Uma Questão de Odores
Segui depois para Nice onde praticamente só vi estrangeiros. Dei então um salto até Itália onde pela primeira vez na minha vida vi mulheres realmente bonitas. Na altura era preciso ir a Itália para ver mulheres bonitas. As nossas, tesas, e na ressaca da revolução, havia apenas um ou dois anos que tinham recomeçado a depilar-se, a ir ao cabeleireiro e a comprar uns trapinhos minimamente apresentáveis. Nem no Banana Power se via grande coisa. A verdade é que contemplei em Itália mulheres muito bonitas e elegantes como aquelas que pensava só existirem no cinema. Nunca mais me esqueço. Foi na estação ferroviária de Florença. Altas, magras, mas com mamas (peço desculpa pelo termo, mas não gosto da palavra seios e não uso, normalmente, a palavra tetas), produzidas, sedutoras, perfumadas. Calças justas, botas altas de design inimaginável, pernas altas, saias curtas, mãos arranjadas, cabelos penteados. Se o céu existia estava na estação ferroviária de Florença, um edifício enorme, de linhas muito modernas e materiais muito sólidos construído no tempo do Fascismo. Uma dessas divas, jovem, informal, imaginando-me, cheia de razão, oriundo de um país para lá da cortina de ferro, ou até mesmo da Albânia (que era ainda pior que a cortina de ferro), sendo que na altura os albaneses ainda eram relativamente raros em Itália – quis saber de onde vinha a minha pessoa e um outro jovem, ainda mais baixo do que eu, que me acompanhava e eu acompanhava desde Lisboa. Não sabia o que dizer. Ela falava comigo em italiano, depois em francês, finalmente em inglês. Eu, inexplicavelmente, porque nuca tive qualquer jeito para línguas, percebia tudo, mas não conseguia responder. Secava-se-me a boca, enrolava-se-me a língua. Depois de uns alguns instantes de concentração extrema, superior, muito superior, àquela que alguma vez tinha usado ou voltaria a usar ao longo da minha vida, tive coragem para lhe pedir que adivinhasse. Percorreu toda a Europa, não se esqueceu da Albânia, mas nada de Portugal. Não só era bonita como sabia geografia. De Florença segui dias mais tarde para Veneza. Regressei então a França, o destino era Paris atravessando a Suíça.Do meu primeiro desembarque em Paris – e a bem dizer só me lembro de uma espécie de subúrbio da cidade luz – só recordo uns “árabes” oriundos do Norte de África, calçando chinelos e vestindo aquilo que me pareciam ser umas camisas de dormir compridas de algodão com listas verticais finas azuis e brancas. Homens de meia-idade deambulando pelas ruas, pacificamente – ainda não se falava de choque de civilizações – olhavam para nós como sendo eventualmente uns dos seus embora sem envergar chinelos nem camisas de dormir. Mas tal como lembro dos “árabes”, também recordo, muito mais ainda, de um out-door, que depois teria oportunidade de rever em inúmeros cantos e recantos de Paris, anunciando o desodorizante milagroso. Ao contrário do 8x4 português que entre finais da década de 1960 e da seguinte anunciava que se podia orgulhar de ter produzido o primeiro desodorizante que ultrapassava a barreira das cinco horas da tarde – na altura ainda não se dizia 17 horas, uma vez que o doutor Salazar e o professor Marcelo Caetano só permitiam que os portugueses soubessem contar até doze – o dito produto de higiene francesa garantia fazer efeito durante UMA SEMANA. Eu nem queria acreditar. Não que houvesse um desodorizante que durasse oito dias, mas que na cidade que aprendera a admirar mais que nenhuma outra, a capital mundial da cultura, houvesse mercado suficiente para consumir tão sinistro produto. Resumindo, os franceses eram acima de tudo porcos e preguiçosos. Durante um par de anos ainda li umas coisas em francês e nas duas semanas que vagueei por Paris comprei o Vermelho e o Negro que até hoje se conserva nas prateleiras lá de casa à espera de ser lido. Desde então, e para mim, a França foi morrendo lentamente. Voltei a Paris em 1989. Estava a cumprir o serviço militar. Sabe-se lá porquê, mas também ainda não havia choque de civilizações, só gostei dos “árabes”. Talvez por saber que estes ao menos lavam os pés para rezar. Quando hoje como quando vezes sem conta assisto a manifestações estudantis e outras formas “agitação social” em França. Quando vejo um ministro chamar canalha a uns rapazitos nada recomendáveis de origem “árabe”, ou Chirac a pavonear-se por esse mundo, só me lembro do bendito desodorizante. E imagino como mais do que a pancada aos estudantes ou os sorrisos patéticos de Chirac que aturamos na televisão e que nos custam tanto a suportar, pior seria se a televisão tivesse cheiro e eu, como toda a população mundial, tivesse que regressar ao suplício que é viajar no metro de Paris com franceses todos besuntados com desodorizante para oito dias mas que ninguém lhes explicou ainda que nem para oito horas servem. É que os franceses ainda não perceberam que as coisas não vão mudar enquanto não se começarem a lavar e derem a si próprios uma grande ensaboadela. Entretanto, aquilo que vai passando em França, seja em que campo for, pode, justamente ou não, emocionar muita gente. Para mim, e desde há 22 anos, é sobretudo uma questão de odores. De maus, entenda-se!
2 Comments:
Muito bem.
Eu pelo contrário adorava viajar por essa zona entre a França e a Alemanha. Paris, Bruxelas, Amsterdão, Frankfurt, conheci-as pela primeira vez em 1977, e agora tenho pena de na altura não ter estado "por ali" durante ainda mais tempo...hoje nem acredito que perdi uma oportunidade de estudar na EHESS. (!)
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