A Pobreza da Ideologia.
Senão vejamos: derrotados os miguelistas em 1834 e decretado o liberalismo que pretendia pôr fim ao odioso “Antigo Regime” – sinónimo de “absolutismo” ou de “despotismo” e de subserviência da sociedade e do poder político à religião católica apostólica romana – Portugal e os portugueses fizeram finca-pé e não saíram durante quase vinte anos do caos em que tinham caído desde que os primeiros ventos da Revolução Francesa começaram a soprar na Península Ibérica.
Veio depois a “Regeneração”. O país finalmente pacificado. Fontes terá sido um estadista de excepção e D. Luís o maior dos reis portugueses desde D. Pedro IV até à queda da Monarquia. Mas chegadas à década de 1870, as elites portuguesas, ou uma boa parte delas, tinham percebido que o país não só não queria o liberalismo, como o grosso dos liberais não queria o povo. Na província o povo vivia ainda no Antigo Regime, independentemente do caminho-de-ferro, do telégrafo, das novas pontes e estradas e da moderada e discreta modernização das maiores cidades que, a custo, se foi fazendo. Nestas mesmas cidades (poucas) que tinham crescido, como num ou noutro pólo industrial moderno, o “proletariado” vivia não apenas miseravelmente mas, sobretudo, não vendo no liberalismo – provavelmente porque estava cego – qualquer vantagem. O absolutismo despótico fora substituído pelo liberalismo oligárquico. Resumindo, tudo ficara na mesma. Como se não bastasse, economicamente a experiência liberal portuguesa no século XIX foi um desastre. Como demonstrou Jaime Reis em trabalhos pioneiros, foi na segunda metade do século XIX – com liberalismo político por um lado e proteccionismo económico por outro – que se cavou o moderno atraso económico português apenas aliviado no decurso dos últimos quinze anos do “fascismo”, nos dez que durou o cavaquismo e em cerca de quatro dos seis que durou o guterrismo de má memória. No mínimo o liberalismo manteve o povo ignorante e miserável.
Poder-se-á dizer que o programa liberal inicial foi interrompido, abandonado, corrompido e que nada, ou muito pouco, daquilo que sucedeu fazia parte da brilhante agenda política e ideológica traçada por Mousinho. Sucede que, e acima de tudo, as reformas de Mousinho eram politicamente um absurdo. Uma revolução, eventualmente bem intencionada (como quase todas), mas imposta a um povo que poderia necessitar de muita coisa mas certamente não das reformas liberais nos termos em que foram pensadas por Mousinho e pelos seus sucessores. Foi uma revolução a partir de cima, muito à imagem daquelas que caracterizariam a história do século XX, mas que, como demonstrou Albert Silbert, deixou a economia e a sociedade portuguesa em pleno «Antigo Regime» até ao último terço do século XIX, com a agravante de ter criado condições para a ascensão do republicanismo radical e, a prazo, para a erosão do liberalismo, da democracia e do parlamentarismo como opções sérias na governação do país.
O advento do integralismo e de uma espécie de catolicismo ultramontano, do socialismo, do anarquismo, entre outras ideologias e movimentos de pendor mais ou menos totalitário, seriam sempre inevitáveis em Portugal visto o fracasso clamoroso da experiência liberal europeia desde que a chamada “grande depressão” da década de 1870 virou do avesso a realidade económica, política e social do mundo ocidental. No entanto, e naquilo que diz respeito a Portugal, tais ideologias e movimentos nunca se teriam constituído em alternativas sérias sem o fracasso político e social profundo que foi o projecto liberal da segunda metade do século XIX e primeiros dez anos do século XX. E mesmo que nada disto tenha sido exclusivamente um fenómeno português, ao mesmo tempo que contou aqui com a ajuda da experiência republicana e com impacte dramático da Grande Guerra, verdade é que, globalmente, a experiência liberal portuguesa foi um desastre – mesmo que evitemos os exageros de apreciação feitos pelos vencidos da vida.
Mas ainda que não se esteja de acordo quanto ao “balanço” histórico do projecto liberal português entre 1834 e 1910, a verdade é que as soluções de liberalismo puro apresentadas pelo Luís são não apenas totalmente impraticáveis nos dias de hoje – ignoram as realidade do país, da Europa e do Mundo nos dias de hoje, mesmo que o diagnóstico esteja parcialmente correcto – como, ao mesmo tempo, têm um ar requentado. Requentado, desde logo, porque significariam a repetição no início do século XXI, salvaguardadas as devidas distâncias, de uma experiência que os portugueses recusaram – ou ignoraram – há mais de 150 anos. Mas requentado ainda pelo facto dos liberais portugueses estarem a vender uma receita milagrosa – a salvação da pátria pelo liberalismo – que outros, normalmente seus adversários ou inimigos, igualmente venderam e experimentaram no passado sem qualquer êxito a médio e a longo prazo. Foi assim com o “jacobinismo” da República, com o corporativismo de Sidónio e de Salazar. Foi também assim com as mais variadas versões de social-democracia ou socialismo de pendor marxista advogadas por partidos com múltiplas siglas, designações e histórias, tanto antes como depois de derrubado o governo de Marcelo Caetano. As promessas de amanhãs que cantam foram-nos ainda dadas quando se garantiu que a descolonização produziria milagres, embora bastante inferiores àqueles que a entrada na Europa indiscutivelmente assegurava. Hoje, por exemplo, e essa é opinião comum, o milagre produzir-se-á quando resolvermos o problema do déficit nas contas do Estado e a crise económica que tanto está a montante como a jusante daquele. O êxito, garantem, exige um projecto ou uma estratégia de reformas. Seja pela instauração do liberalismo que o Luís defende, seja pelo triunfo do “socialismo reformista” que o Bruno ama. Mas se olharmos para trás com um pouco de atenção veremos que as receitas foram já todas dadas e aplicadas. Infelizmente, e até hoje, sem resultado que se visse. Por mim, propunha apenas que os portugueses, tanto quanto possível, se despissem de ideologias e de sanha reformista ou regeneradora que, entre outras coisas, produz muita legislação, muito “stress” e escassíssimos resultados práticos. Nunca advogaria, nem advogo, grandes reformas, rupturas e, menos ainda, revoluções. Defenderia o diálogo, a persuasão, o pragmatismo. Preferiria, em resumo, a política à ideologia!
5 Comments:
Caro Fernando, dizer que o liberalismo em Portugal foi um completo fracasso, é uma afirmação temerária. Foi pouco termos décadas de liberdades civis, de pluralismo político e de algum progresso económico? Para mim, foi um feito notável. A minha ideia é que o proteccionismo e o despesismo, herdados pelo liberalismo, foram aquilo que o perdeu e deu espaço às ideologias demagógicas como o republicanismo e o socialismo. Já defendi isso noutros escritos.
O "fim das ideologias" é tão bonito quanto enganador. Sob o manto diáfano do pragmatismo está sempre a crueza da "ideologia" com que vemos o mundo. Nem que seja a ideologia de ser pelo que está...
As minhas ideias primárias sobre a crise do liberalismo em Portugal, podem ser vistas (lidas) aqui:
aqui.
Já agora, perdoe-se-me a presunção: sugiro este outro texto. Nada mais do que para saber-se o que penso sobre determinada experiência histórica...
Caro Luís,
Vou ler com todo o gosto. De qualquer modo, gostaria de sublinhar duas coisas. Em primeiro lugar, eu não nego que a experiência liberal portuguesa teve muitos aspectos positivos - os que referiste no teu comentário e outros. No entanto, foi um fracasso. Económico, social e político. Não te dói, por exemplo, que o liberalismo português não tenha equacionado seriamente, e ao menos, a aplicação do sufrágio universal masculino? Não te incomoda que o liberalismo português tenha mantido Portugal à margem do desenvolvimento económico? A isto só tens que dizer que a culpa foi da pesada herança? O seu fracasso como projecto político justifica a sua queda. O mesmo é válido para a I República e para o Estado Novo, como será, eventualmente, para o regime constitucional em que vivemos. Aliás, o fracasso do liberalismo desde finais do século XIX, e que ainda perdura, deve-se às suas próprias limitações como ideologia e como política. Algo que os europeus sentiram na sua própria pele desde que ele emergiu como sistema dominante: existente ou a alcançar.
Em segundo lugar, não advogo nem o fim das ideologias, nem considero que tal seja possível ou desejável. O que me parece é que não se deve fazer política com base apenas, e sobretudo, em pressupostos ideológicos - sejam, eventualmente, eles bons ou maus. A ideologia é má conselheira, embora não lhe possamos escapar. Por outro lado, convém recordar que para além da ideologia existe a realidade. E se me permites chamar-te-ia a atenção para um facto que certamente não ignoras. O programa de reforma liberal que propões é absolutamente irrealizável porque, justamente, ignora a realidade. Nenhum governo em Portugal seria capaz de aplicar tal programa! Duvidas?
Fernando, tanto não duvido que é "impossível" que escrevi a conclusão que lá está no meu post, dizendo, ipsis verbis, o que tu dizes. E remeto para um texto meu, no qual faço precisamente essa reflexão, criticando o optimismo a-histórico de muitos liberais.
Quanto ao liberalismo português, que não andou longe do sufrágio universal masculino na década de 1880, não o considero isento de culpas, não só pelo proteccionismo já referido, mas também porque foi um composto ideológico mais complexo do que deixa adivinhar o epíteto que se lhe dá. Abraço.
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