Se há coisa que ainda me provoca algum tédio numa discussão, é quando, por exemplo, depois de se usar uma figura de retórica mais forte, o alvo começa logo por dizer que se está a entrar no ataque pessoal. Quando afirmei que o João Almeida não quis ver, foi isso mesmo que quis significar. É absurdo viajar por um dos países mais pobres do mundo e não ver isso mesmo. Eu, se fosse o João, pedia reembolso da viagem e da estadia. Ir à Tanzânia e não ver miséria, é tão absurdo quanto eu ir à Cova da Moura e dizer que só tinha visto africanos muito dignos, muito orgulhosos das suas raízes e do seu bairro. Isto seria certamente verdade. Mas não era toda a verdade. Ocultava, por preconceito ideológico, alguns dos aspectos mais importantes da verdade: a marginalidade, a violência, a exclusão social, o racismo, as dificuldades económicas, etc.. Como é óbvio, nunca me passou pela cabeça que o João Almeida tivesse ido à Tanzânia à custa daquele Estado ou de qualquer organização não governamental, por exemplo, interessada em publicitar em paraíso africano que é o antigo Tanganica e esse bálsamo para o corpo e para a alma que é a água do Kilimanjaro. Agora aquilo que me parece é que o João Almeida anda pelo Terceiro Mundo à descoberta de si próprio e numa daquelas benditas peregrinações em que buscamos os seres humanos bons selvagens ainda não corrompidos pela degenerescência moral que o progresso para muitos inevitável e lamentavelmente trás.
Visto isto, quero dizer reforçar que considero que, globalmente, e como fenómeno histórico, a descolonização africana foi um crime, em certo sentido comparável ao fascismo ou ao comunismo, sendo que os seus responsáveis não são apenas as elites africanas pós-coloniais. Refiro-me, por exemplo, àqueles que, independentemente da raça, “generosamente” lutaram por esse mundo fora pela vitória das descolonizações, da mesma forma que o fizeram em prol do triunfo do fascismo ou do comunismo: os intelectuais e os políticos. No entanto, e apesar da “generosidade”, os resultados foram dramáticos, mesmo reconhecendo que nas descolonizações africanas nem tudo correu mal – na Costa do Marfim e no Senegal durante muito tempo, enquanto que o Malawi e o Botswana têm conhecido um destino globalmente feliz, embora mais pobre do que remediado.
Devo ainda reconhecer que o colonialismo europeu em África foi, claramente, um processo violento e muitas vezes criminoso. E foi-o sem excepção. Veja-se aquilo que Leopoldo fez ao Congo, a partir do momento em aquele território africano lhe foi concedido pela potência europeias em regime de coutada. Veja-se aquilo que os portugueses fizeram nos territórios africanos à sua guarda e às respectivas populações autóctones desde finais do século XIX, o mesmo sendo válido para alemães, boers, britânicos, franceses, espanhóis, etc. Mas por outro lado, convém recordar que os europeus dividiram África entre si e iniciaram a sua colonização para libertarem os africanos. Para os libertarem de incompreensíveis guerras internas, para extinguirem o esclavagismo e o tráfico de escravos que ainda subsistiam na segunda metade do século XIX, para eliminarem doenças, para evangelizarem e educarem os africanos. Numa palavra: para os civilizarem. Não ponho também em causa o denodo e a generosidade de muitos anticolonialistas, nomeadamente de portugueses, mas não poria ao mesmo nível, por exemplo, Álvaro Cunhal e Mário Soares. Enquanto aquele queria efectivamente que a África portuguesa transitasse para a órbita soviética, Mário Soares era, e continua a ser, simultaneamente um ignorante e um cínico em matéria de colonialismo e descolonização, a quem só interessava a conquista do poder em Lisboa, acontecesse o que acontecesse na África portuguesa. Vejam-se duas coisas que escreveu no Portugal Amordaçado sobre o colonialismo e descolonização, para se perceber a dimensão da irresponsabilidade, da ignorância e do cinismo.
Irresponsabilidade e ignorância: “[…] Timor, que é uma ilha indonésia com bastante pouco que ver com Portugal.” Portugal Amordaçado, Editora Arcádia, p. 457.
Cinismo: “No final do séc. XIX e no princípio do séc. XX floriu uma geração de administradores coloniais de alto quilate – melhor dito, de colonialistas – integrados nas concepções europeias dominantes na época […]: António Enes, Mousinho de Albuquerque, Paiva Couceiro, Norton de Matos, Álvaro de Castro, entre os mais salientes. Foi então que se retomou a velha designação de «províncias ultramarinas» […] não para negar a existência do fenómeno colonial, mas tão só para acentuar o carácter radicalmente anti-racista do colonialismo português, que abertamente se confessava.” Idem, p. 431.
Para terminar devo dizer duas coisas em matéria das virtudes das descolonizações tardias. Devo dizer que para mim houve sobretudo, e podem continuar a haver, boas e más descolonizações, sendo que umas e outras tanto podem ter sido tardias como precoces. E se quisermos louvar as virtudes da Tailândia nunca colonizada, talvez seja melhor recordar a pujança de estados colonizados e violentados na mesma região do globo como Singapura, Coreia do Sul e Formosa. Aliás, a prazo, os tailandeses nunca colonizados, estarão muito atrás de um dos estados mais violentados da região por colonialismo europeu, guerras civis, guerras contra potências ocupantes e por um regime socialista semi-bárbaro: refiro-me ao Vietname. Por último, a questão de Timor-Leste. Penso que é o exemplo paradigmático, embora por excesso, de como o processo descolonizador pós-segunda guerra mundial esteve cheio de equívocos – para não dizer mais – e de como os generosos colonizadores portugueses ignoravam a complexidade e as contradições naturais de qualquer processo descolonizador. Neste caso, mais do que terem deixado ficar irremediavelmente mal o colonialismo português, mostraram todo o absurdo, a ignorância e a irresponsabilidade daqueles que em Portugal, antes e depois do 25 de Abril, defendiam a independência a outrance de todos os territórios coloniais. Não só Timor não tinha, como não tem, nem sei se alguma vez terá, condições para ser de facto um Estado independente, como toda a história do território entre 1975 e 1999 demonstra a natureza criminosa do anticolonialismo. Não querendo nem podendo branquear a ocupação militar indonésia que se via como descolonizadora – afinal contava com o apoio de uma minoria importante dos timorenses –, a verdade é que os generosos paladinos da descolonização portuguesa abandonaram Timor os timorenses ao arrepio de qualquer regra de bom senso, de humildade político-ideológica e das mais elementares regras políticas e morais que devem conduzir a actividade política, e que também, e apesar de tudo, enquadram a política internacional. É que aqueles que em Portugal “generosa” e “desinteressadamente” gritaram “nem mais um soldado para as colónias”, impedindo que se reforçasse o contigente militar português em Timor – um recurso vital para evitar a guerra civil entre timorenses e, portanto, a invasão indonésia –, ou os que calados consentiram a inércia, são responsáveis pelo destino de Timor. Infelizmente para eles, o mesmo juízo é igualmente válido para tudo aquilo que veio a suceder no malfadado e às vezes chamado terceiro império colonial português: o abandono, não tanto nem só dos portugueses europeus, mas das populações condenadas à morrer pela fome, pela peste e pela guerra.
P. S.: Este post não leva links nem imagens porque o computador em que escrevo é quase da era colonial.
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