoas adeptas da visão do PCP sobre o assunto, mas também por historiadores afirmando desconhecer documentos sustentadores da tese. Não sendo eu um especialista da época, transcrevo aqui excertos de um documento que, pelos vistos, é pouco conhecido, mas útil para a História e o debate a fazer. Trata-se de uma entrevista de Sottomayor Cardia ao jornal «A Capital» em 30 de Agosto de 1974. Os sublinhados são meus:
«Desde a sua fundação como partido o Partido Socialista encontra-se estreitamente ligado à C.D.E. Aliás vários dos seus actuais dirigentes militam na C.D.E. desde o seu lançamento, em 1969. A C.D.E. é uma forma de actuação que vem do passado e o Partido Socialista nunca preconizou a sua morte artificial. Nesse ponto, subscrevo inteiramente uma concepção que foi apresentada no sentido de que o M.D.P. devia ter uma morte dialética. Morte dialética não pode, porém, confundir-se com uma reanimação artificial. Ora o que se verifica é que, de facto, o M.D.P. está a cumprir uma das suas funções que é a de encaminhar os democratas para as opções partidárias que melhor lhes correspondam.
Na medida em que se constitua como travão a essa orientação e definição dos democratas, transforma-se numa estrutura de índole antidemocrática e antipluralista. Nomeadamente, se pretende arrogar-se uma representatividade das forças antifascistas ou das forças de esquerda, para a disputa do acto eleitoral, entra no domínio do absurdo.
Prosseguiu o dr. Sottomayor Cardia:
- No passado, a C.D.E. disputou eleições porque, nessa altura, a unidade possível era a unidade entre democratas e não a unidade pública entre partidos. Hoje, há partidos e partidos fortemente implantados. Assim,
a unidade entre as forças antifascistas e democráticas e nomeadamente as que constituem a coligação governamental deverá ser uma unidade responsável, em que cada um sabe quem são os parceiros e não apenas uma mera nebulosa. Cada um deve ter a noção de qual é a força relativa dos aliados. Ora a representatividade das forças coligadas só pode ser aferida por disputa eleitoral entre listas partidárias sob a égide de partidos ou, eventualmente, de coligação de partidos. Mas isso é completamente diferente da imprecisão que, por razões de segurança, era necessária no passado, mas se tornou inadmissível agora. Somos revolucionários e não conservadores, a menos que se estivesse, o que seria reprovável, perante um fenómeno de encobrimento.
- Afirma-se no comunicado do Partido Socialista que “sem concorrência partidária não há democracia”. Qual o significado da afirmação e até que ponto, pretendendo o M.D.P. disputar as eleições, obsta essa “concorrência partidária”?
- Não a entravará se a si mesmo se constituir como partido. Mas, nessa altura, provavelmente, deixará de ter a colaboração da maioria dos seus dirigentes. Dificilmente se concebe que entre os quadros dirigentes se encontre uma maioria de pessoas que não tenha ainda uma definição partidária.
- O Partido Socialista afirma que “seria ofensa ao eleitorado democrático retirar-lhe a opção entre as diversas organizações partidárias de esquerda ou compreendidas entre a esquerda e o centro-esquerda. Pretendendo o M.D.P. disputar as eleições não terá então o eleitorado uma nova opção?
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O M.D.P., segundo julgo, gostaria que o Partido Comunista, o Partido Socialista e não sei se o P.P.D. não concorressem com listas próprias às eleições. Ora isso seria retirar ao eleitorado uma opção. Se a C.D.E. de Lisboa vier a transformar-se em partido, será naturalmente uma organização partidária como as outras. Logo, os seus militantes e aderentes não o poderão ser igualmente de outros partidos. Quanto a nós, uma vez verificada essa tendência, retiramos os nossos militantes e aderentes da actividade da C.DE. de Lisboa.»