domingo, novembro 26, 2006

Podia ser um clássico


O Bruno Cardoso Reis lançou o repto aos nascidos ou educados pós-25 de Abril de mostrarem que leram os clássicos. Eu concordo, mas vou mais longe. Num período em que, na senda de um programa televisivo, se discute quem são os «grandes portugueses», por que não discutir o cânone português? Não haverá obras que permanecem por preguiça intelectual como de leitura obrigatória nos programas de ensino secundário e outras injustamente esquecida?
Combate Desigual é uma obra de Francisco Sousa Tavares publicada em edição de autor em 1960. Podia ser um clássico. Aqui fica um excerto:
«Assente no princípio duma representação nacional, expressiva da opinião pública sobre os critérios de administração, como poderia o liberalismo institucionalizar-se em Portugal - onde como vimos não havia opinião pública, nem possibilidade de representação, nem ideal administrativo?
O povo perdera os seus modos antigos de representação e não tinha a evolução mental necessária para que o desejo de intervir na vida pública desse vida autêntica às formas políticas do liberalismo. Estas portanto se não serviam o povo, serviriam os políticos. E daí o erro fundamental do liberalismo português como de quase todo o liberalismo latino: não haver nascido do povo para o Poder, mas do Poder para o Povo (...) Porque o sistema liberal apenas serviu para transformar a coisa pública numa luta aberta de camarilhas, que não correspondiam a planos ideológicos, mas apenas a tribos políticas, a sistemas de pessoas em vez de sistemas de critérios.»
Francisco Sousa Tavares, Combate Desigual, Lisboa, Edição de Autor, 1960, pág. 33.

11 Comments:

Blogger José Manuel Dias disse...

Parabéns pelo blogue. Voltarei.
Cumps

7:34 da tarde  
Blogger Luís Aguiar Santos disse...

E o que quereria este "clássico" em vez do liberalismo? O senhor D. Miguel e a sua camarilha mais acomodada aos hábitos antigos de representação?

1:08 da manhã  
Blogger João Miguel Almeida disse...

Não, certamente FST não queria D. Miguel e a sua camarilha. Em «Combate Desigual» Francisco de Sousa Tavares reinterpreta e apropria-se de parte da herança do integralismo lusitano, mas criticando o seu carácter anti-liberal e contra-revolucionário. Considera um absurdo que uma corrente de pensamento que valoriza a tradição negue um século da História de Portugal. O que critica não são os princípios do liberalismo - uma parte do livro é a defesa do sufrágio univeral. Critica é que o liberalismo tenha sido decretado em Portugal em vez de se ter desenvolvido reformulando de um ponto de vista institucional as liberdades políticas tradicionais e nomeadamente vigentes antes do absolutismo.
Quanto a saber exactamente qual era o projecto político de Francisco Sousa Tavares não bastará ler este livro, mas também se terá de ter em conta o seu complexo trajecto pessoal e outros textos que escreveu posteriormente e foram reunidos em dois volumes de «Escritos Políticos».

12:50 da tarde  
Blogger Luís Aguiar Santos disse...

João, o liberalismo em Portugal apresentou-se sempre como tradicionalista e restaurador de liberdades e de antigas formas de representação e fez um esforço enorme de "inculturação" com o cartismo. A questão é que o que Sousa Tavares diz do parlamentarismo do século XIX se pode dizer de todos os regimes - com mais ou menos razão, muita gente diz o mesmo do regime actual, da sua partidarização sem base "ideológica"...

P.S. Por uma questão de rigor conceptual, o sufrágio universal não está directamente ligado ao liberalismo.

1:09 da tarde  
Blogger Fernando Martins disse...

Exacto. O Liberalismo do século XIX nunca foi sinónimo de Democracia. Não era o Herculano que se dizia liberal mas não democrata?

1:41 da tarde  
Blogger João Miguel Almeida disse...

Caros Luís e Fernando,

O Francisco de Sousa Tavares faz, no «Combate Desigual», uma interpretação da História de Portugal que é de facto devedora do ingralismo lusitano embora o critique em pontos de vista fundamentais. De acordo com esta visão, o absolutismo do século XVIII cortou com um regime de descentralização política e de respeito pelas liberdades liberdades tradicionais do povo. O liberalismo continua o centralismo absolutista. É com D. João V que se opera em Portugal um divórcio entre élites e povo que se encontra na origem do complexo de inferioridade dos portugueses em relação aos outros países europeus.
FST até poderia admitir a invocação da restauração das liberdades tradicionais pelos liberais, mas diria que a prática não correspondeu ao projecto.
É claro que o liberalismo não implica sufrágio universal. É por isso que se pode considerar os liberais que pretendem alargar os direitos cívicos como de «esquerda» e os que defendem o «status quo» como de «direita». Mas isso dava outra discussão...
Não creio que seja por acaso que o FST considere que é o liberalismo democrático, com sufrágio universal, que é fiel ao espírito de respeito pelas liberdades populares do século XVII.
Mostra que a História política é mais complexa do que por vezes parece...

2:29 da tarde  
Blogger Luís Aguiar Santos disse...

A visão dele não deixa de ter algum sentido, mas, como tu dizes, João, as coisas são geralmente mais complicadas do que se julga. Até porque os "democratas" (vintistas e depois setembristas) do liberalismo português foram inicialmente os mais puramente "ideológicos" e separados do "país real" e, apesar da aparente vitória da Carta em 1842 e 1851, foram eles que vieram a marcar a cultura política durante a segunda metade do século XIX, tornando a transição para a república uma quase inevitabilidade. Mas, mais uma vez ironicamente, os "democratas" de 1910 reduziram o sufrágio em nome da sua noção de democracia...

2:48 da tarde  
Blogger João Miguel Almeida disse...

Francisco de Sousa Tavares não elogia vintistas, setembristas ou o Partido Democrático da I República. Empreguei a expressão «liberalismo democrático» não para me referir às correntes oitocentistas portuguesas que podem ser catalogadas por ela, mas porque as noções de «liberdade» e de «democracia», no sentido de «governo pelo povo», expresso no sufrágio universal, são centrais no seu pensamento. Mas para FST o liberalismo não inventou a liberdade ou o povo, deu-lhes foi uma formulação política que foram mal aplicadas no século XIX.
Aliás, «Combate Desigual» não se detém na análise histórica, quando fala do passado é em polémica com as legitimações históricas de correntes políticas adversas e para justificar as tomadas de posição do autor.

4:18 da tarde  
Blogger João Miguel Almeida disse...

correcção: «uma formulação política mal aplicada no século XIX»

4:22 da tarde  
Blogger Luís Aguiar Santos disse...

O.k. e parece tratar-se de um livro interessante, de facto.

4:41 da tarde  
Blogger Luís Aguiar Santos disse...

Aliás, Henrique Barrilaro Ruas, com um percurso muito parecido com o de Sousa Tavares, deixou um livro também muito interessante, "A Liberdade e o Rei" (1971).

4:43 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home