sexta-feira, junho 30, 2006

O problema do passado


Ainda não li Conquistadores de Almas de Pinto de Sá. Ainda nem sequer consegui ver o livro à venda. Só fui informado da sua existência através da leitura de um artigo do Rui Ramos no Público, salvo erro, da semana passada. Hoje encontrei-me, no blog de Rui Bebiano, com uma leitura crítica do livro. Não vou agora, naturalmente, comentar aquilo que não li ou pronunciar-me em profundidade sobre críticas cujo objecto desconheço.
Mas lendo aquilo que os dois Ruis escreveram percebe-se que o livro interessa, ao menos em parte, de diferentes maneiras a uma certa esquerda e uma certa direita universitária. Esta lê e comenta Pinto de Sá com uma quase euforia que não esconde. É que Conquistadores de Almas parece mostrar à exaustão muito daquilo que os críticos e opositores das ideologias totalitárias de esquerda sempre defenderam. Consciente da razão que a história lhe deu e lhe dá, esta direita, na qual modestamente ouso incluir-me, está totalmente disponível para embarcar no tema.
Já a esquerda universitária vê com muita desconfiança exercícios como os de Pinto de Sá. Reconhece que há muito lixo escondido por baixo da alcatifa, lixo esse que só tem sido possível manter fora do alcance do escrutínio geral como consequência, entre outros factores, de um controlo objectivo que muita gente que no passado militou na extrema-esquerda exerce hoje sobre a generalidade dos media e do meio universitário. Sempre notei, aliás, que mesmo naquelas situações em que os antigos maoístas se transformaram em respeitáveis democratas de pendor social-democrata, "socialista democrático", liberal ou conservador, tentam tratar o tema da extrema-esquerda anti-fascista ou do período revolucionário com maior discrição e brevidade, arranjando sempre forma de desvalorizar as tropelias do passado. Como este monopólio sobre os media, como outros, se está a finar muito por culpa da blogosfera, haverá no futuro mais e melhores oportunidades para discutir estes e outros temas tabu da história portuguesa das décadas de 1960 e 1970.

quinta-feira, junho 29, 2006

Almanaque do Povo

Dava um dia de férias para ter escrito isto: "Ter orgulho do país onde nascemos, e mesmo sabendo que isto é um facto acidental, ajuda-nos a firmar raizes no mundo. Ninguém quer ser apátrida, como ninguém deseja ficar órfão. Ama-se a pátria como se ama a família a que se pertence: por uma fatalidade e por renúncia à nossa natureza mais profunda - o egoísmo. Aprender a aceitar este amor burro torna-nos seres sociais, mais em paz com todas as contrariedades e incongruências que a vida tem para nos oferecer." Sérgio Lavos, Auto-Retrato.


Portugaliae Monumenta Blogospherica: Às faldas do terceiro aniversário do Miniscente, Luís Carmelo encontra-se prestes a encerrar O "Tom" dos Blogues, livro em directo sobre a blogosfera portuguesa. Quem não acompanhou, não desespere: a reflexão vai dar livro.


Novidades?:
Eu não tenho, só sei de coisas de antigamente. Mas o Jeff Jarvis tem sempre, na sua Buzz Machine.
Pub.: Pedem-nos que divulguemos que nono número da revista aguasfurtadas (blog aqui; vídeo promocional do número acoli) já está disponível, e que a sua apresentação será feita no dia 6 de Julho, nos Espaços JUP, no Porto, pelas 21:30h.

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Futebol, BCE e moderação salarial


Desejo, como não podia deixar de ser, uma boa viagem ao meu "velho" professor Medeiros Ferreira. E já agora, que traga um bom resultado - embora, a meu ver, tal "desiderato" dele não dependa. Seja qual for o desfecho de uma partida que se antevê "dramática", espero poder ouvi-lo nos "Novos Amigos da Bola" da Antena 1, na Segunda-feira ao fim da tarde. Será, entre os três, o mais surpreendente e com maior sentido de humor.
Aproveito também para lhe fazer notar que estando nós portugueses tão habituados a ouvir o presidente do nosso banco central a pronunciar-se, muitas vezes mal, sobre a política económica e financeira dos nossos governos, parece um pouco excessivo fazer um ar tão magoado por causa de uma observação quase inócua produzida por Trichet acerca da necessidade se prosseguir, ou aprofundar, uma política de moderação salarial neste rectângulo de rosto voltado para o Atlântico. Só é pena que na Europa, no BCE ou fora dele (o que é de todo mais provável), alguém se não tenha lembrado de reclamar há uns dez anos, alto e em bom som, a adopção desse tipo de política pelos eternamente inolvidáveis governos do eng. Guterres. A crítica cheira-me um tanto a formalismo de conveniência, embora me custe aceitar que assim seja.

O futebol e o fim do império britânico


Muito haveria a dizer sobre a história do futebol (nunca mais daqui saíamos). Mas para já deixo apenas esta pequena amostra directamente da minha mesa de trabalho. É do livro de memórias de um dos muitos políticos britânicos muito divertidos (é verdade!): Denis Healey. Em 1965 ele era ministro da Defesa e estava de visita a uma das descolonizações britânicas mesmo nadinha exemplares: o Iémen do Sul, um país que já nem existe e que faz de Angola um caso de sucesso.

Na reunião com o governador Sir Richard Turnbull, este resolveu partilhar com o ministro Denis Healey a sua filosofia da história: ‘Ele disse-me que quando o Império Britânico finalmente se afundasse nas ondas da história, deixaria atrás de si apenas dois monumentos: "the game of Association Footbal" [o "nosso" futebol], e a expressão "fuck off" [vai-te foder longe]'.
[in Denis Healey, The Time of My Life. p. 283]

Sim, o inglês é um bocadinho mais permissivo, diria mesmo libertino, na linguagem do que o português. (A grande ofensa à mesa é ser chato.) Existe ainda a possibilidade do governador Turnbull (é mesmo o nome dele, um ilustre clã escocês...) ter ganho a aposta com os amigos de que conseguia dizer "fuck off" a Denis Healey sem que este o mandasse prender.

Mas o importante é perceber que no sábado estaremos a abalar um dos pilares da identidade britânica pós-colonial. Já sabem que resposta esperar.

FOTO: Denis Healey, Baron Healey of Riddlesden. Outros títulos incluem "pestanas" e "silly Healey", que ele usa com igual, ou mesmo com mais gosto.

«¿Has asumido algún compromiso con ETA?»


O El Mundo do passado Sábado – versão impressa – trazia notícias que davam claramente sinal de que o poder político – através da polícia e de outras forças de segurança tuteladas pelo ministro do Interior – está, por todos os meios ao seu alcance, a tentar interferir nos actos de um poder judicial que continua a combater a ETA e o seu braço político ilegalizado. Poder judicial esse que continua a investigar, julgar e condenar empresários bascos que aceitam pagar as “extorsões” impostas pelos nacionalistas bascos, ao mesmo tempo que dirigentes socialistas euskeras andam numa roda-viva – como atestam escutas telefónicas chegadas às mãos dos jornalistas – a tentar negociar com “representantes” dos terroristas uma redução no valor dos impostos revolucionários a serem cobrados (ou pagos).
A questão da “interferência”, penso, não merece grandes comentários. Fala por si e diz quase tudo acerca da natureza do actual governo espanhol e do governo do Partido Nacionalista Basco. Mas pode-se ainda acrescentar que a questão da “interferência” introduz mais um importante elemento de profundo mal estar na deriva nacionalista que a Espanha vive desde a vitória de Zapatero nas legislativas. Refiro-me ao acontecimento mais paradigmático dos tempos recentes e que foi uma abstenção a rondar os 50% no referendo sobre o novo estatuto da Catalunha e, como se não bastasse, a promessa feita por Maragall – líder do PSC – de que não voltará a ser candidato à generalitat nas próximas eleições regionais daquela região. Tão elevada abstenção, todos reconhecem, quer apenas dizer que a questão do estatuto – que rompe, de facto, com o paradigma constitucional espanhol de quase três décadas – é, afinal, um problema que interessa, sobretudo, às elites. Aos catalães e aos “espanhóis” – aos bascos, aos navarros, aos galegos, aos andaluzes, aos valencianos ou aos murcianos, entre muitos outros – interessam, sobretudo, a questão do desemprego, da segurança ou da sanidade da economia.
Mas o mais importante é que as ingerências totalmente ilegítimas do poder político no trabalho dos magistrados, a par das cunhas que o PSE – e o PNV – andam a meter junto dos terroristas tentando negociar os valores do imposto revolucionário a pagar por empresários, significa que Zapatero anda a mentir. Isto é, voluntária ou involuntariamente, e antes de que tudo esteja definido do ponto de vista político, os socialistas espanhóis começaram a negociar com os terroristas. Por exemplo, não deixou de ser notado por alguma imprensa o facto de vice-chefe do governo espanhol (Maria Teresa Fernández de la Vega) ter baixado os olhos quando, numa conferência de imprensa, afirmou que não assumiu compromissos com os terroristas.
É natural que os espanhóis procurem a paz interna e acreditem que ela é possível. O discurso apaziguador de Zapatero pareceu poder ser capaz de resolver o problema, não apenas por razões geracionais e ideológicas, mas sobretudo porque parecia moralmente elevado e politicamente eficaz. Simplesmente aquilo que os espanhóis estão cada vez mais a perceber é que o problema nacionalista tem sido demasiado empolado pelas elites políticas de quase toda a Espanha. Por outro lado, têm cada vez mais a certeza de que a paz com a ETA implicará um conjunto de cedências – éticas, morais e políticas – que não estão ainda em condições de suportar. Finalmente, está a entrar-lhes pelos olhos dentro que a suposta e autoproclamada superioridade moral dos socialistas não passa de uma impostura.
Em resumo, se no último par de anos a balança política e eleitoral espanhola parecia pender inexoravelmente para a esquerda, começa agora a inverter-se. Os socialistas, que também embarcaram na questão da revisão do estatuto das autonomias e da negociação com a ETA com o objectivo de transformarem o Partido Popular numa formação essencialmente castelhana, arriscam-se cada vez mais a que o tiro lhes saia pela culatra. O PP, mais tarde do que cedo, poderá voltar ao poder em Espanha mercê de uma por muitos considerada improvável subida eleitoral em toda a Espanha e não apenas nas duas Castelas e na Comunidade de Madrid.
P.S.: A pergunta que dá o título a este texto foi dirigida por Rajoy a Zapatero no decurso do último encontro que tiveram na Moncloa. Zapatero terá respondido que não!

quarta-feira, junho 28, 2006

Aves raras


Por mais "rara" que uma "ave" seja, não deve ser considerada extinta. Até porque os nossos sentidos não esgotam a realidade. Como esta história, pingando moralidade, nos ensina...

Invejosos!


A notar por esta notícia, ao menos numa coisa vamos há já muito tempo à frente dos espanhóis. Mas pelos vistos, nem sequer nestes pequenos grandes detalhes nuestros hermanos querem ficar atrás dos seus vizinhos que vivem cada vez mais pobres e mal acondicionados do outro lado da raia.

Não podia esperar mais um bocadinho?


A política das pseudo causas está de volta! Ou será que só querem ganhar pelo cansaço ou apanhar os adversários distraídos? Tenho para mim que é um frete que a esquerda radical - sem saber - vai fazer a Sócrates. Discute-se a despenalização do aborto, decide-se o que houver que decidir e, no fim, fica tudo na mesma porque o nosso sistema de saúde - por várias razões - jamais suportará a legalização da interrupção voluntária da gravidez nos termos em que uma minoria absoluta de portugueses a propõe. Pelo meio, o governo poderá mutiplicar até ao infinito medidas absurdas como esta e permitir que os portugueses continuem a aceitar a total desorientação existente em matéria de política económica e de política orçamental.

terça-feira, junho 27, 2006

"Menos mal qué nos queda Portugal!"


A Charo está triste. A selecção espanhola de futebol, mais uma vez, não conseguiu cumprir aquilo que parecia prometer. Resta-lhes, assim de repente, o Andebol, a Fórmula 1 e o Ténis. Agora há que ir consolar a Charo.

segunda-feira, junho 26, 2006

A Vaca do Vasco III

Segundo a lenda contada por Vasco Pulido Valente, alguém deu uma vaca a um pobre e prometeu-lhe que, se esperasse, recebia também um boi. O pobre não esperou pelo boi e matou a vaca. Porquê? Porque só lhe davam o boi se preenchesse um formulário electrónico e o pobre não tinha acesso à Internet.

Duas peças!

Não sei se a imprensa portuguesa tem falado do caso. Na espanhola não se fala doutra coisa. O biquini faz 60 anos. Faltam cinco para se reformar?

A telenovela

Que a extrema-esquerda portuguesa não se entenda, também quanto à questão timorense, não terá nada de novo. O que apesar de tudo esperaria é que fossem minimamente convincentes nos seus comentários sobre uma questão de tão grande relevância para os destinos da pátria portuguesa (e penso que também da própria pátria timorense). Infelizmente, sobretudo para essa mesma esquerda, nada ultrapassa o maniqueísmo mais básico. Para Ana Gomes, na Causa Nossa, o mau é o muçulmano Mari Alkatiri. Para Daniel Oliveira, no Arrastão, o belzebu é o anticomunista primário chamado Xanana Gusmão. Por mim, apenas digo que sigo com emoção não a telenovela timorense mas as suas ramificações na esquerda caviar-radical portuguesa. Cenas dos próximos capítulos?

Época de caça ao Bruno

Parece que a época de caça ao Bruno deste ano começou oficialmente. Evidentemente sinto uma certa preocupação.

Fair Play and all that

Magnífica demonstração de fair play por parte (de uma pequena parte) do Norte da Europa! Bem ilustrada neste sítio de comentários da BBC em que um holandês explica aos vizinhos ingleses, caso eles ainda não tivessem percebido, o fair play da Holanda em todo o seu esplendor: I hope the England squad will succeed in breaking Luis Figo’s legs. Good luck. Greetings from Holland.

E a nossa selecção? Perderam a cabeça várias vezes. A diferença é que perdiam realmente o controlo da cabeça. Não eram faltas feias para ver se arrumavam jogadores chave. Somos uns inocentes até a fazer batota! Temos de aprender com o Norte da Europa a fazer batota com eficiência, a fazer batota por objectivos!
A selecção da Inglaterra poderá ser bruta, mas ao menos não costuma ser de fitas. Por aqui toda a gente (inglesa) está convencida de que, não apenas nos vão arrumar, mas que é mesmo desta é que vão ganhar o campeonato do Mundo! Em Inglaterra o fanatismo pelo futebol só é igualado pela cegueira no apoio à selecção. Há quarenta anos que eles não percebem porque é que perdem!! Pessoas perfeitamente racionais "fora de campo" estão piamente convencidas de que só azares inexplicáveis e outras razões misteriosas - ou nem tanto: a batota portuguesa no Euro, a influência maligna do Sven - podem justificar esta evidente anormalidade.
A Inglaterra não tem jogado nada? Nem sabe como é que aqui chegou? Isso é lá fora. Aqui por terras de Sua Majestade só se vê uma taça que pertence naturalmente a Inglaterra ser inexplicavelmente roubada década após década! A qualidade real do jogo inglês nada tem a ver - nunca - com seu verdadeiro potencial. Afinal, foram eles que inventaram o futebol! É difícil, como explicava há uns tempos o Melvin Bragg, conceber que os estrangeiros viram o jogo, pediram a bola emprestada e disseram: 'Hey! We can play that, and better!' E concluía com tristeza: 'And, of course, the trouble is they could, and they can!'
Mas nem tudo é mau. Há bandeiras por todo o lado. Há hooligans nalguns lados. Mas também há saldos especiais durante as horas do jogo de Inglaterra - 10% em cima de qualquer desconto! Para ver se se vende qualquer coisinha. Infelizmente vão acabar no próximo sábado. Sim, porque toda a gente sabe que desta vez é que Portugal vai, não só arrumar a Inglaterra, mas ganhar o campeonato do mundo! (Esta é aquela parte em que se ganharmos digo: Eu bem avisei! E se perdermos digo: Estava a brincar!)

domingo, junho 25, 2006

Contrastes

O contraste entre o teor da minha resposta ao Bruno e o teor do comentário que lhe fez o Fernando torna claro por que não sou um conservador. Ser liberal (clássico) pode ser sinónimo de "muito ideológico" (embora eu, por mim, retirasse a parte ideo da expressão entre aspas), quiçá de revolucionário...

A Pobreza da Ideologia.

O texto do Luís Aguiar Santos louvando as qualidades do reformismo de Mousinho da Silveira e as virtudes universais do liberalismo, não poderá deixar ninguém indiferente. Exclamar-se-á: “Aí está o remédio para os problemas portugueses.” Decrete-se o liberalismo, o bom e o autêntico liberalismo, e a pátria – o mundo mesmo – regenerar-se-á. Ora sucede que estas receitas milagrosas são quase sempre uma falácia e têm-no sido ininterruptamente para Portugal e para os portugueses. Fundamentalmente porque os últimos duzentos anos se têm caracterizado por um triunfo das ideologias, ao mesmo tempo que, em toda a parte, e nesse mesmo lapso de tempo, a realidade, nomeadamente a portuguesa, insiste em não se vergar ao império das ideias e da ideologia.

Senão vejamos: derrotados os miguelistas em 1834 e decretado o liberalismo que pretendia pôr fim ao odioso “Antigo Regime” – sinónimo de “absolutismo” ou de “despotismo” e de subserviência da sociedade e do poder político à religião católica apostólica romana – Portugal e os portugueses fizeram finca-pé e não saíram durante quase vinte anos do caos em que tinham caído desde que os primeiros ventos da Revolução Francesa começaram a soprar na Península Ibérica.
Veio depois a “Regeneração”. O país finalmente pacificado. Fontes terá sido um estadista de excepção e D. Luís o maior dos reis portugueses desde D. Pedro IV até à queda da Monarquia. Mas chegadas à década de 1870, as elites portuguesas, ou uma boa parte delas, tinham percebido que o país não só não queria o liberalismo, como o grosso dos liberais não queria o povo. Na província o povo vivia ainda no Antigo Regime, independentemente do caminho-de-ferro, do telégrafo, das novas pontes e estradas e da moderada e discreta modernização das maiores cidades que, a custo, se foi fazendo. Nestas mesmas cidades (poucas) que tinham crescido, como num ou noutro pólo industrial moderno, o “proletariado” vivia não apenas miseravelmente mas, sobretudo, não vendo no liberalismo – provavelmente porque estava cego – qualquer vantagem. O absolutismo despótico fora substituído pelo liberalismo oligárquico. Resumindo, tudo ficara na mesma. Como se não bastasse, economicamente a experiência liberal portuguesa no século XIX foi um desastre. Como demonstrou Jaime Reis em trabalhos pioneiros, foi na segunda metade do século XIX – com liberalismo político por um lado e proteccionismo económico por outro – que se cavou o moderno atraso económico português apenas aliviado no decurso dos últimos quinze anos do “fascismo”, nos dez que durou o cavaquismo e em cerca de quatro dos seis que durou o guterrismo de má memória. No mínimo o liberalismo manteve o povo ignorante e miserável.

Poder-se-á dizer que o programa liberal inicial foi interrompido, abandonado, corrompido e que nada, ou muito pouco, daquilo que sucedeu fazia parte da brilhante agenda política e ideológica traçada por Mousinho. Sucede que, e acima de tudo, as reformas de Mousinho eram politicamente um absurdo. Uma revolução, eventualmente bem intencionada (como quase todas), mas imposta a um povo que poderia necessitar de muita coisa mas certamente não das reformas liberais nos termos em que foram pensadas por Mousinho e pelos seus sucessores. Foi uma revolução a partir de cima, muito à imagem daquelas que caracterizariam a história do século XX, mas que, como demonstrou Albert Silbert, deixou a economia e a sociedade portuguesa em pleno «Antigo Regime» até ao último terço do século XIX, com a agravante de ter criado condições para a ascensão do republicanismo radical e, a prazo, para a erosão do liberalismo, da democracia e do parlamentarismo como opções sérias na governação do país.
O advento do integralismo e de uma espécie de catolicismo ultramontano, do socialismo, do anarquismo, entre outras ideologias e movimentos de pendor mais ou menos totalitário, seriam sempre inevitáveis em Portugal visto o fracasso clamoroso da experiência liberal europeia desde que a chamada “grande depressão” da década de 1870 virou do avesso a realidade económica, política e social do mundo ocidental. No entanto, e naquilo que diz respeito a Portugal, tais ideologias e movimentos nunca se teriam constituído em alternativas sérias sem o fracasso político e social profundo que foi o projecto liberal da segunda metade do século XIX e primeiros dez anos do século XX. E mesmo que nada disto tenha sido exclusivamente um fenómeno português, ao mesmo tempo que contou aqui com a ajuda da experiência republicana e com impacte dramático da Grande Guerra, verdade é que, globalmente, a experiência liberal portuguesa foi um desastre – mesmo que evitemos os exageros de apreciação feitos pelos vencidos da vida.

Mas ainda que não se esteja de acordo quanto ao “balanço” histórico do projecto liberal português entre 1834 e 1910, a verdade é que as soluções de liberalismo puro apresentadas pelo Luís são não apenas totalmente impraticáveis nos dias de hoje – ignoram as realidade do país, da Europa e do Mundo nos dias de hoje, mesmo que o diagnóstico esteja parcialmente correcto – como, ao mesmo tempo, têm um ar requentado. Requentado, desde logo, porque significariam a repetição no início do século XXI, salvaguardadas as devidas distâncias, de uma experiência que os portugueses recusaram – ou ignoraram – há mais de 150 anos. Mas requentado ainda pelo facto dos liberais portugueses estarem a vender uma receita milagrosa – a salvação da pátria pelo liberalismo – que outros, normalmente seus adversários ou inimigos, igualmente venderam e experimentaram no passado sem qualquer êxito a médio e a longo prazo. Foi assim com o “jacobinismo” da República, com o corporativismo de Sidónio e de Salazar. Foi também assim com as mais variadas versões de social-democracia ou socialismo de pendor marxista advogadas por partidos com múltiplas siglas, designações e histórias, tanto antes como depois de derrubado o governo de Marcelo Caetano. As promessas de amanhãs que cantam foram-nos ainda dadas quando se garantiu que a descolonização produziria milagres, embora bastante inferiores àqueles que a entrada na Europa indiscutivelmente assegurava. Hoje, por exemplo, e essa é opinião comum, o milagre produzir-se-á quando resolvermos o problema do déficit nas contas do Estado e a crise económica que tanto está a montante como a jusante daquele. O êxito, garantem, exige um projecto ou uma estratégia de reformas. Seja pela instauração do liberalismo que o Luís defende, seja pelo triunfo do “socialismo reformista” que o Bruno ama. Mas se olharmos para trás com um pouco de atenção veremos que as receitas foram já todas dadas e aplicadas. Infelizmente, e até hoje, sem resultado que se visse. Por mim, propunha apenas que os portugueses, tanto quanto possível, se despissem de ideologias e de sanha reformista ou regeneradora que, entre outras coisas, produz muita legislação, muito “stress” e escassíssimos resultados práticos. Nunca advogaria, nem advogo, grandes reformas, rupturas e, menos ainda, revoluções. Defenderia o diálogo, a persuasão, o pragmatismo. Preferiria, em resumo, a política à ideologia!

sábado, junho 24, 2006

Eu, qual Mousinho da Silveira...


Num comentário recente a um post meu, o Bruno convidou-me a esclarecer em que “cortaria” eu o Estado (presumo que “se mandasse”, como se costuma dizer). Não percebi se ele vê esse exercício de me armar em reformador-mor como condição moral para poder continuar a criticar o actual estado das finanças públicas. Suspeitando que sim, mesmo correndo o risco de excessiva exposição à crítica alheia e à própria e humana propensão para o disparate, decidi aceitar o seu desafio, vestindo as roupagens de Mousinho da Silveira. Foi este o único grande reformador da nossa história, tendo em conta o que Borges de Macedo nos ensinou sobre Pombal, que foi meramente, um pouco como Salazar, o organizador da eficácia de um modelo de Estado e de sociedade para o qual já se caminhara antes de forma um tanto ou quanto improvisada (um pouco como há uns anos Cavaco e hoje Sócrates tentam ser os organizadores do Estado “social”). A questão para mim é que Portugal está precisado de uma verdadeira reforma que acabe com este Estado “social” e não de ganhos de eficácia na sua gestão, que o viabilizem (como é o objectivo do actual governo e já era o do anterior). O Bruno pensa como o governo e como a esmagadora maioria dos portugueses. Ora, para não chocar em demasia – que somos povo de brandos costumes –, eu apresento uma versão light daquilo que julgo verdadeiramente apropriado para a reforma do Estado. Aqui vai.

Sem tocar, para já, nas estruturas administrativas dos municípios e das regiões autónomas nem nas estruturas próprias da presidência da república, do parlamento e da presidência do conselho de ministros (que teriam de ficar para um segundo fôlego reformista), eu aboliria as estruturas e serviços de todos os ministérios excepto estes: justiça, administração interna, defesa, finanças, negócios estrangeiros e obras públicas (regressaríamos, assim, aos governos de seis ministros do tempo da monarquia, pressupondo que um deles acumularia a presidência – ai estes saudosistas da Carta…). Os funcionários de todos os ministérios abolidos poderiam ficar com uma pensão vitalícia correspondente a 75% do seu vencimento actual – percentagem que deveria ser proporcionalmente reduzida a partir de determinado montante de outros rendimentos declarados. A entrada de novos funcionários nos ministérios remanescentes deveria ser congelada. Muito património seria vendido (todo para amortizar a dívida pública, depois de acudir às próprias despesas da operação de desmantelamento) e tudo privatizado, nomeadamente escolas, centros de saúde e hospitais. Os municípios poderiam requerer a anexação de alguns desses serviços se assegurassem o respectivo financiamento dentro do seu nível de despesa actual (implicaria que muitos teriam de optar entre essa nova despesa e outra menos útil que agora praticam). Nos ministérios abolidos poupar-se-iam as despesas “logísticas” actuais de manutenção e, pelo menos, 25% da sua actual despesa com pessoal abateria à despesa pública.

Tudo isto seria uma das duas partes desta reforma. A segunda diz respeito à segurança social. Para já, manter-se-iam as modificações introduzidas pelo actual governo ao regime das pensões de reforma, com a diferença que os princípios recentemente anunciados para a iniciativa privada seriam desde já também aplicados aos funcionários públicos. O actual regime de comparticipações em despesas de saúde (medicamentos e tratamentos), para não confundir muito as coisas, poder-se-ia manter. O que mudaria seria a obrigatoriedade dos cidadãos participarem no actual modelo de descontos e benefícios, podendo passar a optar por seguros de saúde privados. Por outro lado, o regime de pensões poderia ser substituído por contas poupança reforma em bancos ou seguradoras (com um montante mínimo de descontos mensais), embora se mantivesse temporariamente uma contribuição social obrigatória de modo a acudir à despesa com as pensões do regime antigo (actual), mas à qual abateria proporcionalmente tudo o que fosse voluntariamente descontado acima do mínimo requerido por lei. No fim, tendo apenas três impostos (IVA, IRS e IRC), estabelecer-se-ia uma taxa única que, sustentadamente, sem fazer crescer défice e endividamento, poderia ser substancialmente reduzida.

Depois de tudo isto, desta reforma de duas partes simultâneas e interdependentes e da sua consequência fiscal, talvez se pudesse começar a pensar seriamente nas duas seguintes: a reforma das administrações municipais e autonómicas e a reforma dos seis ministérios remanescentes. Tudo isto teria de ser feito dentro da legalidade, requerendo provavelmente uma revisão constitucional. Que deveria estar agora a ser discutida pelo País se a generalidade das pessoas estivesse realmente convencida, como eu, de que existe um enorme desperdício de recursos e de oportunidades com o sistema actual. Mas ter ideias sobre a realidade não me impede de a tentar ver como é, sem ilusões, como já quis deixar claro
aqui.
Nota: suspeito que o Bruno pense, por aquilo que escreve, que o problema financeiro do Estado é uma das consequências de uma crise económica mais geral no País. Se pensa assim, estamos de facto em completo desacordo (por mais irrelevante que isso seja), já que claramente considero o peso da despesa pública como a causa da crise económica.

Protocolizemos

Protocolizemos, portanto, mais uma bocadinho, visto que é verão e o país não tem muito que fazer. (Eu tenho, mas fica o presente poste por conta do intervalo.) O meu amigo (e do povo) João Almeida não percebe a importância destas guerras do protocolo. Somos dois. Mas não fui eu que interpelei o parlamento. Mas não fui eu que legislei sobre o assunto. Limitei-me a fazer umas piadas. (Arriscando-me, assim, a avaliar por este comentário, à ira de quem parece querer ser o monopolista das piadas políticas em português).
Apesar de tudo o João decidiu dar umas achegas a esta discussão que considera inútil. E concordo que a falar-se seriamente sobre o assunto há que situar a questão historicamente. A tradição é o fundamental em questões de protocolo. Mas misturas, João, alhos e bugalhos. O Cardeal Patriarca não é, nem nunca foi, Chefe de Estado. Que o Estado fosse mais ou menos regalista é irrelevante. No protocolo do Antigo Regime acima do Rei estava, não o Cardeal Patriarca, mas o Santíssimo Sacramento. (E, caso não tenhas reparado João, quando qualquer chefe de Estado vai à missa, ainda está.)
O que é (um bocadinho) relevante, aqui e agora, é que parece haver um grupinho de anti-católicos militantes que quer transformar os poucos direitos e deferências que a Igreja Católica tem em Portugal, e que se destoam na Europa é pela sua escassez, em supostos privilégios. Evidentemente não consigo levar os "argumentos" ou a "ameaça" a sério. Mas pode ser que seja forçado a mudar de ideias. Veremos as cenas dos próximos episódios.

Historicamente os Cardeais têm protocolarmente o estatuto de príncipes de sangue. Sendo o equivalente moderno na maioria dos países civilizados - i.e. excluindo a China, Coreia do Norte, Vietname, etc. onde o lugar protocolar dos cardeais e outros prelados tem sido frequentemente a cadeia - a posição de Ministro de Estado ou Primeiro-Ministro, com precedência sobre toda a gente excepto os Chefes de Estado ou, eventualmente, Presidentes do Parlamento e Chefes de Governo. Esta tradição tem origem no facto de os Cardeais serem os Senadores do Papado, e este ter estado presente na Criação, não do Universo, mas do sistema diplomático moderno. E quem quiser razões mais concretas e presentes não terá dificulade em encontrá-las no facto da Igreja Católica ser a instituição mais global e mais numerosa e mais praticante de um Mundo em crise de convicções e de afiliações.

Mas sobretudo e em todo o lado o protocolo baseia-se na tradição. É por isso, por exemplo, que o Presidente laico da República laica Francesa é Cónego de São João de Latrão, como antes dele o eram os Reis de França. (Que é como quem diz, a ignorância francófila dos nossos jacobinos é muito afoita). A razão de ser da tradição protocolar é que a razão pode ser um bocadinho indelicada. O João, como o Daniel Oliveira, preferem ignorar a minha piada sobre a "Primeira Dama". Mas é uma piada séria. Qual é a razão de ser, política e democrática, do papel protocolar dos esposos dos governantes? Absolutamente nenhum. Ninguém os elegeu. É uma questão de tradição e antiquada cortesia. (Que é como quem diz: se esta preocupação com o protocolo não é mais uma face de um anti-catolicismo primário, se é mesmo uma questão de razão e representatividade, então acabe-se com as cortesias de Estado para os esposos.)

Onde pisas terreno perigoso, João, é quando pareces argumentar que se deveria aceitar os preconceitos anti-católicos da parte de não-católicos. Suponho que se um Presidente não-católico ficar ofendido pelo privilégio que é o número desmesurado de Igrejas Católicas em Portugal então devemos começar a demoli-las. É a transformação da necessidade de respeitar os direitas das minorias no império dos preconceitos das minorias.

quinta-feira, junho 22, 2006

O Diabo e o Protocolo

Neste blogue em que é consensual a presença da Igreja Católica no Protocolo de Estado, cabe-me a mim fazer o papel de Diabo. Ao encarnar tão ilustre personagem, começo, como é óbvio, por afirmar que o problema não existe. Tal facto é independente da vontade de qualquer grupo parlamentar e resulta das especificidades de organização da Igreja Católica – ela é também representada por um Estado, o Vaticano. Logo, a não ser em cenário imprevisto de corte de relações entre Portugal e a Santa Sé, a Igreja Católica terá sempre representação garantida no espaço reservado ao corpo diplomático. Neste aspecto, distingue-se de outras confissões religiosas. Não se pode escrever que goza de um privilégio, mas de um estatuto diferente resultante do seu desenho institucional. O núncio não representa apenas os interesses de um pequeno Estado, desempenha também, como qualquer membro do clero, uma missão de natureza religiosa. Além disso, o projecto do PS prevê que as autoridades religiosas continuem a ser convidadas para cerimónias oficiais, sendo o seu lugar decidido pela organização do evento.
Além de se ter em conta as especificidades institucionais da Igreja Católica, convém ter presente que, ao contrário do que acontece no Reino Unido, Portugal é uma República. Daqui se deduz que podemos vir a ter um Presidente judeu ou muçulmano, após um Presidente agnóstico – Mário Soares – e um Presidente de origem judaica, embora não praticante – Jorge Sampaio. Se a Igreja Católica mantivesse uma situação de privilégio no Protocolo de Estado tal facto poderia chocar a sensibilidade desse eventual Presidente. Mas o problema também se pode ver da perspectiva oposta: um fanático católico poderia ficar chocado por o Protocolo de Estado colocar o Cardeal-Patriarca ou o Presidente da Conferência Episcopal numa posição de inferioridade hierárquica em relação a um Chefe de Estado de uma confissão minoritária. Apesar de eu achar, que por princípio, as posições de fanáticos não devem ser tidas em conta, este exemplo permite captar o significado do Protocolo de Estado como uma hierarquização simbólica.
Usa-se como argumento a favor da manutenção do status quo a tradição e até a tradição liberal, mas não se pode esquecer que o sentido desta tradição era o regalismo: a subordinação do poder espiritual ao poder temporal. Durante a monarquia constitucional os padres eram funcionários públicos pagos pelo Estado. Após as convulsões da I República, o Estado Novo voltou a dar importância à Igreja Católica no Protocolo de Estado. Mas, na prática, servia-se da Igreja afirmando que a servia. Basta ver como, na crise após as eleições de 1958 e da carta do Bispo do Porto, Salazar lembra as autoridades católicas que a Acção Católica não se encontrava garantida pela Concordata. Se os católicos quisessem fazer política fora da União Nacional e contra a «frente nacional», ele não hesitaria em acabar com a Acção Católica.
Em suma, a tradição expressa neste Protocolo de Estado nada tem a ver com uma «Igreja livre num Estado livre». E a sua recusa não implica uma atitude jacobina. Um católico intransigente bem poderia achar que o Protocolo vigente é que era obra do demónio e lançar contra ambos um vibrante: viva Cristo-Rei!

PS Na minha lista de precedência, a namorada está acima do blogue. Dêem-me a pancada que me derem só respondo segunda-feira.

quarta-feira, junho 21, 2006

Comédia política recomendada à atenção do Bloco


O Bloco continua claramente concentrado, como fica demonstrado pela voz de um dos seus mais autorizados porta-vozes, no essencial para a vida do país no momento actual: o protocolo de Estado!

Fico satisfeito, naturalmente. Pois vejo assim confirmada a minha análise anterior de que para o BE a revolução agora começa no protocolo. (E particularmente, anti-catolicismo primário assim obriga, por derrubar da sua cadeira protocolar Sua Eminência Reverendíssima o Excelentíssimo Senhor Cardeal Patriarca de Lisboa).

Fico a aguardar o passo lógico seguinte da parte do grupo parlamentar do BE (talvez até com o apoio de alguns deputados do PS à procura da juventude perdida): pedir o agendamento urgente de uma interpelação a respeito do fim lugar protocolar da Primeira Dama!!!

A Primeira Dama!? Mas o que é isso, Deus meu? Quem é que a elegeu? Que representatividade é que ela tem? Até o próprio nome é um atentado aos direitos da mulheres! (E que melhor vingança para o veto presidencial às quotas para as senhoras!) Parece-me absolutamente evidente que a Primeira Dama não tem qualquer lugar no protocolo de Estado. Absolutamente nenhum. Absolutamente evidente. (Já o Primeiro Cavalheiro, não sei, teremos de ver na prática como funciona). Fico a aguardar ansiosamente por mais esta iniciativa revolucionário do BE.
IMAGEM: A primeira dama de França, Maria (neste caso Antonieta), a caminho da guilhotina. Um método quiçá algo radical, mas altamente eficaz de resolver problemas de protocolo.

Liberalismo e Relações Internacionais

Carlos Novais na Causa Liberal e Rui Albuquerque na Blasfémias envolveram-se em luta titânica sobre o que é ser liberal em relações internacionais (com a Patricia Lança a ajudar). A luta não deixa de ser saudável pela sua frescura nesta altura do ano.

Mas talvez seja interessante recordar que há duas grandes escolas "clássicas" que têm dominado o campo da teoria das Relações Internacionais nas últimas décadas (e não apenas uma). Há, claro, o Realismo e o Neo-Realismo (que neste caso não quer dizer comunismo literário, mas Realismo Sistémico ou Estrutural, pós-Kenneth Waltz). Mas há também a Escola Liberal e Neo-Liberal (e que neste caso não quer dizer anti-Estado, mas sim assente em teorias da organização, e focando a atenção no papel das ideias e das normas que regem a sociedade internacional, do direito internacional à OMC, e em que se destacam nomes como de Robert Keohane ou Joseph Nye). Em termos de publicações, a par da International Security, há a não menos prestigiada International Organization. Neste caso nem sequer se pode alegar, como tantos liberais de direita gostam de fazer, que são jornalistas ou políticos americanos ignorantes que usam por engano a etiqueta liberal. São centenas ou milhares de académicas com formação especializada em ciência e filosofia política que a escolhem. Enfim, tipos que leram Kant, Paz Perpétua e tal.

Se há uma corrente que até tem estado a jogar algo à defesa nos últimos anos é o neo-realismo e não o neo-liberalismo, que se tem mostrado particularmente dinâmico na sua reencarnação constructivista. Curiosamente, Alexander Wendt, um dos pontas-de-lança desta linha da frente intelectual, recentemente eleito pelos seus pares o autor do livro de RI mais influente da última década, publicou em 2003 um artigo (que deu grande brado) intitulado precisamente: Why a World State is Inevitable? Em suma, se o Carlos Novais e o Rui Albuquerque não acertaram na mouche - há por ali alguns argumentos histórica e teoricamente duvidosos de ambos os lados, penso eu de que - pelo menos têm um ideia de por onde anda o alvo.
Já agora (e sem querer envolver-me na discussão, claro) diria mesmo mais:
  1. Quem não acredita na possibilidade de cooperação ou na realidade do direito internacional não acredita na possibilidade de comércio internacional;
  2. O federalismo e a ideia da paz democrática são centrais na filosofia política liberal clássica;
  3. Um realista filosoficamente coerente seria a favor de um Estado absolutista e do protecionismo mercantilista.

Ir à procura do Vasco e sair com o Gilberto...


Ontem entrei na FNAC do Chiado para ver (talvez comprar) a nova biografia de Paiva Couceiro, da autoria de Vasco Pulido Valente. O livro estava (já) esgotado. Como precisava de leitura para acompanhar a minha senhora a fazer horas para um jantar, escolhi um velho namoro em eterna fila de espera: "Casa Grande e Senzala", de Gilberto Freyre. Confesso esta falha nas minhas leituras. Mal abri o livro, brotaram, viçosos, animados, coloridos, cheirosos, os orixás, as sinhá-moças, a farinha de mandioca, os capitães do mato, os jagunços, os senhores de engenho, os tupinambá, os padres da Companhia e eu sei lá mais o quê. No início, antes do mundo que o português fez no Brasil com o índio e o negro, muita caracterização do próprio Portugal... Tinha de ser e eu, no fundo, já sabia. O livro saiu comigo e passou à frente dos outros. O método pode ser eclético e as fontes de uma obra escrita em 1932 desactualizadas. Mas o que ficou escrito, percebe-se, tem validade perene pela acutilância da análise e o saber ir ao que interessa dos grandes antropólogos. E o livro, senhores, lê-se sem se conseguir parar (já agora, comprei a edição dos Livros do Brasil, com aquele formato antigo de que gosto muito – não encontrei imagem na Net). Uma nota final: é por lerem pouco Freyre que há brasileiros que dizem que preferiam ter sido colonizados pelos Holandeses; até poderiam ter-se saído melhor, mas seriam outra coisa, não brasileiros).

terça-feira, junho 20, 2006

A Vaca do Vasco II

A célebre história da vaca e do pobre contada por Vasco Pulido Valente ilustra bem não o atavismo do nosso povo, mas a esquizofrenia da nossa classe dirigente.
Em primeiro lugar, por causa do delírio megalómano – dar vacas a pobres? Mas quem é que o fez em nove séculos de História? Onde é que estão os nomes dos ministros e dos beneméritos proprietários, industriais ou banqueiros? O que eu sei é que a mulher de D. Dinis dava pães aos pobres, às escondidas do marido. Não eram de certeza pãezinhos de leite mas foram argumentos a favor da sua santidade.
Depois a irracionalidade do acto: se dessem um boi a uma família que já tivesse uma vaca, o mais provável é que esta esperasse pelos vitelos. Se quisessem avaliar as capacidades de trabalho e de paciência de um pobre que nunca teve nada de seu, dessem-lhe umas galinhas e uns coelhos, animais de criação baratos e que se reproduzem depressa. Para quê tentá-lo com uma vaca? Ainda, por cima, com alguma dose de sadismo, dizem-lhe para esperar pelo boi. O pobre não pediu a vaca nem o boi, se pediu alguma coisa foi esmola pequena. Mas há-de pensar: se querem que eu fique com os dois animais, por que é me não mos dão logo? Hoje passou-lhes pela cabeça darem-me a vaca, amanhã pode passar-lhes pela cabeça não me darem o boi. Quem sou eu, que toda a vida fui pobre e tenho apenas, por sorte, uma vaca, para lhe exigir o boi prometido?
Por fim, quando tudo corre mal, culpa-se o pobre e renuncia-se a qualquer esforço de auto-crítica. Moral da história: mais vale matar a fome do que confiar em lunáticos.

A Vaca do Vasco

Gostei de ler este post sobre a história do pobre e da vaca contada pelo Vasco Pulido Valente na entrevista à Rádio Renascença/Público/TV2.
PS Ainda sobre a magna questão das vacas hei-de publicar um post mais longo.

Sobre as vacas que nos vêm ocupando e outros assuntos relacionados (mais ou menos bovinos)


Caro Bruno, não sei se disse que “os privados é que pagam a crise”, mas é verdade que essa ideia estava implícita no que escrevi. Julgo que é verdade que a generalidade das pessoas empregadas no sector privado estão mais vulneráveis na sua situação laboral do que a generalidade das pessoas empregadas no sector público. Essa diferença não se deve a nenhuma característica particularmente estranha do sector privado, mas, pelo contrário, ao excesso de protecção de que goza a generalidade dos funcionários públicos.

Quanto à questão de quem produz e de quem gasta, como sabes, temos – de há muito – uma clara divergência: eu julgo, de facto, que o sector público, financiado como é pela via fiscal e não pela venda de produtos e serviços no mercado, não é realmente um sector produtivo, mas sim, por natureza, um sector gastador de recursos de que teve de se apropriar coercivamente pela via fiscal. Como não sou anarquista, julgo que isto tem de acontecer nalguma medida. O que não acho razoável é a medida a que já chegámos (e cujo crescimento, apesar de todo o “rigor” mais recente, continua incontrolado).

Depois, tu pareces achar que o sector privado causa desemprego ou é responsável por desemprego por não se “reformar”, por não se “modernizar”, por não planear, etc. Não concordo. Não sei o que entendes por “planeamento” neste contexto, mas deixa-me que te diga que não conheço nenhum negócio (privado) que sobreviva um ano sem o planeamento comezinho que tenho o vício de exigir ao Estado: que gaste apenas os recursos disponíveis ou os que alguém lhe emprestou temporariamente. Mas isto deve ser de estar habituado ao trabalho numa pequena empresa onde se tenta planear o trabalho pelo menos a médio prazo e onde estamos sempre a ser confrontados com mudanças legislativas, nova regulamentação, novas directivas governamentais, que todos os anos nos obrigam a reformular estratégias e prioridades…!

Ideias brilhantes que os outros devem aplicar, todos temos, e os senhores do Terreiro do Paço também. Mas o que eu prefiro, ao contrário de ti, é que os senhores do Terreiro do Paço se preocupem menos em brilhar tanto com ideias salvadoras e cumpram a parte que realmente lhes compete, que é de funcionarem onerando o mínimo possível as empresas que têm os seus próprios projectos e nos quais também há muitas ideias brilhantes, mas que (e aqui falo do que conheço) não são testáveis porque não lhes sobram recursos para isso, acima da (quase) mera sobrevivência financeira. Mesmo assim, são muitas vezes essas ideias e capacidades de que tu julgas o sector privado tão deficitário que permitem a essas realidades empresariais contornar e superar momentaneamente quer a retracção do consumo quer o peso brutal da carga fiscal (coisas que um Estado “inchado” provoca).

Ou seja, se o sector privado não emprega mais gente e não paga melhor, isso deve-se a causas endógenas ou aos poderosíssimos constrangimentos exógenos de um Estado que chama a si uma parte cada vez maior dos recursos disponíveis criados (e que são finitos)?

Desconsolado consolo?

Quando centenas de jovens em Portugal acabam de concluir, ou estão à beira de concluir, as suas licenciaturas; e sobretudo para aqueles que o estão a fazer em áreas que o pensamento dominante tende a denominar como menores – estou a pensar em línguas e literaturas “clássicas” ou “modernas”, história e filosofia –, reproduzo aqui parte de uma carta* escrita pelo jovem António Rodrigues Cavalheiro (finalista de História na velha Faculdade de Letras, jovem integralista, conspirador do "18 de Abril" de 1925 e do "28 de Maio" de 1926, futuro salazarista e historiador de qualidades enigmáticas). Endereçada a António Sardinha, nela fica expressa a natural e intemporal angústia daqueles que estão à beira de romper definitivamente com o único passado que até aí verdadeiramente conheceram e que ainda está demasiadamente próximo.
Rodrigues Cavalheiro confessava a Sardinha estar a atravessar “um forte ataque de neurastenia e um extraordinário desalento […]”. Pedia-lhe palavras “encorajadoras” pois sentia “uma absoluta falta de confiança” nas suas “poucas qualidades […].” Sentia-se sucumbido perante “o enigma do futuro” numa altura em que se encontrava, aos vinte e dois anos, “prestes a completar o […] curso […].” Não via “onde” podia “exercer” uma “actividade, e, unicamente pelo trabalho, adquirir aquela relativa independência material que tanto desejava.” Depois continuava: “O meu espírito de rebelde autonomia não se compadece já com a situação que hoje desfruto, cómoda para muitos, mas incompatível com a minha ânsia de actividade e de independência. Sinto que a carreira que escolhi pouco me poderá dar de proveitoso. Em Portugal, hoje, é impossível viver-se só do trabalho intelectual. […] se vir que nada aqui posso fazer, estou disposto a sair de Portugal e a procurar vida noutra terra.” Palavras que não servem de conforto? O futuro o dirá. Mesmo assim ocorreu-me publicá-las aqui.

* “Carta de António Rodrigues Cavalheiro para António Sardinha.” 23 de Dezembro de 1923 (documento 49). Envelope 70 (2.º). Espólio António Sardinha. Biblioteca João Paulo II da Universidade Católica Portuguesa.

segunda-feira, junho 19, 2006

Valente Quixote


Concordo com José Medeiros Ferreira nas críticas certeiras que faz à entrevista de Vasco Pulido Valente. A redução drástica do número de deputados, que não resolve, ao menos, o problema orçamental, não é acima de tudo receita segura para uma melhoria substancial da qualidade do nosso sistema político. Também me parece que o entrevistado de ontem da Rádio Renascença é melhor lido e conversado. Muito melhor mesmo! (Mas isso não significa que seja um mau entrevistado. Trata-se apenas de um excelente escritor e de um conversador ímpar).
No entanto, registei uma nota inteligente apesar de, aparentemente, demasiado óbvia para compreender, ao menos em parte, o estado de desgovernação quase permanente do nosso querido Portugal: Os políticos "[...] além de não conhecerem a sociedade portuguesa, também não conhecem a nossa história. Niguém diria, ouvindo falar esses senhores, que há dois séculos o nosso problema é sempre o mesmo: o Estado monstro, o défice eterno e a balança de pagamentos." (Citação do Público de hoje).
Por fim, e a propósito de mais uma biografia escrita e publicada por um dos grandes historiadores de língua portuguesa dos últimos trinta ou quarenta anos [Um Herói Português: Henrique Paiva Couceiro], fiquei eu ainda mais convencido de que, tal como o biografado, também o biógrafo tem muito de quixotesco. Ainda bem!

domingo, junho 18, 2006

As vacas vão morrendo mas a gente não almoça (de graça)

Luís, temos realmente entre mãos um sério problema de dissonância cognitiva, também conhecido por sentimento mútuo de "alhos e bugalhos". Se insisto (por uma vez) é porque me parece que estas são questões importantes e estou habituado a maior clareza nas nossas discussões. Mas dizer que os privados é que pagam a crise apenas dá mais sentido às minhas preocupações com o estado de saúde das nossas empresas. Estranho que confundas isso com hostilidade aos empresários.
Voltas a insistir no argumento de que os privados é que sofrem pelos seus vícios. Não terei sido suficientemente claro antes, mas queria sublinhar mais uma vez que não só isso não é completamente verdade (quer pelo custo social do desemprego, quer até por que cada vez mais os gestores não são realmente proprietários), como é irrelevante para o problema que levantei, e que não é moral mas sim prático. As nossas vacas empresariais podem morrer muito virtuosamente ou culposamente. O problema é que não é por isso que o bom povo português almoça à farta e de graça, bem pelo contrário.
Dizes que o grande problema é o deficit público. É um grande problema. Mas o grande problema, do que qual deriva em parte esse e outros, é o de ajustamento estrutural - para usar um palavrão da moda - da economia portuguesa às mudanças do sistema económico internacional. Pensar que apenas a reforma do Estado, ou despedimentos em massa no sector público resolvem isso é uma estranha ilusão.
(E ainda aproveito para acrescentar que não é menos ilusório pensar que será o capital estrangeiro, por muito bem vindo que seja, que nos vem resolver esse problema por nós.)

Não ofereci, tens razão, um estudo detalhado com propostas de reforma para cada área (empresa?) do sector privado. Mas não é para isso que existem empresas de consultoria, cuja razão de ser, se o mercado realmente tem sempre razão, é precisamente serem regiamente pagas por fazer esse tipo de coisa, aconselhar as reformas a empresas a precisar delas? Preferi apontar para um problema geral: a falta de estratégia também no sector privado, como é evidente pela falta de acção em áreas fundamentais em muitas empresas; e para a possibilidade de parcerias entre empresas do mesmo sector, e entre estas e o Estado para corrigir este problema, se lhes faltar dimensão ou capacidade para o fazer sozinhas. Este não é um problema real, uma preocupação legítima? Eu acho que sim.

Reformistas e Revolucionários da Bola

Nestas coisas da selecção parece que há os revolucionários, como o Francisco José Viegas, que queriam tudo de um vez e Portugal a jogar como a Argentina já. E depois há os reformistas, como o Nuno Sousa, que se contentam que pelo menos nos vamos esforçando no sentido certo. Eu estou com os reformistas de cabeça e com os revolucionários de coração.
ADENDA - Direito de (boa) resposta.

FOTO: http://www.humornanet.com

Bestiário III - galinha poedeira


A primeira página do Público de sexta-feira passada trazia uma notícia perturbadora: «Portugal é o país europeu com mais salmonelas nas galinhas poedeiras». Desde o Verão passado que somos ameaçados com a praga do H5n1 descendo dos céus sobre as nossas cabeças nas asas das aves migratórias. Agora o perigo espreita dos ovos postos pelas tão lusitanas galinhas poedeiras. A sabedoria centenária que nos adverte para colocar os ovos em vários cestos torna-se inválida, pois o problema está no ovo e não no cesto. Quanto tempo passará até nascerem outras sentenças populares: «não metas no mesmo cesto ovos da mesma galinha poedeira» ou «põe os ovos todos num recipiente com água para ver se vão ao fundo ou flutuam?» A galinha sempre foi, na cultura portuguesa, um símbolo de sorte. Daí ser caso raro «tirar o ovo do cuzinho da galinha» ou encontrar a galinha dos ovos de ouro, verdadeiro desígnio nacional que nos levou à Índia, ao Brasil, a África e, por fim, nos integrou na União Europeia. Se um Shakespeare escrevesse a tragi-comédia de Portugal, talvez saísse com esta tirada no clímax da peça: «também tu, galinha poedeira?»

sábado, junho 17, 2006

Há "vacas" que, apesar de "sagradas", põem a "bicicleta" a andar...


O Bruno escreveu há uns tempos que quem falava tanto na necessária reforma do Estado se esquecia de falar na reforma do sector privado. Eu comentei que as coisas não se equivaliam porque não é a mesma coisa estarmos a falar de dinheiros privados e de dinheiros públicos. O Bruno vem agora dizer que os neoliberais como eu têm no sector privado uma vaca sagrada. Seria responder-lhe na mesma moeda dizer-lhe que ele tem no Estado a sua vaca sagrada. Como é evidente que a conversa assim não vai a lado nenhum, abstenho-me de tecer esse tipo de comentários. De qualquer forma, o Bruno já conseguiu desviar a atenção daquilo que interessa e que foi o motivo primeiro desta troca de comentários: a despesa pública em Portugal não deve continuar a crescer como até agora.

sexta-feira, junho 16, 2006

Kissinger dá as tácticas (com a ajuda de Mao)

Kissinger comenta na Newsweek o campeonato do mundo de futebol. Explica como o jogo mudou ao longo das muitas décadas da sua vida. Refere as desventuras com o seu clube de eleição desde a infância (o Fürth, que é mais ou menos - e digo-o com afeição, caro Fernando - o Belenenses alemão). Enfim, mais um parolo a entusiasmar-se pelo Mundial de Futebol (como este vosso criado.) Mais um treinador de bancada a dar tácticas (ou serão estratégias?) Até tem tempo para comentar o final do Europeu entre Portugal e a Grécia...

FOTO: Mao comenta com Kissinger: 'Na guerra como no futebol basta ganhar por um!'

quarta-feira, junho 14, 2006

Alentejo Blue


Alentejo Azul? Azul porquê? Porque o Alentejo é triste? Porque no Alentejo o céu é muito azul? Parece que Azul do Alentejo é a tradução mais apropriada. Alentejo Blue é o tom de azul que emoldura as portas e janelas das casas alentejanas. Isso e o resto, impressionaram tanto Monica Ali que ela mudou os planos para o seu segundo romance, depois do premiado Brick Lane. Alentejo Blue é a novela que Monica Ali acabou de publicar.
Dei-me conta quando a Borders de Charing Cross me deu as boas vindas com uma montra cheia de Alentejos de papel. (Simpático.) Não resisti a uma apressada primeira leitura. (Vantagens do grande comércio livreiro). É uma história sem enredo, mas com muitas personagens. Tema comum: as expectativas ilusórias e devidamente desiludidas de que a mudança (de tempo, de lugar, de tecnologia) altere fundamentalmente as coisas.
Há uma jovem alentejana que sonha com perder a virgindade e emigrar para Londres (a primeira desilusão a fazer advinhar a segunda). Há uma família de imigrados ingleses bastante desorganizada (até na limpeza e escolha de parceiros). Há camponeses e comunista (um deles termina pendurado numa árvore por uma corda). Há um escritor inglês (que escreve cada vez menos). Há um cyber café e um filho pródigo (que promete trazer de presente um grande hotel).

O local do crime literário - porque é preciso atrevimento para escrever sobre Portugal pouco cá tendo estado - é Mamarrosa, para os lados do rio Mira, de Milfontes e São Teotónio. O nome da aldeia é homofonamente apropriado ao sexo em abundância. É de tipo variado, mas por regra fora do casamento e abaixo da idade permitida. (Sugiro uma bolinha vermelha na capa para ajudar a vender a edição portuguesa.)
Há mesmos dois proletários agrícolas, pelo menos um deles comunista, que se envolvem numa relação, que em tempos (será que ainda?) embaraçaria os bons costumes do PCP. (Chamar-lhe Brockeback Mountain à portuguesa parece-me, no entanto, um bocadinho apressado. Esperemos até vir o filme de Hollywood!) Não falha sequer Salazar num braço dado, historicamente duvidoso mas literariamente útil, com Hitler.

Faltam a Portugal escritores estrangeiros que nos descrevam. Pode alegar-se que esta é a face mais previsível: o país rural, pobre, parado no tempo, à espera de milagres, seja do comunismo, seja do capitalismo na forma do filho pródigo que à terra torna. Pode até dizer-se que Monica Ali escreve Mario em vez de Mário. Ou que usa quinta quando, mesmo que também as haja no Alentejo, parece mais adequado no contexto dizer monte ou latifúndio. Pode alegar-se que ninguém num meio camponês se chama José ou Manuel, mas sim ou Manel. (Ou que abusa do português para passar um exotismo fácil, pero no lo creo).
Monica Ali, é evidente, tem mais dificuldades com camponeses à procura dos amanhãs que cantam do que com estrangeiros à procura de refúgio para vidas duvidosas, está mais à vontade com meninas adolescentes do que com velhos nativos. Mas a escrita é muitas vezes divertida e escorreita. (Vejam - cito de memória - como explica a sua vinda para Portugal "China", o "chefe" de uma disfuncional família inglesa: 'How did we all turn up here, mate? On the run! On the fucking run!’)
Uma perspectiva estrangeira será sempre incompleta: é natural, é inevitável que seja vista como imperfeita ou até injusta pelos nativos. Este não é um livro perfeito: mas para segunda tentativa tomariam muitos. A sátira é necessariamente distorção, e faz bem vermos a nossa imagem distorcida de vez em quando. Pode ser que Monica regresse com mais balanço. Por mim uma perspectiva diferente, desalinhada, será sempre, à partida, bem vinda.
Embora o livro não passe uma imagem propriamente idílica de Portugal - nomeadamente da eficácia do nosso comunismo ou do nosso capitalismo - pode ser que pelo menos a capa promova o turismo e nos ajude a sair da crise! Sim! Pode ser que um milagre aconteça, agora que uma jovem escritora de sucesso publicou um livros sobre nós em inglês!! E valeu a pena, nem que fosse apenas para ver uma distinta crítica do distinto Times descrever o Alentejo como uma 'pequena aldeia em Portugal'. Só faltou mesmo dizer que "resiste ainda ao invasor" (turístico)! Estes bretões são loucos!

terça-feira, junho 13, 2006

Os poderes de Santo António


De todos os poderes atribuídos a Santo António o mais admirável, do meu ponto de vista, é o da bilocação – a capacidade de estar em dois lugares ao mesmo tempo. Diz-se que Santo António veio a Lisboa defender o pai em tribunal continuando a pregar em Itália. E o seu testemunho foi decisivo para absolver o pai. É o mais actual e o mais português dos santos. Basta ver como tantos portugueses, mesmo sem possuir qualquer relação com o sobrenatural, fazem tudo para se desdobrar e multiplicar, andar por aqui e por ali.

segunda-feira, junho 12, 2006

Wanted Dead : Zarqawi

A morte de Zarqawi será chorada por poucos. No Mundo Islâmico, onde os EUA não são exactamente populares, a sua obsessão sangrenta com os xiitas tornou-o uma figura odiada por estes, e olhada com grandes reservas por muitos sunitas também. (Os xiitas para ele são hereges que põem em causa a unicidade de Deus e a unidade do Islão. Por isso insistia que havia que eliminá-los, começando pelo Iraque, o único país árabe onde estão em maioria). Tudo isso, e os ataques frequentes a civis iraquianos e mais recentemente jordanos, deixaram-no com muito poucos amigos. Aparentemente até Bin Ladin tinha as suas reservas. (A ser verdade, evidente que por razões estratégicas e não humanitárias).

Obituário? Decapitador de civis a sangue frio. O homem que terá estado por detrás do ataque à representação da ONU e da morte de Sérgio Vieira de Melo. O principal promotor da guerra civil larvar entre xiitas e sunitas no Iraque. E tudo isto ao serviço de uma estratégia, de que quanto pior melhor, de que só uma guerra civil entre sunitas e xiitas poderia forçar os EUA a sair do país, e levar a al-Qaida a reconquistar um santuário para preparar "em paz" os seus planos de terrorismo a uma escala global.

Zarqawi começou a vida como um marginal na Jordânia. E foi na prisão que descobriu a religião, e a sua capacidade de organizador e mandante. Como muitos outros conversos apressados e tardios passou rapidamente à intolerância para lavar pecados passados, e canalizou a sua violência para fins mais ambiciosos. Mas quem quiser mais detalhes, pode ver uma biografia muito completa, nesta magnífica grande reportagem no número que está para sair da Atlantic Monthly. (Subscrição requerida: mas a revista deve estar à venda nas livrarias).

A grande questão é: qual o impacto da sua morte? Parece impossível que possa ser outra coisa que não positiva. Mas a realidade é sempre um pouco mais complicada. Pode vir a ter um impacto positivo em termos do fim dos ataques mais sangrentos. Sobretudo se os jihadistas mudarem de tácticas. Mas no curto prazo podem querer fazer algo espetacular para vingar o líder. Prometedora é a aparente penetração da organização pelos serviços secretos americanos. (Supostamente dezenas de outros refúgios da organização foram visados logo a seguir à sua morte). Prometedora também a colaboração com serviços secretos árabes, em particular com os jordanos, que claramente vingaram assim as três bombas que Zarqawi tinha plantado em hotéis no seu país de origem. A Jordânia quis acabar com ele antes que ele estendesse a sua campanha ao resto do Médio Oriente. Neste aspecto, sobretudo, a sua morte parece positivo, ao reduzir, pelo menos de momento, as possibilidades dessa perigosa contaminação.

O impacto mais provável do fim de Zarqawi será reforçar a tendência para a insurreição se iraquizar. O que até a pode tornar mais popular. Muito depende daquilo que o governo iraquiano e os EUA fizeram com este troféu. Conseguirão aproveitar para isolar a al-Qaida? Conseguirão recuperar alguns grupos de guerrilheiros sunitas mais moderados (se ainda os houver)? A primeira hipótese parece mais realista do que a segunda. Mas uma estratégia integrada é algo que tem faltado ao lado americano desde o início desta campanha. Zarqawi conseguiu aproveitar os erros dos EUA para levar o Iraque à beira da guerra civil. Será que ao precipitar-se no abismo, ele arrastará o país consigo, ou cairá sozinho? Essa é uma pergunta que vale bem os 10 milhões de dólares que os EUA estavam dispostos a pagar por Zarqawi.

Vacas Sagradas e Empresas Privadas

Luís, lamento a espera, sobretudo porque a resposta, tão longa em vir, vai ser breve. (Quem quiser uma versão um pouco mais completa pode ler o próximo número da Atlântico. Não sigo os neo-liberais, mas aprendo qualquer coisa!) Tenho estado demasiado ocupado com as minhas obrigações académicas para poder tratar da salvação da pátria com o mínimo de concentração.

E é da salvação da pátria que se trata! Espanta-me que o neo-liberalismo seja tão devotado ao capital privado: as empresas, e só as empresas, contra tudo e contra todos, é que criam riqueza e bem-estar. Mas se forem à falência, não interessa nada! Só os donos é que perdem, é um problema (privado) deles! Eu sou coerente: nem culto, nem demonização. O país precisa de empresas. Mas das boas, se faz favor.
É muito mau, muito custoso para a sociedade em geral e os desempregados em particular, se começarmos a ter falências em série. (Sobretudo das fraudulentos, do tipo da Enron, que é capaz de ser a prova de que há pelo menos algumas empresas merecedoras de crítica; e que não a recebem a tempo, por que parecia mal).
Dizer, por exemplo, que há demasiadas empresas em Portugal que não planeiam, que não têm visão estratégica, que não apostam no marketing, no design, na tecnologia aplicada, que não conseguem vender no nosso mercado natural que é a Espanha; tudo isto me parecem críticas - talvez discutíveis - mas legítimas.
O que é os empresários são mais do que os médicos, os farmacêuticos, os sindicalistas, os juízes, os professores? Todos têm óptimos argumentos para estarem acima da crítica. (Nomeadamente o clássico e sempre tão sofisticado: venham cá vocês fazer!) O facto de as empresas serem privadas - embora, por vezes, ávidas consumidoras de dinheiros públicos - não as isenta de crítica. Numa sociedade livre e que queira progredir não há vacas sagradas! (Com o todo o respeito que me merecem as ditas e respectivos companheiros, claro, descansem amigos dos animais! É só uma métafora!)

domingo, junho 11, 2006

Sempre a aprender

Sempre vi e ouvi com muita atenção o Eixo do Mal na Sic Notícias. Aprende-se muito. Hoje, domingo, por volta das 3 da tarde, a Dra. Clara Ferreira Alves, fazendo uma piada com a extrema direita portuguesa, disse, num trocadilho cheio de graça, que hoje – ou seja no dia das gravações –, e como militante da extrema direita, garantia ir incendiar o Reichstag, numa evocação e reedição de um acontecimento verídico sucedido na Alemanha em 1933, poucas semanas depois de Hitler e os nacionais-socialistas ali terem chegado ao poder. Com esta afirmação – profundamente revisionista – vejo-me obrigado a esquecer tudo aquilo que se sei – e que se sabe – sobre tão dramático evento. Não foi um mais ou menos tresloucado militante comunista que incendiou o parlamento alemão, dando assim azo a que o governo presidido por Hitler introduzisse o estado de excepção. Não, foi mesmo um nazi. Tanta sabedoria às vezes custa a aceitar. Mas vindo de quem vem, o melhor é nem tugir nem mugir.

Almanaque do Povo

O Mundial, e tal: Marmota, jornalista paulista que se encontra em serviço lá para as bandas da Alemanha, tem publicado no seu veteraníssimo blogue alguns dos posts mais interessantes e desenjoativos que tenho lido sobre o omnipresente assunto.


Por favor, expliquem-me: Como é que num país cheio de gente capaz de correr duzentos quilómetros para dar conta de um leitão (ou de umas migas, ou de um cabrito, ou de uma lampreia) não se conhece um único blogue sobre comidinha? Ou conhece-se, e eu é que não sei como se chama o nosso Chez Pim, o nosso À La Cuisine, o nosso Nordljus?

[Reprodução: BND]

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O Mundo dos Bancos e das Bandeiras


Eu estou menos. Quando me mudei para Inglaterra, mudei de banco: para o HSBC, the world's local bank, dizem eles. A publicidade era boa. (Como quem passa por Heathrow sabe). Aliás ainda é. Infelizmente os resultados práticos não foram igualmente brilhantes. A par da chuva-ou-sol, os problemas-com-bancos são dos temas mais comuns de conversa de circunstância por estas bandas.
Ainda na passada sexta-feira, em alegre convívio jantante e animada cavaqueira (salvo seja), quer eu, quer um ilustre quadro português do HSBC, nos vimos privados do nosso direito humano fundamental de usar o cartão de crédito ou de débito (do HSBC) quando bem nos apetecer. Resultado? Ele pediu dinheiro emprestado aos amigos. Eu? Paguei com o meu cartão da Caixa Geral de Depósitos (esse instituição tão nossa, e quase tão antiga como a bandeira verde-e-vermelha).

Moral da história: como os bancos são todos maus - e pior serão à medida que a banca vulgar, a banca de retalho portuguesa, se aproximar da média europeia ou americana - o melhor é ter vários, para ver se uns cancelam as asneiras dos outros. Ou isso, ou enriquecer e passar para o private banking.

Cláudia, é charmant o teu apego à bandeira pátria, com os seus ilustres (quase) noventa aninhos. Mas também nisso a banca portuguesa acerta o passo. É a globalização que fala mais alto. Naqueles paradoxos de que o mundo real está felizmente cheio, nos países mais globalizados, nos States, mas até aqui, na supostamente fleugmática Inglaterra, a bandeira nacional é cada vez mais o trapo mais vendido. (Parafraseando esse grande símbolo nacional, Fernando Pessoa, que apelidava a nossa verde-e-vermelha de 'trapo miserável'.)
Como dizia uma pequenita de quatro ou cinco anos do alto do seu bom-senso educado pela publicidade: Não é a bandeira de Inglaterra! Não é a bandeira de São Jorge! É a bandeira do David Beckham!!! Toda a gente no jardim escola sabe disso!
Temo bem, meus amigos, que nos tenhamos de reconciliar com a nova realidade, bebendo patrioticamente uma Sagres™: a cerveja da nossa selecção!

sábado, junho 10, 2006

Já que falamos em perdas de clientes e em bancos


Apesar dos pesares, ainda ia encontrando motivos para ler o Expresso. Hoje, 10 de Junho, dia de celebração do país e homenagem aos que se lhe dedicaram, tornou-se dia para pensar seriamente em deixar-me disso, por força de um de tafetá de 1,00m x 1,50m. Enquanto a demais imprensa tem optado, despretensiosamente, por oferecer brindes alusivos à ida da nossa selecção ao Mundial (como a camisola da Visão, o cachecol do DN ou a fita do JN), o semanário de referência, piscando um olho ao dia de hoje e outro ao de amanhã, decidiu ofertar com a sua edição uma reprodução da bandeira nacional. Aos senhores responsáveis pelo facto não deveria ser preciso dizê-lo, mas pelos visto é: a bandeira do nosso país, aos olhos de qualquer cidadão consciente e digno, não é um simples bocado pano, é uma das traduções simbólicas da nação, e como tal deve ser tratada. Viveu e morreu gente por ela. Fabricá-la e distribuí-la como um panfleto publicitário, no qual se pespegam (canto inferior direito, 45cm x 30cm) as cores e logótipos dos patrocinadores da infeliz ideia - Expresso e Banco Espírito Santo - é um evidente desrespeito. Haver gente que não perceba nada e nada e faça da bandeira badana, saia ou protector dos estofos do carro, não espanta. Mas que instituições credíveis façam da bandeira um item de merchandising, isso não só surpreende como ofende.

Atenção ao BPI

Há mais de trinta anos meu pai abriu-me uma conta no então Fonsecas & Burnay (penso que é assim que se escreve). Por inércia e conservadorismo fiz deste o meu banco. Mais tarde, com o milagre das privatizações, passou a ser o BPI.
Das duas vezes que lhes fui pedir dinheiro emprestado puseram obstáculos incompreensíveis. Mas das duas vezes cederam, como se estivessem a fazer um grande favor e a missão deles não fosse emprestar dinheiro a quem dele precisa e dá garantias de pagar, com juros e tudo. Quando pedi o empréstimo habitação lesaram-me não escolhendo um notário que me fizesse 50% de desconto na escritura pelo facto de possuir, com a minha mulher, uma conta poupança habitação. Mandaram-me para um notário privado e fiquei a arder em cerca de 300 euros. Reclamei duas vezes. No balcão onde fiz o empréstimo - por escrito - e pelo telefone. Ainda hoje estou à espera de uma resposta dos “serviços.”
Mas ontem - ou melhor, já hoje - aconteceu uma situação, vamos lá, e segundo os molde portugueses, hilariante. A Charo foi jantar fora com amigos, sem dinheiro na carteira, cartão de débito e saldo na sua conta bancária mais do que suficiente para pagar a despesa. Depois da meia-noite chega a conta. Quer pagar usando o cartão de débito. Uma e outra vez vai tentando. A resposta do terminal é sempre a mesma: “operação não autorizada.” Sai do restaurante, vai a um ATM, tenta levantar dinheiro... Nada! “Por problemas técnicos não é possível realizar a operação.” Telefona-me! Conta-me o que se passa. Ligo imediatamente para o “BPI directo”. Explico a situação! Do outro lado, confirmam n.º de conta, nome da minha mulher, o saldo e, naturalmente, informa-me uma gentil senhora que se trata de uma situação normal aquela com se confronta a minha mulher. Entre as 0,00h e a 1,30h o BPI procede a uma espécie de reactualização dos seus ficheiros informáticos, facto que impede a realização de qualquer operação com cartão de débito durante aquele período. Perguntei à senhora se o banco avisava os seus clientes de tal facto. Garante que não. Não era obrigado a isso. Ou seja, presta o serviço quando e como lhe apetece. Perguntei-lhe se alguma informação sobre estes procedimentos constava do contracto celebrado aquando do fornecimento do cartão de débito. Diz que não. Pergunto-lhe de que forma pensava ela e o BPI resolver o problema da minha mulher. Respondeu-me dizendo que não era problema dela. Disse-me para mandar uma reclamação por escrito. Disse-lhe que nem pensar. Que estava farto de reclamar e não obter resposta e que, de qualquer modo, a conclusão lógica da conversa telefónica que se estava a ter era, em si mesma, uma reclamação. Pediu-me um contacto para que alguém do banco atendesse num futuro próximo à minha reclamação. Pedi-lhe para não brincar comigo uma vez que contactos meus e da minha mulher era coisa que não lhes faltava.
A Charo pediu dinheiro emprestado a uns amigos, pagou o jantar, meteu-se num táxi e chegou a casa sã e salva. No restaurante lá lhe foram dizer que eram recorrentes situações destas com clientes que desejavam para contas com cartões de débito do BPI. A Charo e eu temos agora uma certeza… na próxima semana vamos começar a tratar de mudar de Banco.