Se há tema de que gosto é do colonialismo europeu em África, das descolonizações africanas e do estudo comparado dos colonialismos e das descolonizações. O comentário do João Miguel Almeida ao meu
post da semana passada e ao comentário breve mas muito acertado do Luís Aguiar Santos, permitem-me voltar ao assunto. Não percebi até que ponto pensa João Miguel Almeida que aquilo que depois da descolonização se passou em África – e em particular na África portuguesa – é consequência do comportamento lastimável das elites e das massas que se espalham por aquele continente. Mas parece-me óbvio que é totalmente destituído de razão pensar que as guerras civis em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, pós-1974, tiveram alguma coisa que ver com a especificidade da colonização portuguesa, ou com o facto da descolonização, também portuguesa, ter sido feita tardiamente. Veja-se, desde logo, que praticamente todos os países africanos a sul do Saara, descolonizados nas décadas de 1950, 1960 ou 1970, têm conhecido uma profunda instabilidade político-militar, agitação social, decadência económica, empobrecimento generalizado, massas brutalizadas, elites infinitamente corruptas. Compare-se, por exemplo, ou imagine-se, aquilo que era
Coreia do Sul em meados da década de 1950, depois da guerra civil e de uma ocupação japonesa de décadas, incomparavelmente mais violenta do que aquela que os europeus tinham levado a cabo em África, mesmo contando com aquilo que se passou no Congo belga e da futura Namíbia, e aquilo que era o
Ghana em vésperas da sua independência. Veja-se agora aquilo que é a Coreia do Sul e a aquilo que é o Ghana. Lamento dizê-lo, pensando nas almas mais sensíveis, mas considero que a decisão tomada por Salazar de que Portugal deveria continuar em Angola e, depois, em toda a África portuguesa, foi uma decisão acertada, pelo menos do ponto de vista dos interesses dos africanos portugueses. É certo que deu de bandeja à metrópole uma guerra colonial durante treze anos, uma guerra com apreciáveis custos sociais, económicos e humanos. Mas, paralelamente, comprou igual período de tempo de paz relativa, de estabilidade social e de progresso económico em territórios como Angola, mas, também, na Guiné, e em Moçambique. Para mim, e olhando para aquilo que se passou no Zaire, antigo Congo Belga, desde 1960 e até há meia dúzia de anos, não posso deixar de achar que o caso de Angola não é mais do que o exemplo claro de que a sua descolonização tardia permitiu impedir que ali se tivesse passado aquilo que se sucedeu no Zaire logo desde 1960. Guerras civis, massacres de populações negras por outras populações negras, destruição do Estado colonial e sua não substituição por qualquer coisa de útil e civilizada, intervenção militar estrangeira, interferência da ONU, poder indiscriminado nas mãos de militares, etc., etc. Ora em Angola, entre 1960 e 1974, e com excepção de 1961, aquilo que houve foi um conflito militar de baixa intensidade. Sendo certo que custou vidas tanto a africanos como a portugueses, a par da guerra o território conheceu um enorme desenvolvimento económico, político e cultural. A partir de 1974, a guerra civil teve um enorme custo em vidas humanas, já para não falar na regressão económica, social, cultural e política que provocou. Diria mesmo mais: o autoritarismo de Salazar e de Caetano era indiscutivelmente sinistro. Porém, aos olhos daquilo que existe politicamente em Angola desde 1974, o salazarismo e o marcelismo eram regimes respeitabilíssimos. Veja-se agora o caso de Moçambique. Aí a guerra colonial começou em 1964. O principal apoio externo directo vinha da Tanzânia, país africano de cuja história João Almeida tem uma agradável impressão. Diz que não conheceu guerras civis e que hoje é um país pobre, onde se vê pobreza, tal como em Portugal, mas não miséria. Um bocado como o Portugal de Salazar. Pobre, mas não miserável. Pobre, mas honrado e suponho que razoavelmente limpo. A afirmação do João Miguel Almeida faz-me pensar porque razão é que naquele que é
um dos países mais pobres do mundo não se vê miséria nem, aparentemente, grandes diferenças na distribuição da riqueza, fenómenos tão típicos não apenas noutros países do continente africano mas, também, e segundo algumas opiniões, em Portugal. Será que o João não viu miséria, não quis ver miséria, ou não o deixaram ver miséria? Mas mais importante de tudo, a história da Tanzânia depois da descolonização é tudo menos um bom exemplo. Nyerere, o pai da independência e da nação tanzaniana, com a sua visão muito pessoal daquilo que devia ser o socialismo africano aplicou, durante toda a década de 1960 e 1970, uma série de políticas cujos resultados para as populações, para a economia, para a sociedade, para o sistema de ensino, e por aí fora, foram idênticos aos de uma guerra civil à maneira clássica (veja-se Joshua Muravchic, “Ujamaa: Nyerere Forges a Synthesis” in
Heaven on Hearth: The Rise and Fall of Socialism, Encounter Books, 2002, pp. 198-226). A Tanzânia, que não era um país miserável antes da independência, transformou-se, rapidamente, graças à esclarecida marcha para o socialismo definida e imposta por Nyerere e tão apreciada por Nuno Teotónio Pereira, num dos mais miseráveis países do mundo. E se Moçambique, até 1974, conheceu também o seu milagre económico, pôde beneficiar, depois da independência, do esclarecido governo da FRELIMO e da esclarecida liderança de Samora Machel. A construção do socialismo, primeiro, e a guerra civil, depois, levaram Moçambique muito para trás daquilo que tinha sido quando Portugal lhe pegou.Finalmente, vale a pena recordar que dos três derradeiros países da África negra a atingirem a independência (Rodésia do Sul, Namíbia e África do Sul), apenas no primeiro a situação se tem deteriorado muito nos últimos anos, enquanto que nos outros dois, e por enquanto, a experiência de transferência do poder das mãos de uma minoria branca para uma maioria negra não causou ainda acontecimentos com resultados políticos, económicos ou sociais globalmente negativos.
Isto parece querer dizer que quanto mais tarde tal transferência aconteceu, maiores foram os resultados positivos e menores os negativos e que portanto o grande erro – talvez inevitável –, cometido pela Europa em relação a África foi não ter querido e/não não ter conseguido prolongar por mais meio século uma colonização que se iniciara, de facto, depois da Primeira Guerra Mundial.