terça-feira, outubro 31, 2006
O que faz um grande português? Diria que, pelo menos o programa da RTP não está à espera que se nomeie alguém pela grandeza do seu tamanho físico, mas pelo tamanho do seu impacto.
Em impacto interno seria difícil bater D.Afonso Henriques. Ele fundou o Estado e com ele um país independente. Pode-se questionar se o impacto desse Estado foi sempre positivo, mas lá que foi decisivo, lá isso... Sem um Estado independente dificilmente existiria a língua portuguesa ou os Descobrimentos portugueses.
Pelo lado do impacto em termos de promover valores ou estilos e gostos tudo se complica. São, apesar da pequenez relativa do país, muito variadas as escolhas possíveis. Nos valores e na sua concretização pode ir-se desde S. António, o teólogo ao serviço de S. Francisco de Assis, até António Vieira a combater a inquisição e o racismo, passando por D. Pedro IV e pelos intelectuais liberais que defenderem um pais mais livre e igual perante a lei; assim como os que continuaram a fazê-lo durante o Estado Novo e construíram o novo Portugal democrático. Mas porque não alguns mais desconhecidos? S. João de Deus, cuja obra se tornou pioneira do tratamento humano dos loucos? Ou a rainha D. Leonor (com D. Manuel I) fundadora da Santa Casa da Misericórdia, o arremedo de Estado Providência que tivemos durante séculos? Pelo lado dos gostos ainda mais se dificultam as escolhas. Escolher o quê, um pintor (Grão Vasco, Sequeira, Amadeo, etc.) ou um escritor (Camões, Vieira, Eça, etc.)? E ainda se poderia pensar em arquitectos, compositores ou escultores. Mas talvez Fernando Pessoa se destaque, se não apenas pela qualidade e originalidade, então certamente pelo seu impacto no exterior neste último século tão competitivo culturamente, mas haverá quem se lembre de Saramago, o nosso único prémio nobel da literatura. E mesmo nas ciências alguns se destacaram, embora o único nobelizado seja o psiquiatra Egas Moniz e os mais conhecidos, como António Damásio, vivam e trabalhem fora de portas.
Em termos de impacto externo, no entanto, o infante D. Henrique parece imbatível. Não tanto pelas qualidades descritas pelo Fernando Martins. Mas porque tendo navegado apenas entre Portugal e Marrocos, foi como promotor de uma «santa» pirataria cristão contra embarcações e cidades mouras, e pela sua persistência sistemática (qualidade tão raramente portuguesa) em buscar mais informações sobre a costa africana cada vez mais a sul, o iniciador de uma imparável expansão europeia pelo Mundo. A qual, para o bem e o mal, fez o mundo actual. (Não é Pessoa, mas rima...) Se Portugal tem um papel de primeiro plano na história global é graças, em primeiro lugar, a ele.
Salazar? Foi sem dúvida um político inteligente que muito influenciou a nossa história do século XX. Nem tudo o que fez foi mau, claro. (Até Hitler construiu auto-estradas e Staline electrificou a Rússia e fez creches). Foi em última análise, no entanto, um político falhado. Apostou que a ditadura era a única forma de evitar o caos em Portugal, e perdeu (pelo menos até ver). Acreditou que Portugal não podia sobreviver e exercer influência internacional sem o império e integrado na Europa, e enganou-se (pelo menos até ver). Só espero que os que atacam com denodo o fantasma de Salazar, mostrem pelo menos igual empenho em evitar dar-lhe razão depois de morto. Foi indiscutivelment um ditador que recorreu ao despedimento sem justa causa, à prisão e mesmo à tortura (os confessados "safanões a tempo") para reprimir adversários políticos. Durante décadas impediu os portugueses de exercerem os seus direitos fundamentais, quando isso já sucedia na maior parte do resto da Europa. Por isso, nunca poderia ter o meu voto. Tanto mais que, como Ricardo Araújo Pereira certeiramente disse, ele não gostava de ser livremente eleito - um facto sobre o qual o registo histórico não deixa grandes dúvidas - e que convém respeitar.
Mas não me espantaria que Salazar tivesse um votação respeitável (ou o contrário). Precisamente porque ele está bem morto e enterrado politicamente. Alguém fala de neo-salazarismo sequer comparável ao neo-nazismo, ou ao neo-fascismo (Reis Torgal dixit com razão)? Por isso, é um voto de protesto contra as elites, contra o politicamente correcto, contra a crise, contra o estado do tempo, sem custos nenhuns.
Finalmente, Aristides de Sousa Mendes: tinha um coração demasiado grande para o seu bem, isso é evidente. Quantos podemos gabar-nos de salvar sequer uma vida, e ele salvou muitas. Parece-me bem que se vote nele e se valorize a generosidade dos seus vistos. Desde que não o transformem naquilo que ele nunca foi: um diplomata exemplar ou um esquerdista. Sobretudo, estou seguro que uma boa votação nele significará um compromisso sério do bom povo português em acolher pelo menos tantos refugiados, agora, quantos Salazar deixou que entrassem em Portugal por via da bondade de Sousa Mendes e não só.
ADENDA - A revista norte-americana Atlantic lançou uma sondagem aos seus leitores para escolher os 100 norte-americanos mais influentes. Os resultados serão confrontados no próximo número (de Dezembro) com os ensaios sobre esse tema de alguns historiadores destacados. Uma variação sobre o mesmo mote.
ContinuAcção
[site]
Já foi lembrado aqui: acontecerá mais logo o concerto lisboeta de comemoração dos 25 anos de carreira dos G.N.R. Não poderei lá estar, mas desejo umas bodas bem festejadas a estes grandes poptugueses. O primeiro concerto a que assisti foi deles, no velho Alvalade, a 10 de Outubro de 1992, por dois contos oitocentos e cinquenta.Fui com o meu irmão e com a minha melhor amiga. Quando a música começou, estava ainda numa daquelas casas de banho móveis colocadas sobre o tartan. Uma espécie de búzio mal-cheiroso, tal era a ressonância. Tive de ser rebocada bancadas a cima, para regressar ao meu lugar. Não conhecia as músicas todas de cor, o que não fez mal nenhum - o Reininho sempre foi inventando pelo caminho. Uma alegria de dia.
"Blogues, fontes para o jornalismo"
No Diário de Notícias de hoje um bom e sensato texto do seu provedor, José Carlos Abrantes, acerca do anonimato, do jornalismo e dos blogues (e, também, acerca da insensata incontinência de MST).
"O Governo em Congresso."
"Para quem sabe que a natureza gosta de diversidade, este Governo de uniforme terá destino pendular."
José Medeiros Ferreira no Diário de Notícias de hoje.
segunda-feira, outubro 30, 2006
Plágio equatorial, blogues, imprensa
A acusação de plágio a Sousa Tavares não tem qualquer base. Plágio é uma coisa séria. Só tem um definição aceitável: a cópia não assinalada das exactas palavras de um escrito alheio (ou quando muito, com muito escassa modificação por sinónimos). Copiar ideias ou investigações académicas originais sem referir o original é também grave, mas é já outra coisa. Mas usar descrições alheias de factos históricos exóticos recorrendo a palavras próprias e numa língua diferente é, quando muito, pastiche. Foi o que fez Miguel Sousa Tavares. Isto nada tem de ilegítimo, ilegal, ou desonesto, sobretudo num genéro como o romance histórico que vive largamente disso. O facto de Sousa Tavares ter, mais honestamente do que muitos, listado as obras em que se inspirou ainda torna a sua boa fé mais evidente e o trabalho dos denunciadores mais nulo. Os leitores do Equador podem portanto verificar que aquilo que queriam – um enredo polvilhado de descrições mais ou menos rigorosas de outros tempos – foi precisamente aquilo que obtiveram. Pode haver quem desgoste de um empreendimento literário com estaleiro tão à vista, mas isso é uma questão de estilo e género.
Mas Sousa Tavares errou de alvo ao atacar os blogues. Os blogues permitem pelo menos discutir uma acusação que de outra forma seria um boato mais difícil de documentar e contrariar abertamente. Sobretudo, não vejo que a imprensa de referência, que tanto tem realçado este aspecto, seja assim tão de referência neste campo. Quantas vezes tem usado blogues para alimentar as suas páginas como fez neste caso? Frequentes vezes copiando sem atribuição. Quantas vezes se tem feito eco de “fontes anónimas” que se revelaram falsas? E isto com a agravante de que quem espalha estas “notícias” é geralmente uma pequena elite com acesso directo aos jornais, e que a possibilidade de lhes dar resposta é limitada. A blogosfera é um alvo hipocritamente fácil.
Mas Sousa Tavares errou de alvo ao atacar os blogues. Os blogues permitem pelo menos discutir uma acusação que de outra forma seria um boato mais difícil de documentar e contrariar abertamente. Sobretudo, não vejo que a imprensa de referência, que tanto tem realçado este aspecto, seja assim tão de referência neste campo. Quantas vezes tem usado blogues para alimentar as suas páginas como fez neste caso? Frequentes vezes copiando sem atribuição. Quantas vezes se tem feito eco de “fontes anónimas” que se revelaram falsas? E isto com a agravante de que quem espalha estas “notícias” é geralmente uma pequena elite com acesso directo aos jornais, e que a possibilidade de lhes dar resposta é limitada. A blogosfera é um alvo hipocritamente fácil.
Parece que...
... a fernanda câncio teme ser confundida com a Politkovskaya. É verdade que estamos em Portugal. É verdade que a fernanda câncio escreve sem maiúsculas e por isso é normal que, como se queixa, seja muitas vezes mal entendida. Mas não me parece que mesmo em Portugal alguém pense tal coisa! Afinal há uma diferença evidente entre jornalistas à procura de causasinhas fracturantesinhas. E jornalistas a quem um poder brutal transforma – simplesmente por reportarem verdades incómodas – em jornalistas com causas. Em suma, nem a fernanda câncio é a Politkovskaya, nem o Sócrates é o Putin, Graças a Deus e a Nossa Senhora! (de Kazan ou de Fátima: escolham à vontade que por enquanto ainda se pode, acho eu...)
Parece que...
O Daniel Oliveira, modestamente (claro), considera-se suspeito, até já se colocou no alinhamento de pessoas a ser identificadas, de ser o acusador anónimo no suposto caso de plágio de Miguel Sousa Tavares (que o Daniel considera um vaidosão).
Quero crer que o Daniel pode ficar descansado. Afinal se Miguel Sousa Tavares quisesse referir-se a ele certamente teria falado de um bloquista social-democrata.
Quero crer que o Daniel pode ficar descansado. Afinal se Miguel Sousa Tavares quisesse referir-se a ele certamente teria falado de um bloquista social-democrata.
Contra duas “guerras” mundiais, dois “planos Marshall”
Ao menos nos media, o tratamento da questão designada por “aquecimento global” anda entre a estupidez e a ignorância. Hoje a TSF reproduz em antena uns cálculos segundo os quais, caso o “aquecimento” continue e nada seja feito para o parar e reverter, o seu impacto será equivalente ao de duas guerras mundiais. Não sei a qual guerra mundial se refere a notícia, mas presumindo que é à Segunda, e que os cálculos tenham sido feitos em termos absolutos, dou desde já o meu contributo para uma resolução fácil do problema (ao menos a posteriori): o lançamento de “dois planos Marshall”. Seguir-se-á uma guerra na Coreia e, logo a seguir, trinta gloriosos anos de crescimento económico. Tanto nos EUA, como na Europa ocidental e oriental, mas também na América Latina, em boa parte do continente asiático e na Oceânia. Ficará de fora a China, a Índia, o continente africano e o “mundo árabe”. Mas isso, convenhamos, disponibilizará mais uns bons anos de “arrefecimento” climático relativo, com a vantagem de em vez de ficarmos todos mais pobres – que é para onde nos leva a “ecologia” – ficá-lo-ão apenas só uns quantos.
P.S.: A notícia escrita da TSF acima "linkada" não se refere às duas “segundas guerras mundiais”. No entanto, os noticiários da tarde na citada estação mencioram repetidamente os custos acima referidos.
domingo, outubro 29, 2006
De Comboio
No sábado, recém-chegada da Beira, fiz-me ao sol de Lisboa aproveitando a borla ferroviária do dia. Enquanto seguia, lembrei-me não ter chegado a falar aqui, durante a semana, sobre isto de andar de comboio. Faço-o hoje, cento e cinquenta anos depois de, feita a solene inauguração da linha que ligou a capital do reino ao Carregado, esta ter começado efectivamente a funcionar.
A primeira linha de caminho-de-ferro moderna foi aberta em 1825, no Reino Unido. Passou-se mais de uma década até que a discussão pública sobre a sua implantação em Portugal se fizesse, por via da imprensa, e somente após a criação da Companhia das Obras Públicas, em 1844, se tornou expresso o objectivo de ligar o país a Espanha, e daí ao restante continente. Uma dúzia de atribulados anos mais tarde, iniciou-se o estabelecimento dessa nova rede de vias e veículos de comunicação. Hoje, o comboio é apenas um entre outros meios. Mas é o meu preferido. Depois das primeiras viagens de automóvel com a família, ainda criança, durante as férias frias (expressão em desuso, como em desuso está aquele pequeno Fiat 127), descobri o meu país de comboio. À medida que fui crescendo, com os amigos, mais raramente sozinha, andei no mítico regional (ou seria inter-regional?) das onze e muito da noite, de Santa Apolónia à Campanhã. Aquele que nunca demorava menos de oito horas a lá chegar, e que já saiu da tabela. Viajei no Tomarense, no Comboio dos Torresmos, pela Linha do Sul. Saí em apeadeiros rurais, em estações das linhas suburbanas. Vi magalas de harmónica, senhoras de lenço e cabaz, romances entre duas capitais de distrito, revisores bêbados, miúdos escrevendo diários de inter-rail.
Há umas semanas, a minha empregada salvou a biblioteca de uma outra cliente em mudanças, que num furor de desprendimento a tinha destinado integralmente à reciclagem. Fui chamada a recolher os salvados. Entre eles, estava um livro com quase vinte anos, escrito por um rapaz também nos vintes, onde se pode ler:
Há umas semanas, a minha empregada salvou a biblioteca de uma outra cliente em mudanças, que num furor de desprendimento a tinha destinado integralmente à reciclagem. Fui chamada a recolher os salvados. Entre eles, estava um livro com quase vinte anos, escrito por um rapaz também nos vintes, onde se pode ler:
"É para esses que este livro é feito em especial. Com eles está em perfeita comunhão o espírito da viagem sentimental do nosso tempo. Não da viagem à Xavier de Maistre, em redor do seu quarto. Não a viagem interior, qualquer que ela seja. Mas a viagem real marcada pelo facto de percorrer uma linha que já possibilitou outras viagens uma geografia, a formação de um espírito do lugar, a construção de uma visão do mundo realizada a partir de uma partilha dos lugares, dos espaços e do tempo."
Filmar a alma
As minhas três incursões no DocLisboa, muito condicionadas pelos horários e uma delas até resultante de um engano, acabaram por uma conduzir a uma única e inesperada questão: como filmar a alma? Vi os seguintes filmes: Our Daily Bread, de Nikolaus Geryhalter; Into Great Silence, de Philip Gröning; e Atman, de Pirjo Honkasalo. O primeiro documentário é uma montagem sem música de imagens de abate e esquartejamento de animais, recolha de alimentos vegetais e até de extracção do sal das minas; o segundo é o primeiro filme sobre a Grande Chartreuse, a casa-mãe da Ordem dos Cartuxos, uma das mais rigorosamente contemplativas, situada nos Alpes franceses; o último conta a história da peregrinação de seis mil quilómetros, ao longo do rio Ganges, de um deficiente indiano. As minhas reacções foram, por ordem sequencial: tédio, aborrecimento, entusiasmo.
Só a posteriori é que faz sentido revisitar na memória «Our Daily Bread» com a questão da alma. Mas quando o faço lembro-me daquele pensamento de Marx de que vivemos num mundo sem alma e de um outro de Feurbach: «o homem é o que come». O tédio que atinge o espectador, começa por ser o do trabalhadores que passam o dia a meter ou a tirar pintos de calhas, a cortar patas a porcos, a serrar vacas ao meio. Mesmo nas horas de pausa para refeição do seu trabalho, comem como preparam a comida dos outros, ou seja, mecanicamente, como se fossem seres híbridos sem alma, meio animais por serem constituídos por matéria orgânica e meio máquinas por cumprirem eficazmente as suas funções.
O filme sobre os Cartuxos é, em bom português, uma seca. Talvez o não fosse se durasse menos de 164 minutos, se o documentário construísse uma narrativa a partir de entrevistas aos diversos monges ou, pelo, menos, encontrasse uma legibilidade na divisão dos dias ou das épocas do ano. Pelo contrário, o realizador, talvez impressionado por o mosteiro ter demorado dezasseis anos a responder ao pedido de fazer um documentário, expõe na película a fuga ao tempo secular e ao mundo que alimenta uma certa espiritualidade monacal. É um filme do eterno retorno de práticas, rituais, palavras proferidas em oração ou projectadas no ecrã. O silêncio é rompido raramente por leituras no refeitório; por ocasionais reuniões no jardim (creio que uma vez por semana, ao domingo) em que os monges discutem se devem ou não lavar as mãos antes das refeições e a importância dos símbolos; por cânticos rituais. Durante alguns minutos, um dos monges mais velhos e cego afirma ter a certeza de que se Deus permitiu que cegasse foi para seu bem. Lamenta o mundo por ter perdido o sentido de Deus. Algumas micro-histórias atravessam como cometas as imagens de gestos repetidos: um monge alfaiate faz um novo fato; um monge negro, recém-chegado, inicia-se no mosteiro; outro monge arranja uma bota; um dia os monges vão passear pela montanha e divertem-se a escorregar pela neve. O essencial, o que dá sentido a tudo o que se vê, só pode estar fora do campo de visão. A mais íntima aproximação ao tema do documentário são os grandes planos dos rostos dos monges, intercalados no filme. Serão talvez uma dúzia e só um ou dois mantêm o olhar firme para a câmara até ao fim. Também só num ou dois é que se nota um brilhozinho nos olhos, um sorriso ténue, mas firme. A maior parte dos rostos são inexpressivos, tipo fotografia de passe.
«Atman» é a palavra em sânscrito para alma e também o título do documentário da filandesa Honkasalo, o último de uma trilogia sobre o sagrado e o demoníaco. Conta a história da peregrinação de Jamana Lal, um hindu de 35 anos, com as costas deformadas e as pernas raquíticas. A mãe morre e é dever de um hindu que, no ano seguinte, faça uma peregrinação para que a alma da defunta possa descansar em paz. Jamana parte num grupo de dezasseis pessoas. Tencionam percorrer seis mil quilómetros ao longo do Ganges até junto da sua fonte, nos Himalaias. Na parte inicial da viagem, Jamana Lal é por vezes transportado às costas pelo irmão. Quando se desloca sozinho, cruza as pernas minguadas no ar e anda equilibrado nas mãos. Apesar do seu fervor religioso, que o leva a mergulhar frequentemente nas águas imundas do Ganges, ficamos a saber que a sua relação com a família era tensa por um episódio contado: um dia o irmão bateu-lhe, dizendo-lhe que insultou um cliente (pertencem a uma casta de artesãos). Ele apanha o comboio e desaparece de casa durante dois meses. Só volta porque lhe dizem que, se não o fizer a mãe morre. Sentado numa carruagem de comboio, chupando o seu cigarrito e olhando a paisagem que desfila, vai confessando os seus pensamentos demoníacos: há dias em que lhe apetece matar ou morrer. À janela de um autocarro, olhando uma cidade cheia de gente como o Ganges de gotas pardas, sonha em como seria bom viver num deserto, em escapar a um mundo de conflitos pessoais.
Jamana Lal tem fé, mas não sorte. O grupo de peregrinos decide voltar para trás. Prossegue então apenas com uma mulher, Shanta. Têm pouco dinheiro, mas decidem comer apenas uma refeição por dia. É então que a realidade suplanta qualquer ficção verosímil: começa uma história de amor entre Jamana Lal e Shanta. O rosto do aleijado ilumina-se. As suas declarações enchem-se de esperança. Acredita que esta pode ser a sua última vida e que a irá partilhar com Shanta. À medida que os peregrinos se aproximam dos Himalaias, a água do Ganges vai-se tornando mais pura. Nenhum espectador acredita no que diz o guru: «não há neste mundo força capaz de tornar o Ganges impuro». Mas quando Jamana Lal mergulha nas piscinas naturais das altas montanhas, pela primeira vez, o ritual surge, aos olhos de um céptico ocidental, como sinónimo de purificação. Os diversos gurus confirmam que o karma de Jamana Lal e Shanta é viverem juntos. Após a peregrinação, ambos casam, segundo ritual hindu. O filme mais exótico pode ser o mais universalista. Os monges cartuxos cantavam que o Espírito Santo é um, mas foram as almas de Jamana Lal e de Shanta que encheram os ecrãns do DocLisboa.
Só a posteriori é que faz sentido revisitar na memória «Our Daily Bread» com a questão da alma. Mas quando o faço lembro-me daquele pensamento de Marx de que vivemos num mundo sem alma e de um outro de Feurbach: «o homem é o que come». O tédio que atinge o espectador, começa por ser o do trabalhadores que passam o dia a meter ou a tirar pintos de calhas, a cortar patas a porcos, a serrar vacas ao meio. Mesmo nas horas de pausa para refeição do seu trabalho, comem como preparam a comida dos outros, ou seja, mecanicamente, como se fossem seres híbridos sem alma, meio animais por serem constituídos por matéria orgânica e meio máquinas por cumprirem eficazmente as suas funções.
O filme sobre os Cartuxos é, em bom português, uma seca. Talvez o não fosse se durasse menos de 164 minutos, se o documentário construísse uma narrativa a partir de entrevistas aos diversos monges ou, pelo, menos, encontrasse uma legibilidade na divisão dos dias ou das épocas do ano. Pelo contrário, o realizador, talvez impressionado por o mosteiro ter demorado dezasseis anos a responder ao pedido de fazer um documentário, expõe na película a fuga ao tempo secular e ao mundo que alimenta uma certa espiritualidade monacal. É um filme do eterno retorno de práticas, rituais, palavras proferidas em oração ou projectadas no ecrã. O silêncio é rompido raramente por leituras no refeitório; por ocasionais reuniões no jardim (creio que uma vez por semana, ao domingo) em que os monges discutem se devem ou não lavar as mãos antes das refeições e a importância dos símbolos; por cânticos rituais. Durante alguns minutos, um dos monges mais velhos e cego afirma ter a certeza de que se Deus permitiu que cegasse foi para seu bem. Lamenta o mundo por ter perdido o sentido de Deus. Algumas micro-histórias atravessam como cometas as imagens de gestos repetidos: um monge alfaiate faz um novo fato; um monge negro, recém-chegado, inicia-se no mosteiro; outro monge arranja uma bota; um dia os monges vão passear pela montanha e divertem-se a escorregar pela neve. O essencial, o que dá sentido a tudo o que se vê, só pode estar fora do campo de visão. A mais íntima aproximação ao tema do documentário são os grandes planos dos rostos dos monges, intercalados no filme. Serão talvez uma dúzia e só um ou dois mantêm o olhar firme para a câmara até ao fim. Também só num ou dois é que se nota um brilhozinho nos olhos, um sorriso ténue, mas firme. A maior parte dos rostos são inexpressivos, tipo fotografia de passe.
«Atman» é a palavra em sânscrito para alma e também o título do documentário da filandesa Honkasalo, o último de uma trilogia sobre o sagrado e o demoníaco. Conta a história da peregrinação de Jamana Lal, um hindu de 35 anos, com as costas deformadas e as pernas raquíticas. A mãe morre e é dever de um hindu que, no ano seguinte, faça uma peregrinação para que a alma da defunta possa descansar em paz. Jamana parte num grupo de dezasseis pessoas. Tencionam percorrer seis mil quilómetros ao longo do Ganges até junto da sua fonte, nos Himalaias. Na parte inicial da viagem, Jamana Lal é por vezes transportado às costas pelo irmão. Quando se desloca sozinho, cruza as pernas minguadas no ar e anda equilibrado nas mãos. Apesar do seu fervor religioso, que o leva a mergulhar frequentemente nas águas imundas do Ganges, ficamos a saber que a sua relação com a família era tensa por um episódio contado: um dia o irmão bateu-lhe, dizendo-lhe que insultou um cliente (pertencem a uma casta de artesãos). Ele apanha o comboio e desaparece de casa durante dois meses. Só volta porque lhe dizem que, se não o fizer a mãe morre. Sentado numa carruagem de comboio, chupando o seu cigarrito e olhando a paisagem que desfila, vai confessando os seus pensamentos demoníacos: há dias em que lhe apetece matar ou morrer. À janela de um autocarro, olhando uma cidade cheia de gente como o Ganges de gotas pardas, sonha em como seria bom viver num deserto, em escapar a um mundo de conflitos pessoais.
Jamana Lal tem fé, mas não sorte. O grupo de peregrinos decide voltar para trás. Prossegue então apenas com uma mulher, Shanta. Têm pouco dinheiro, mas decidem comer apenas uma refeição por dia. É então que a realidade suplanta qualquer ficção verosímil: começa uma história de amor entre Jamana Lal e Shanta. O rosto do aleijado ilumina-se. As suas declarações enchem-se de esperança. Acredita que esta pode ser a sua última vida e que a irá partilhar com Shanta. À medida que os peregrinos se aproximam dos Himalaias, a água do Ganges vai-se tornando mais pura. Nenhum espectador acredita no que diz o guru: «não há neste mundo força capaz de tornar o Ganges impuro». Mas quando Jamana Lal mergulha nas piscinas naturais das altas montanhas, pela primeira vez, o ritual surge, aos olhos de um céptico ocidental, como sinónimo de purificação. Os diversos gurus confirmam que o karma de Jamana Lal e Shanta é viverem juntos. Após a peregrinação, ambos casam, segundo ritual hindu. O filme mais exótico pode ser o mais universalista. Os monges cartuxos cantavam que o Espírito Santo é um, mas foram as almas de Jamana Lal e de Shanta que encheram os ecrãns do DocLisboa.
Virtudes espanholas
Para aqueles que facilmente salivam com as virtudes do exemplo espanhol e, por exemplo, se indignam com o estado em que se encontram as finanças do futebol profissional português e as suas relações com a "política", talvez valha a pena ler esta investigação/notícia no La Voz de Galicia de hoje. Sempre a aprender com um bocadinho de contexto.
sábado, outubro 28, 2006
Telepropaganda
Muito raramente vejo os agora muito afamados, comentados e analisados “telejornais” das 20 horas. Hoje, como excepção à regra, lá parei uma meia-hora diante da televisão para ver o telejornal da RTP. Sensibilizou-me muito a reportagem em que aparecia uma jovem (?) jornalista mal vestida, com uma cabeleira loira artificial horrível, de corpo flácido e caixa de óculos como eu, a repetir três ou quatro vezes que o caminho de ferro tinha chegado a Portugal com, salvo erro, vinte anos de atraso em relação à “Europa”. Presumo que a toda a Europa, de Badajoz aos Urais. Mas esta insistência num facto que não é verdadeiro trazia água no bico. Era campanha descarada a favor da introdução – defendida por este Governo – do “TGV” em Portugal. É que imediatamente a seguir à peça sobre os 150 do caminho de ferro cá do burgo pôde-se, durante uns bons minutos, apreciar uma peça jornalística – na verdade de propaganda – sobre a cerimónia em o ministro Lino, se não me engano, falava da introdução do comboio de alta velocidade em Portugal e que tanta oposição e discussão tem gerado. Eu sei que posso parecer o Pacheco Pereira ou o Eduardo Cintra Torres – dos pobrezinhos ou dos mentecaptos –, mas assistir a cerca de 30 minutos de telejornal na RTP 1 foi muito instrutivo.
Mas como se não bastasse o trem, ainda ouvi e vi numa outra reportagem o ministro António Costa dizer olhos nos olhos aos portugueses, através da mesma RTP, que a culpa pelos estragos produzidos pelo do mau tempo há três ou quatro dias devem ser certamente de todos menos do governo. A culpa, que agora para os socialistas deixou de poder dormir solteira, foi, evidentemente, dessa canalha que são os autarcas. É claro que, no fim, o ministro disse que não sabia de quem era culpa e que a investigação que está a decorrer ou que irá acontecer tratará de, e de modo independente, apurar o nome dos responsáveis. Mas assim como antes tinha dito que o responsável era o poder local, também garantiu que a Protecção Civil, que depende do MAI, está inocente. Gosto de ministros assim. Matam logo à partida qualquer possibilidade de neles se poder vir a depositar qualquer esperança.
O meu “Grande Português” é o Infante D. Henrique.
Sobre o concurso os Grandes Portugueses, de que se alguma coisa sei aprendi através dos blogues, decidi hoje pronunciar-me comunicando a minha escolha. Voto no Infante D. Henrique. O mais notável da “ínclita geração”, o pai dos descobrimentos portugueses – a ele por isso devemos aquilo que desde o século XV fomos, somos e seremos. Homem empreendedor como poucos, fundou uma escola náutica em Sagres que parece nunca ter existido, foi mestre da Ordem de Cristo – se a memória me não atraiçoa –, estratego da construção de um Império português e cristão no Norte de África, carrasco voluntário do seu irmão, o infante D. Fernando, e empresário – comerciou ouro e malagueta oriunda da Guiné e foi o primeiro importador de escravos africanos para a metrópole. Parece que não apreciava o suposto eurofilismo do seu outro irmão, D. Pedro. Nunca terá navegado mais do que entre duas margens de um ou outro rio, e, ainda por cima, ao que se dizia nos meus tempos de estudante adolescente no “Liceu” D. João de Castro, o Infante D. Henrique foi homem casto. A castidade dos outros sempre me impressionou, mas posso assegurar que nunca conheci casto português como o Infante D. Henrique. E depois há o Padrão dos Descobrimentos, com ele no topo, de caravela nas mãos à espera que a maré suba para lançá-la ao rio. Já lá vão, segundo dizem, 66 anos!
Nota: Podia votar em D. João II. Mas D. João II, um dos maiores, senão o maior rei português, el hombre, como lhe chamava Isabel a Católica, apostou e perdeu. Foi uma pena. E que pena.
Eva Cassidy - "Somewhere Over The Rainbow" (ao vivo)
Gravada há uma década, no Blues Alley (Washington, D.C.), esta canção é quase outra, tanto a interpretação eleva a composição. Cassidy não sobreviveu a esse mesmo ano, mas a sua voz sim. E aí está ela, iluminando dias de chuva.
[a canção consta em "Songbird", de [1998, não 2000, como aparece no clip]
Gravada há uma década, no Blues Alley (Washington, D.C.), esta canção é quase outra, tanto a interpretação eleva a composição. Cassidy não sobreviveu a esse mesmo ano, mas a sua voz sim. E aí está ela, iluminando dias de chuva.
[a canção consta em "Songbird", de [1998, não 2000, como aparece no clip]
Almanaque do Povo
Aberto em dia feriado: Em fase de teste, e com inauguração marcada para 1 de Novembro, apresenta-se o colectivo d'O Cachimbo de Magritte.
Um bocadinho menos melancólica: afinal, a tal da regeneração blogosférica tem destas boas surpresas.
Tem de ser em, no é impossível: acreditem-me, noutro dia tive de ir ao Babilónia, a uma loja que afinal já fechou. E não há extraordinária implementação entre a Avenida Gago Coutinho e a Rua Elias Garcia, nem comovente narrativa lobantunina que agora lhe valha. Que o mantenha palco de voltas e desenvoltas.
Tudo o que eu tive vontade de dizer sobre a reaparição de Pedro Santana Lopes (mas não disse, sobrevindo-me a preguiça): foi dito pelo Mário, no nunca suficientemente elogiado 15 Den.
Tudo o que eu tive vontade de dizer sobre a reaparição de Pedro Santana Lopes (mas não disse, sobrevindo-me a preguiça): foi dito pelo Mário, no nunca suficientemente elogiado 15 Den.
[Reprodução:BND]
Etiquetas: Almanaque
sexta-feira, outubro 27, 2006
Mais lucidez e menos conversa.
Por várias razões não pude ir à Gulbenkian na passada quarta-feira ver e ouvir Robert Kagan. Um resumo daquilo que disse tem, sem qualquer surpresa, muito a ver com esta citação que, ontem, me dei ao trabalho de pôr aqui. Valha-nos a lucidez de Kagan e de Edward Gibbon (sobretudo deste, falecido há uns bons duzentos anos). O resto é conversa!
Grandes Portugueses, Grande Confusão
O debate de há dias sobre os Grandes Portugueses foi esclarecedor na sua falta de esclarecimento e já valeu a minha estada tardia na pátria. Até houve direito a um sketch do Gato Fedorento a partir de Braga. (Apesar de, estranhamente, o Ricardo Araújo Pereira parecer estar em Lisboa a dizer coisas sensatas.)
No ponto essencial, a relação entre história, memória e televisão, Luís Reis Torgal, catedrático de história em Coimbra, foi intransigente. A história, insistia com ar preocupado, é complexa! Portanto, caso do programa vertente, não se pode evidentemente reduzir à vulgar divulgação televisiva. E atirou-se ao bode expiatório de estimação de muitos historiadores profissionais portugueses: José Hermano Saraiva. Realmente. Conclusão, avisem a BBC para fechar as portas! Mandem recado à PBS para deixar de produzir documentários! Será preciso lembrar que a BBC (ou a sua congénere norte-americana) tem uma enorme, e frequentemente excelente, produção de documentários de divulgação histórica? E com registos bem diferentes. Há desde os em tudo semelhantes aos de José Hermano Saraiva (veja-se a Sister Mary Wendy para a história de arte), até outros (como Nazis : A Warning from History de Ian Kershow, ou The Civil War de Ken Burns) que estão entre as análises mais incontornáveis (e complexas) que se fizeram sobre os respectivos temas. Além de tudo o mais, como é que é possível que um historiador da memória achar que uma escolha desta natureza não tem algum interesse?
A resposta veio por via do brilho verbal do velho professor Saraiva: "o professor Reis Torgal não me confunde com a história. Eu retribuo o cumprimento. Não confundo a história com o professor Reis Torgal". Mas veio sobretudo e mais substancialmente pela boca da Lídia Jorge que insistiu que não se tratava neste programa de história mas de mitologia: era um programa lúdico. Mas, no fundo, quer a descontraída Lídia Jorge quer o seríssimo Luís Reis Torgal concordavam que para ser interessante e divertido um programa não pode ser historicamente sério. Até pode ser que os Grande Portugueses não consiga ser as duas coisas, mas isso só depende de como vier a ser feito. Dizer à partida que é impossível fazer divulgação história que seja de qualidade e interessante é que não faz nenhum sentido tendo em conta o que se faz lá fora, o até o que ocasionalmente já se faz cá dentro.
Estranhamente, a mesma Lídia Jorge, e sobretudo a militante Joana Dias, com a ajuda de outros dedicaram-se sistematicamente a exorcizar o fantasma do velho Salazar, com dados da vida deles e com dados objectivos. Mas afinal não era tudo mitologia e brincadeira? Se a história não tem lugar nestes debates lúdicos, então como é que pudemos avaliar os testemunhos bem diferentes de Lídia Jorge e de José Hermano Saraiva, que ambos viveram o Estado Novo, mas evidentemente de forma bem diferente? A solução para o esquecimento dos males do regime por um apelo aos jovens para pedirem aos pais para lhes falarem das suas recordações do regime é, sem mais, um apelo à confusão generalizada.
Neste ponto Reis Torgal insistiu no essencial: à história, enquanto tal, não cabe propagandear heróis ou denunciar vilões, mas criar uma base sólida de análise. Torgal veio ainda desmentir a ideia cómica de que há pouca análise do Estado Novo, quando este é o campo actualmente mais estudado e publicado da história pátria. Falta talvez quem leia, e eventualmente falta até quem saiba escrever e divulgar, mas que o material está aí aos pontapés, está.
No ponto essencial, a relação entre história, memória e televisão, Luís Reis Torgal, catedrático de história em Coimbra, foi intransigente. A história, insistia com ar preocupado, é complexa! Portanto, caso do programa vertente, não se pode evidentemente reduzir à vulgar divulgação televisiva. E atirou-se ao bode expiatório de estimação de muitos historiadores profissionais portugueses: José Hermano Saraiva. Realmente. Conclusão, avisem a BBC para fechar as portas! Mandem recado à PBS para deixar de produzir documentários! Será preciso lembrar que a BBC (ou a sua congénere norte-americana) tem uma enorme, e frequentemente excelente, produção de documentários de divulgação histórica? E com registos bem diferentes. Há desde os em tudo semelhantes aos de José Hermano Saraiva (veja-se a Sister Mary Wendy para a história de arte), até outros (como Nazis : A Warning from History de Ian Kershow, ou The Civil War de Ken Burns) que estão entre as análises mais incontornáveis (e complexas) que se fizeram sobre os respectivos temas. Além de tudo o mais, como é que é possível que um historiador da memória achar que uma escolha desta natureza não tem algum interesse?
A resposta veio por via do brilho verbal do velho professor Saraiva: "o professor Reis Torgal não me confunde com a história. Eu retribuo o cumprimento. Não confundo a história com o professor Reis Torgal". Mas veio sobretudo e mais substancialmente pela boca da Lídia Jorge que insistiu que não se tratava neste programa de história mas de mitologia: era um programa lúdico. Mas, no fundo, quer a descontraída Lídia Jorge quer o seríssimo Luís Reis Torgal concordavam que para ser interessante e divertido um programa não pode ser historicamente sério. Até pode ser que os Grande Portugueses não consiga ser as duas coisas, mas isso só depende de como vier a ser feito. Dizer à partida que é impossível fazer divulgação história que seja de qualidade e interessante é que não faz nenhum sentido tendo em conta o que se faz lá fora, o até o que ocasionalmente já se faz cá dentro.
Estranhamente, a mesma Lídia Jorge, e sobretudo a militante Joana Dias, com a ajuda de outros dedicaram-se sistematicamente a exorcizar o fantasma do velho Salazar, com dados da vida deles e com dados objectivos. Mas afinal não era tudo mitologia e brincadeira? Se a história não tem lugar nestes debates lúdicos, então como é que pudemos avaliar os testemunhos bem diferentes de Lídia Jorge e de José Hermano Saraiva, que ambos viveram o Estado Novo, mas evidentemente de forma bem diferente? A solução para o esquecimento dos males do regime por um apelo aos jovens para pedirem aos pais para lhes falarem das suas recordações do regime é, sem mais, um apelo à confusão generalizada.
Neste ponto Reis Torgal insistiu no essencial: à história, enquanto tal, não cabe propagandear heróis ou denunciar vilões, mas criar uma base sólida de análise. Torgal veio ainda desmentir a ideia cómica de que há pouca análise do Estado Novo, quando este é o campo actualmente mais estudado e publicado da história pátria. Falta talvez quem leia, e eventualmente falta até quem saiba escrever e divulgar, mas que o material está aí aos pontapés, está.
A história tem uma importante função cívica numa sociedade democrática precisamente ao desfazer mitos, ao permitir dar aos cidadãos uma referência crítica sobre o passado.
Quanto ao ensino da história, faltará eventualmente tempo para chegar ao Estado Novo, não sei. O que sei é que sistematicamente os programas portugueses eram (são?) demasiado ambiciosos. E se sou a favor da exigência quanto a alunos e professores, ela só faz sentido se for acompanhada de metas realistas. (Quanto à motivação dos alunos ela tem de vir sobretudo de casa, como é evidente, um professor dotado e empenhado ajuda, mas não fará milagres).
Evidentemente que a História de Portugal ensinada a crianças e adolescentes deve referir a natureza ditatorial do Estado Novo e a repressão. Como deve referir, também, se esses temas foram abordados, os exílio forçados e a violência política da Primeira República, o despotismo sangrento do Marquês de Pombal, sem esquecer, claro, os assassínios de D. João II ou o facto dos nossos heróicos marinheiro e soldados das Descobertas frequentemente recorrerem ao massacre e ao terror nos seus encontros de culturas. Quantas crianças e jovens tiveram o prazer ouvir aquela história fascinante de marinheiros indianos decapitados e das suas cabeças disparadas de volta para a cidade de onde provinham para servirem de exemplo? Ou seja, não se deve ignorar no ensino, bem pelo contrário, o lado negro do nosso passado. Embora também não se deva evidentemente ficar apenas por aí, cair na divinização ou na demonização.
Evidentemente que a História de Portugal ensinada a crianças e adolescentes deve referir a natureza ditatorial do Estado Novo e a repressão. Como deve referir, também, se esses temas foram abordados, os exílio forçados e a violência política da Primeira República, o despotismo sangrento do Marquês de Pombal, sem esquecer, claro, os assassínios de D. João II ou o facto dos nossos heróicos marinheiro e soldados das Descobertas frequentemente recorrerem ao massacre e ao terror nos seus encontros de culturas. Quantas crianças e jovens tiveram o prazer ouvir aquela história fascinante de marinheiros indianos decapitados e das suas cabeças disparadas de volta para a cidade de onde provinham para servirem de exemplo? Ou seja, não se deve ignorar no ensino, bem pelo contrário, o lado negro do nosso passado. Embora também não se deva evidentemente ficar apenas por aí, cair na divinização ou na demonização.
A história pode ser cívica sem deixar de ser crítica, pode ser uma científica humana sem deixar de ser lúdica. E os portugueses podem votar em grandes do passado como pessoas adultas, ou seja, cientes de que não heróis sem mácula, nem santos sem pecado.
PS - Quando falo de confusão, não quer dizer que nada se aproveitasse. As intervenções de Évora, ou muito do que disse Mário Bettencourt Resendes, Ricardo A Pereira, Pedro Pinto, Isabel Alçada até me pareceram pertinentes sobre pontos de pormenor. Curiosamente o maior intelectual português do século XX, Eduardo Lourenço, e um dos mais importantes para se perceber Portugal - basta ler o Labirinto da Saudade - não brilhou particularmente. Talvez para o ambiente ou o tema não se prestar, talvez por precisar de tempo para pensar sobre o assunto, ou talvez por ser eu a precisar de mais tempo para digerir o que ele disse.
IMAGEM: Cold Mountain de Brice Marden.
As minhas dúvidas (XV)
Se eu tivesse livre-arbítrio e pelos meus actos (e outros fenómenos espontâneos, interiores ou visíveis) me pudesse salvar, isso não implicaria que Deus seria um joguete nas minhas mãos?
As minhas dúvidas (XIII)
A providência particular de Deus aplica-se só aos nossos actos ou também aos pensamentos (quer dizer, Ele dispõe assim e assado para eu reflectir espontaneamente nalguma coisa ou essa reflexão já é Ele que provê com um propósito que não alcanço)?
As minhas dúvidas (XIV)
Em todo o caso, sendo este e aquele exame de consciência parte da providência particular de Deus – e não um fenómeno interior puramente espontâneo –, pensar que isso reduz o meu papel na minha própria salvação não seria um tanto ou quanto soberbo da minha parte?
As minhas dúvidas (XII)
A dúvida anterior deve levar-me a concluir que sou um joguete nas mãos do Senhor ou que tenho uma predisposição que é minha (ou sou eu) para a chalaça sarcástica – que Ele por dentro vê – e cuja correcção, para mim e perante os outros, provê que se manifeste em situações que antecipadamente conhece?
As minhas dúvidas (XI)
Eu, que pergunto aos colegas de trabalho se querem das bolachas do pacote que seguro já na mão, para logo responder ao seu agradecimento negativo que só estava a fazer uma auscultação sem propósito de as oferecer, abro o pacote pelo lado errado enquanto digo a chalaça; raciocinando que o erro foi um castigo de Deus, não sou obrigado a concluir que Ele de facto sabia antecipadamente da chalaça para me colocar o pacote assim nas mãos – e que sem predestinação não há providência particular do Altíssimo?
Uma campanha alegre.
A 1 de Novembro, dia de todos os santos, haverá eleições autonómicas na Catalunha. A CiU, liderada por Artur Mas, expulsará os socialistas do poder. Mas como poderá não ter maioria e já jurou que não governará com qualquer tipo de aliança com o PPC de Piqué, um dos mais civilizados e interessantes políticos catalães dos últimos anos, é possível que busque apoio ou nos socialistas ou nos nacionalistas radicais (embora a CiU também se tenha radicalizado bastante nos últimos tempos). Pelo meio, e já que a derrota é inevitável – resta apenas saber por quantos –, o PSC e Montilla – o seu fleumático líder – acharam por bem produzir um vídeo em que este é associado à célebre Nocilla (uma espécie de Tulicreme, mas pior). Está tudo aqui e louve-se, senão o desespero, ao menos o fair-play socialista numa campanha que começou mal mas talvez consiga acabar bem.
quinta-feira, outubro 26, 2006
Grandes em quê?
Os Grandes Portugueses serviu pelo menos para ilustrar, desde já, uma coisa em que realmente costumamos ser grandes: botar faladura sem o mínimo de trabalho em perceber aquilo de que se está a falar. Foi o caso dos inúmeros comentaristas que se apressaram a vir condenar a lista de nomes de grandes portugueses em que se podia votar, quando uma visita ao sítio do programa poderia ter esclarecido em 2 minutos que se tratava de meras sugestões e cada um podia votar em quem lhe apetecesse. Achar que os portugueses, coitadinhos, se sentiriam constrangidos por essa lista de sugestões parece-me uma ideia insultuosamente ridícula. Se alguma coisa caracteriza o bom povo português neste momento é o desejo de dar opinião sobre tudo e sobre nada, mesmo sem conhecer nada do assunto.
Às Vezes...
Às vezes penso se não era mesmo assim que eu gostava de ver a “Europa.” Peço desculpa pela longa citação. Mas, afinal, é Gibbon.
Um grego mais judicioso, que redigiu com espírito filosófico a memorável história do seu tempo […] [tornou] patentes os profundos e sólidos alicerces da grandeza de Roma. A fidelidade dos cidadãos entre si e ao Estado era confirmada pelos hábitos da educação e pelos preconceitos da religião. A honra, tanto quanto a virtude, constituía o princípio da República; os cidadãos ambiciosos esforçavam-se por merecer as solenes glórias do triunfo; e o ardor da juventude romana era induzido a uma emulação activa sempre que contemplava os retratos domésticos dos antepassados. Os confrontos moderados entre patrícios e plebeus tinham finalmente estabelecido o firme equilíbrio da Constituição, reunido a liberdade das assembleias do povo, a autoridade e a soberania de um Senado e os poderes executivos de um magistrado supremo. Quando o cônsul desfraldava o estandarte da República, todos os cidadãos se obrigavam por juramento a empunhar a espada em prol do seu país, até cumprirem o dever sagrado mediante um serviço militar de dez anos. Uma tão sábia instituição lançava sem cessar no campo de batalha as gerações nascentes de homens livres e soldados; e o seu número era reforçado pelos aguerridos e populosos Estados de Itália que, após uma corajosa resistência, tinham reconhecido o valor e aceite a aliança dos Romanos. O sábio historiador que inflamou a virtude do último dos Cipiões, e observou a ruína de Cartago, descreveu cuidadosamente o seu sistema militar; os recrutamentos, as armas, os exércitos, a subordinação, as marchas, os acampamentos; e a invencível legião, superior em força activa à falange macedónia de Filipe e de Alexandre. Políbio atribuía a estas instituições de paz e de guerra o carácter e os êxitos de um povo incapaz de medo e adverso ao repouso. O ambicioso desígnio de conquista, que podia ter sido derrotado por uma oportuna concertação de nações, foi empreendido e consumado; e a perpétua violação da justiça estribou-se nas virtudes políticas da prudência e da coragem. Os exércitos da República, algumas vezes vencidos em batalha, sempre vitoriosos no fim da guerra, avançaram em passo rápido até ao Eufrates, ao Danúbio, ao Reno e ao Oceano; e as imagens de ouro, prata ou bronze que serviam para representar as nações e os seus reis, foram sucessivamente quebradas pelo jugo de ferro da dominação romana.
Um grego mais judicioso, que redigiu com espírito filosófico a memorável história do seu tempo […] [tornou] patentes os profundos e sólidos alicerces da grandeza de Roma. A fidelidade dos cidadãos entre si e ao Estado era confirmada pelos hábitos da educação e pelos preconceitos da religião. A honra, tanto quanto a virtude, constituía o princípio da República; os cidadãos ambiciosos esforçavam-se por merecer as solenes glórias do triunfo; e o ardor da juventude romana era induzido a uma emulação activa sempre que contemplava os retratos domésticos dos antepassados. Os confrontos moderados entre patrícios e plebeus tinham finalmente estabelecido o firme equilíbrio da Constituição, reunido a liberdade das assembleias do povo, a autoridade e a soberania de um Senado e os poderes executivos de um magistrado supremo. Quando o cônsul desfraldava o estandarte da República, todos os cidadãos se obrigavam por juramento a empunhar a espada em prol do seu país, até cumprirem o dever sagrado mediante um serviço militar de dez anos. Uma tão sábia instituição lançava sem cessar no campo de batalha as gerações nascentes de homens livres e soldados; e o seu número era reforçado pelos aguerridos e populosos Estados de Itália que, após uma corajosa resistência, tinham reconhecido o valor e aceite a aliança dos Romanos. O sábio historiador que inflamou a virtude do último dos Cipiões, e observou a ruína de Cartago, descreveu cuidadosamente o seu sistema militar; os recrutamentos, as armas, os exércitos, a subordinação, as marchas, os acampamentos; e a invencível legião, superior em força activa à falange macedónia de Filipe e de Alexandre. Políbio atribuía a estas instituições de paz e de guerra o carácter e os êxitos de um povo incapaz de medo e adverso ao repouso. O ambicioso desígnio de conquista, que podia ter sido derrotado por uma oportuna concertação de nações, foi empreendido e consumado; e a perpétua violação da justiça estribou-se nas virtudes políticas da prudência e da coragem. Os exércitos da República, algumas vezes vencidos em batalha, sempre vitoriosos no fim da guerra, avançaram em passo rápido até ao Eufrates, ao Danúbio, ao Reno e ao Oceano; e as imagens de ouro, prata ou bronze que serviam para representar as nações e os seus reis, foram sucessivamente quebradas pelo jugo de ferro da dominação romana.
Edward Gibbon, The Decline and Fall of the Roman Empire (tradução portuguesa de Maria Emília Ferros Moura, revisão técnica de G. Cascais Franco, Difusão Cultural, 1995).
Escritores copistas e ladrões
A polémica acerca do alegado plágio de Miguel Sousa Tavares no romance Equador ignora uma observação certeira de Horacio Quiroga, um grande escritor argentino: um mau escritor copia; um grande escritor rouba. O ponto não é se Miguel Sousa Tavares escreve as mesmas coisas que aparecem noutros livros, mas se as escreve com outro estilo.
quarta-feira, outubro 25, 2006
As minhas dúvidas (X)
"The only way we lose in Iraq is if we leave before the job is done", disse hoje o presidente George W. Bush depois de reconhecer que a situação é crítica; mas, pergunto eu, isto não pode querer dizer que estamos perante um "job for ever"?
As minhas dúvidas (IX)
É impressão minha ou João Miranda tem razão ao comparar a recente legislação "anti-terrorista" norte-americana com os julgamentos de 1945 na Alemanha? (Quer dizer: o declínio da "democracia liberal" norte-americana não é de agora, mas de então.)
terça-feira, outubro 24, 2006
Estados de Alma ou Estado do Tempo?
Pode ser que seja por causa do alto teor de humidade na atmosfera, mas ando com a sensação de que, mesmo quando dizem bem, muitos amigos do povo andam um bocado amargurados - a avaliar por vários posts mas, também, a começar por este que, apesar de tudo, tenta ser um princípio de catarse.
País das Maravilhas: o Regresso do Estadista
Só num país como Portugal é que uma personagem como Santana Lopes ainda tinha tanto tempo de antena sem contraditório de alguém de bom-senso.
Sócrates no caso das ditas mentiras - veja-se a sua posição quanto às taxas moderadoras na saúde (ou do ministro Correira de Campos) - fez algo que é politicamente perfeitamente legítimo: acentuou diferenças face ao partido concorrente (que num pais como Portugal entre os partidos do governo nunca são radicais), e apontou o sentido em que veio efectivamente agir, mas sem se comprometer demasiado à partida com uma determinada solução.
Como é normal numa campanha eleitoral falou mais do positivo do que do negativo. Resistiu a amarrar-se a políticas impopulares - como subida de impostos ou outras taxas - antes de estar segura saber que elas seriam absolutamente necessários. E na certeza de que insistir nesse ponto seria politicamente suicida: teria provavelmente custos eleitorais (negar ao PS a maioria absoluta) que tornariam impossível precisamente a execução de quaisquer dessas tais reformas custosas. Enfim, fez o que faria qualquer político sensato, que era o que país ardentemente queria depois do (des)consulado Santanista. Mesmo assim foi (e é) acusado de ser um pessimista.
No programa eleitoral e no programa do governo onde é que estão (por exemplo relativamente às SCUTs) as grandes contradições? E afinal, não é este governo acusado, por vezes, de arrogância, de abusar da maioria absoluta? Se nalguns casos acede aos apelos insistentes da oposição, isso afinal está mal? Vejam lá se se decidem!
O que o PS nunca fez foi chegar ao extremos do populismo do PSD, que achou por bem propagandear, no estado em que estava a economia do país, que ia baixar os impostos! Foi o famoso choque fiscal com o qual o PSD ganhou as legislativas a Ferro Rodrigues. Foi destas famosas eleições, convém não esquecer, que veio a vaga pretensão de legitimidade legal e política que Santana Lopes poderá reclamar para ter assumido tão degraçadamente o governo da nação. Dessa mentira eleitoralmente vitoriosa, ou da sua responsabilidade pela condução errática do governo, estranhamente o estadista Santana não falou neste apelo à decência e à assunção corajosa das responsabilidades pelos políticos. Mas que outra coisa seria de esperar de um irresponsável político professional?
IMAGEM: De TMC in randomprecision
A Chuva
O que nasceu da fértil cinza não sustém dias assim, de uma água que cai para fazer a mais pequena barroca subir mar a monte. Que diriam os antigos que usavam esse português partido em dias de maior caudal, se vissem paredes esbarrondadas, restos de restos de árvores finalmente tombados, colinas em derrocada, e este vento, um vento que sova sem dó o que ainda há?
[Foto: C. M. Proença-a-Nova]
segunda-feira, outubro 23, 2006
A Diarreia da Mentira.
As mentiras de José Sócrates durante a campanha eleitoral – e algumas já praticadas enquanto primeiro-ministro – não corroem apenas a credibilidade do Governo, do seu chefe, e das suas políticas. Como se não bastasse, as mentiras de Sócrates acabam de ameaçar tornar Santana Lopes num político credível. Veja-se a sua crónica de hoje de manhã na TSF (em que acusou Sócrates de “batota” política por ter mentido descaradamente durante a campanha eleitoral de 2005) ou o conteúdo de uma sua entrevista à SIC – cujos excertos têm vindo a ser passados nos noticiários daquele canal e que será reproduzida na íntegra por volta da meia-noite na SIC Notícias. Uma personagem totalmente irresponsável como aquele que foi o nosso penúltimo chefe de Governo, aparece de repente com a cara lavada e com legitimidade em muito daquilo que diz pelo facto de lhe ser tão fácil provar que Sócrates ganhou as últimas eleições legislativas mentindo mais do que aquilo que seria razoável. Assim, parece óbvio que independentemente da qualidade de medidas ou reformas políticas adoptadas – do ponto de vista da sua substância ou dos seus resultados – e que podem contar com maior ou menor apoio ou com maior ou menor oposição, os portugueses se cansam dos políticos que sofrem de uma espécie de diarreia da mentira. Se a mentira com resultados ainda se consegue suportar, embora cedo ou tarde qualquer político pague por ela, a mentira sem resultados liquida qualquer um. E quer se queira quer não as políticas deste Governo ainda produziram quaisquer resultados substanciais.
Os portugueses podem gostar mais ou menos de Sócrates e dos seus ministros ou das suas políticas. Mas aquilo que nas últimas semanas mais tem contribuído para provocar a erosão da popularidade e da credibilidade deste Governo e do primeiro-ministro, ao ponto de Santana Lopes falar nela e ninguém, no seu perfeito juízo, pensar seriamente pensar em desdizê-lo, é a acusação de que Sócrates é, o fim ao cabo, um mentiroso. É a mentira e, sobretudo, a mentira sobre a mentira – a tentativa de se convencer o cidadão anónimo de que a mentira nunca existiu – que liquidam políticas e políticos. Se as coisas continuam assim, veremos quem irá dar a estocada final em Sócrates. Um qualquer Manuel Alegre, uma mais ou menos anónima Helena Roseta, um anódino secretário de Estado ou ministro, um desavergonhado Santana Lopes, um circunspecto Cavaco Silva ou um sinistro António Costa? Ou, pura e simplesmente, um OGE criminoso? As questões éticas não contam em política? As questões éticas contam politicamente quando analisamos a política dos outros. As questões éticas são tão relevantes em política já mataram muitos políticos, muitos regimes políticos e até já ressuscitaram uns e outros. Importam políticos honestos e a honestidade na política. Ainda bem que assim é. Só tenho pena que não seja mais vezes!
Véu
O debate político britânico anda agitado pela questão do Niqab ou véu negro completo. A questão é complexa. Ninguém defendeu a proibição do dito. Mas o ministro Jack Straw veio dizer a propósito que as comunidades muçulmanas também tinham de fazer um esforço para se integrar e dialogar com o resto da sociedade britânica e que o niqab era uma forma de se auto marginalizarem. Blair apoiou. Tudo isto veio a propósito de uma professora substituta, ou algo assim, que decidiu a certa altura começar a usar o véu completo e foi despedida de uma escola pública como resultado disso. (Uma decisão considerada legal pelo tribunal de primeira instância.)
O que eu posso testemunhar é que o niqab realmente nem sempre dá muito jeito. Certa vez estava eu a enviar uma encomenda no Post Office (estação de correios para os amigos portugueses) e tive de remendar a coladura do embrulho. Quando levantei a encomenda o niqab da dama em frente veio agarrado. Fiquei naturalmente sem saber pela expressão se tinha ficado furiosa ou não. Mas desconfio que não. Pois respondeu ao meu atrapalhado so sorry (depois de ter descolado o pacote do niqab) num inglês muito posh: It's perfectly all right! Em suma... as aparências enganam.
Lisboa e o seu Presidente-Engenheiro: o Saque Final?
O texto da Luísa Schmidt no Expresso deste fim-de-semana é bem esclarecedor dos resultados deste primeiro ano de actividade do Engenheiro Carmona Rodrigues, e devia ser de distribuição gratuita nos transportes públicos olisiponenses para comemorar o aniversário da sua posse. Como não podemos tanto, ficam aqui alguns excertos escolhidos. “A política urbana de Lisboa parece um caterpillar conduzido pelos interesses imobiliários.” Ou “duas coisas são comuns a todo este carrossel delirante: a total falta de sentido integrado do que seja a cidade e o seu destino; e um desembaraço absoluto em relação a leis”. Ou ainda, o Plano Director Municipal em vigor “é como se não existisse e todos estes processos avançam ao trambolhão à revelia dos próprios técnicos da Câmara” E termina perguntando muito pertinentemente: “a CML existe para quê?” e “o seu presidente preside a que coisas?”
A resposta parece ser que o Presidente-Engenheiro preside ao desaparecimento do pouco que tinha escapado (as zonas mais impróprias para construções como os leitos de cheia, os escassos espaços onde ainda podia crescer algum verde) do desastre urbanístico que é a Lisboa pós-moderna. Lisboa sobrevive – e mal, por que muito do antigo está a precisar de manutenção – graças a séculos passados de improvisação sensata e planeamento razoável (desde o Bairro Alto de D. Manuel até à Baixa Pombalina, passando pelo Passeio Público do século XIX, e pelas Avenidas Novas e os Olivais do Salazarismo). O pouco que sobra para podermos fazer alguma coisa de decente no futuro está em vias de desaparecer numa voragem de betão armado tão devotamente projectada pelo Presidente-Engenheiro.
Restam-nos poucas esperança contra o desenvolvimentismo soviético que ainda vai sobrevivendo na China, na Madeira e em Lisboa. A maior são os movimentos cívicos de protesto (esse novos dissidentes) organizados pelos moradores. Mas é de exigir como refere o artigo citado que o Ministério do Ambiente serva a sua função mais elementar e obrigue a Câmara de Lisboa a cumprir minimamente o seu próprio PDM no que este tem de mais importante: salvaguardar minimamente o espaço público e a qualidade de vida que dele depende. Pode rever-se um PDM? Em teoria até podia. Desde que não fosse sempre e sistematicamente para cortar no essencial. É que os munícipes também têm direitos adquiridos. De ver o sol desimpedido de prédios de vez em quando, por exemplo.
Quando o debate público em Portugal se reduz ao «passou bem ou não passou bem» o resultado é este. Portugal teve há umas décadas atrás o seu Presidente-Rei. Lisboa tem agora o seu Presidente-Engenheiro. Aos monárquicos caiu mal tal colagem e acabaram por se revoltar contra a jovem república. Aos engenheiros a quem esta a colagem caia mal, só se pede um coisa: revoltem-se também!
A resposta parece ser que o Presidente-Engenheiro preside ao desaparecimento do pouco que tinha escapado (as zonas mais impróprias para construções como os leitos de cheia, os escassos espaços onde ainda podia crescer algum verde) do desastre urbanístico que é a Lisboa pós-moderna. Lisboa sobrevive – e mal, por que muito do antigo está a precisar de manutenção – graças a séculos passados de improvisação sensata e planeamento razoável (desde o Bairro Alto de D. Manuel até à Baixa Pombalina, passando pelo Passeio Público do século XIX, e pelas Avenidas Novas e os Olivais do Salazarismo). O pouco que sobra para podermos fazer alguma coisa de decente no futuro está em vias de desaparecer numa voragem de betão armado tão devotamente projectada pelo Presidente-Engenheiro.
Restam-nos poucas esperança contra o desenvolvimentismo soviético que ainda vai sobrevivendo na China, na Madeira e em Lisboa. A maior são os movimentos cívicos de protesto (esse novos dissidentes) organizados pelos moradores. Mas é de exigir como refere o artigo citado que o Ministério do Ambiente serva a sua função mais elementar e obrigue a Câmara de Lisboa a cumprir minimamente o seu próprio PDM no que este tem de mais importante: salvaguardar minimamente o espaço público e a qualidade de vida que dele depende. Pode rever-se um PDM? Em teoria até podia. Desde que não fosse sempre e sistematicamente para cortar no essencial. É que os munícipes também têm direitos adquiridos. De ver o sol desimpedido de prédios de vez em quando, por exemplo.
Quando o debate público em Portugal se reduz ao «passou bem ou não passou bem» o resultado é este. Portugal teve há umas décadas atrás o seu Presidente-Rei. Lisboa tem agora o seu Presidente-Engenheiro. Aos monárquicos caiu mal tal colagem e acabaram por se revoltar contra a jovem república. Aos engenheiros a quem esta a colagem caia mal, só se pede um coisa: revoltem-se também!
domingo, outubro 22, 2006
Regresso ao Futuro
Por estes dias, há cento e cinquenta anos atrás, ultimava-se uma obra polémica, longa e publicamente discutida. Até ao aniversário da inauguração do primeiro troço de caminho-de-ferro português, aqui ficarão algumas reflexões, citações e links acerca da via que abriu o país à modernidade. Para começar, recomendamos uma visita ao site de Dario Silva. Tanto ou mais recomendável é, claro, a visita a qualquer umas das áreas museológicas da CP. Todas elas têm este ano, em celebração da data, entrada livre.
[Aguarela: A. Roque Gameiro, em Wikimedia Commons]
O Blogue do NÃO
O nosso – se me é permitido – Luís Aguiar Santos está no “Blogue do Não”. O blogue e o Luís, além de estarem muito bem na sua posição, contam com toda a minha simpatia. E não apenas porque eu também votarei não à liberalização do aborto. Aquilo que estará em causa no referendo vai muito para além do sim ou não ao aborto livre.
Ventos de Espanha
De Espanha vêm bons casamentos, mas também sondagens idiotas. Como a que hoje é divulgada em «O Público» e atribui a 45, 7 por cento dos espanhóis a vontade de uma união com Portugal. O novo Estado devia chamar-se Espanha, segundo 43,2 por cento dos inquiridos. Ascendem aos 80 por cento os defensores de que a capital da grande Espanha devia ser Madrid. A sondagem, publicada pela revista espanhola Tiempo, ganhava em legibilidade se tivessem feito aos mesmos inquiridos outro tipo de perguntas: por exemplo, se seriam favoráveis a uma união com França, se o novo Estado se deveria chamar França e a sua capital ser Paris. Já agora, como é que encarariam uma resistência armada de portugueses a uma união com Espanha e de espanhóis a uma união com França.
É afirmado, na notícia, que a sondagem se baseou em 588 entrevistas, mas não se indica onde é que se encontravam os entrevistados. Fica a suspeita de que bascos, galegos e catalães contribuíram pouco ou nada para estes números. José Saramago, num depoimento a favor da união, declara: «Não creio que Madrid quisesse reduzir-nos a uma colónia». E o que fariam os portugueses que não quisessem ser espanhóis? Eis o tema para uma ficção. Talvez alguns continentais fugissem para a Madeira ou para os Açores e proclamassem a independência. Passadas algumas décadas, em plena crise de desintegração ibérica, outros intelectuais e políticos encontrariam uma saída para os nossos bloqueios: romper com Espanha e formar uma confederação das Repúblicas de Portugal, Madeira e Açores. Nada como um bom golpe geo-estratégico para fintar o destino.
Eu não levo a mal os espanhóis por uma sondagem tão irritante. Não é impunemente que se vive num país onde um fã dos Pink Floyd pode não saber o que é «The Wall», mesmo perdendo horas a ouvir «El Muro». Aprendi a encará-los com indulgência na Expo-98. Quando procuravam saber informações, as perguntas mais repetidas é se tinham de pagar em escudos ou em pesetas e se os horários anunciados diziam respeito à hora de Portugal ou de Espanha. Um espanhol que tivesse um só dia para visitar a Expo era capaz de passá-lo na fila para o pavilhão do seu país e depois ir comer uma paella. Um casal jovem perguntou a uma amiga minha, que trabalhava na Expo, como assistente de pavilhão, onde é que podia encontrar um restaurante espanhol. Ela respondeu: «mas vocês estão numa exposição internacional, num país estrangeiro, por que é que não aproveitam para experimentar uma comida diferente?». A espanhola olhou para o acompanhante e exclamou: «boa ideia». A falta de imaginação é um vício. É por vício, não por apetite, gulodice ou ganância, que os espanhóis querem absorver Portugal.
Os primeiros “roncos” e as ladainhas.
Ontem na Rádio Renascença, em “Com Sal e Pimenta”, Manuel de Lucena, recordando e citando a expressão usada por um chefe de polícia em Cabo Verde, nas vésperas da independência, para caracterizar um ambiente de mal-estar político e social ainda não demasiado evidente, dizia que em Portugal se começam a “ouvir os primeiros ‘roncos’”. Isto a propósito das manifestações e outros sinais de desagrado em relação à governação e – no mínimo – à inconsequência de muitas das suas políticas. Ou seja, começa a haver um cada vez maior descontentamento – afinal a paciência tem limites – pelo facto dos sacrifícios exigidos às classes médias não estarem a produzir resultados evidentes. Veremos então para onde vai evoluir o "ronco". Adenda: Estou agora a ouvir na TSF um excerto do discurso de ontem de Sócrates em Mangualde. Falava a militantes do PS. Muito sinceramente era igualzinho às ladainhas do Bruno aqui no Amigo do Povo.
sábado, outubro 21, 2006
Mais uma promessa por cumprir!
Quando é que chega o mau tempo? A chuva intensa e o vento forte. Será que nem esta promessa o Governo é capaz de cumprir?
Post 600!
Bruno, se achas que foram felizes as declarações de Jorge Pedreira, estás no teu direito. De qualquer modo, quero recordar-te que Jorge Pedreira foi um lúcido dirigente do ainda vivo Sindicato dos Professores do Ensino Superior, sendo que na altura usava linguagem exactamente idêntica àquela que tu Bruno, agora e sempre, não gostas de ver na boca da generalidade dos dirigentes sindicais. Recordo igualmente que quando Durão Barroso assumiu a chefia do governo, Jorge Pedreira andou a percorrer várias capelinhas oferecendo-se insistentemente para dirigir a Biblioteca Nacional – a coisa transpirou para os jornais e Eduardo Prado Coelho fez-se o mais militante dos seus apoiantes nas colunas do Público. Meses antes Jorge Pedreira fora secretário de estado da Educação no último e saudoso governo de António Guterres. Estamos por isso esclarecidos quanto ao carácter da personagem e às suas excepcionais qualidades políticas.
Quanto à tua tese de que ou bem que temos Sócrates e este governo ou o caos, devo dizer-te que a acho absolutamente original. Aliás, a bondade deste governo está patente em tudo, mas em particular na sua (in)capacidade para travar a despesa pública em termos absolutos e na total (in)disponibilidade revelada para pôr fim ao aumento de impostos. A natureza do estado português está realmente cada vez mais irreconhecível. Vamos ver onde é que a coisa pára. Porque vai parar. Resta saber como e quando.
Quanto à tua tese de que ou bem que temos Sócrates e este governo ou o caos, devo dizer-te que a acho absolutamente original. Aliás, a bondade deste governo está patente em tudo, mas em particular na sua (in)capacidade para travar a despesa pública em termos absolutos e na total (in)disponibilidade revelada para pôr fim ao aumento de impostos. A natureza do estado português está realmente cada vez mais irreconhecível. Vamos ver onde é que a coisa pára. Porque vai parar. Resta saber como e quando.
P.S.: Quis o acaso que este fosse o post 600 do amigo do povo. Quem diria?
País das Maravilhas: a manif que nunca existiu
Politicamente essa manifestação e esses grevistas não existem. É normal não gostar de reformas dolorosas. Mas exactamente para onde é que vão estes descontentes (e para onde querem levar o país)? Qual é a alternativa deles? Em termos de programa não têm. São contra todas as reformas por todas as razões e mais algumas. Em termos de política ainda menos. Vão votar em quem numas eventuais legislativas antecipadas? (Isto, partindo do princípio de que agora somos todos sociais-democratas, e portanto não estão a pensar tomar o poder pela força e proclamar uma Comuna ou Soviete de Lisboa.) Vão votar no PSD ou no CDS? Esses parece que acham que as reformas do governo ainda são poucas. (Embora, quiçá um pouco contraditoriamente, lá vão dizendo que sempre podiam ser feitas com mais jeitinho). Claro que há uma alternativa perfeitamente lógica: votarem no BE ou no PCP, esses partidos milagreiros que prometem reconciliar o ataque ao grande capital, crescimento económico, mais emprego, boas reformas (as dos velhinhos) e subida da despesa pública. Só há dois pequenos problemas: muitos desses manifestantes e grevistas já votarão nesses dois partidos «protestantes», e alguém (a começar pelos próprios) acredita seriamente na viabilidade de um governo PCP-BE?
Há coisas a melhorar nas reformas do Estado pelo PS? Claro. Estranho seria que acertassem em tudo à primeira, ou que fossem os primeiros governantes infalíveis. Mas o governo tem um mandato político claro para fazer essas reformas. Têm de se fazer reformas no funcionamento do Estado? Se não agora, depois de anos a atirar dinheiro para a educação, a saúde, a justiça, quando? Seria bom contar com os muitos professores, juízes, médicos competentes e trabalhadores capazes de fazer uma crítica constructiva às reformas? Seria excelente. Mas infelizmente parece que eles não existem. Se existem não se ouvem. Só se ouvem os apocalípticos do costume. E é mau: para o governo, para os sindicatos, para as ditas classes, e para o país. Mas é assim.
Pode ser que politicamente seja bom para o PS - para captar os que silencionsamente dentro do Estado trabalham bem e querem mudanças - valorizar esses professores, médicos, juízes reformistas. Mas até agora são um interlocutor em boa parte (se não totalmente) virtual. Serão uma maioria ou uma minoria, mas silenciosa, lá isso são de certeza.
ADENDA - Veja-se o que a respeito escreve António Dornelas no Canhoto.
PS - Realmente, Fernando, a linguagem de certos secretários de Estado! Aliás os sindicatos até têm particular autoridade para se queixar, os seus protestos sempre se caracterizaram em Portugal pela elevação verbal.
PPS- Já agora, talvez alguém pudesse explicar ao Jacinto Lucas Pires que "friendly fire" ou "fogo amigo" é uma ironia sangrenta, é uma coisa má, não é uma coisa boa e que se deva aceitar.
sexta-feira, outubro 20, 2006
Lovely
Quando fiz dez anos alguém me deu um caderninho Lovely, daqueles da Flomo. Sem grandes dilemas, transformei-o no meu primeiro livro secreto. Quer isto dizer que o atei com duas voltas de elástico cor-de-rosa. Está titulado O Meu Diário, mas à segunda entrada lê-se: "Diário, não te posso escrever todos os dias, quando me vem a inspiração escrevo. " Numa existência repartida entre a escola, a sirumba, a catequese e o Roque Santeiro, volta que não volta, arengava coisas assim, numa caligrafia solavancada:
[E é que nem pensar em corromper o fraseado original. Ne varietur forever.]
[E é que nem pensar em corromper o fraseado original. Ne varietur forever.]
"Data: 21/10/87 Tempo: Frio
Querido Diário hoje fiz uma má descoberta.
Descobri que tenho poucos amigos, mais amigos que amigas. Amigas tenho: Dora, Bárbara, Gisela, Elisabete e amigos tenho:
Lá na escola, não, todos me acham má, mandona. Talvez seja, mas, daqui a uns meses talvez seja diferente.
Adeus!
Ainda continuando fui há catequese, gostei e por acaso numa coisa que ele disse eu pensei na série "Pecados" que não me sai da cabeça.Registro isto aqui para não me esquecer. Um ídolo novo
Fábio Jr.
P.S Gosto muito de ti porque às vezes gosto de desabafar!
Adeus!
Cláudia"
Cláudia"
E era assim a vida, cheia de erros simples.
[Foto: Flomo, School Supplies - Laser Series]
O cão de fila, o conflito e a democracia.
Jorge Pedreira, secretário de Estado da Sra. Ministra da Educação e cão de fila de José Sócrates, e também por isso tão ou mais socrático do que o próprio Sócrates, ameaçou a “plataforma” de sindicatos dos professores em termos que não me lembro de ter visto, lido ou ouvido na nossa democracia portuguesa já a caminho da meia-idade. Mas para além da ameaça, e muito mais do que ameaça, incomoda-me o facto de neste Governo, de esquerda, moderno e socialista, não se ter ainda percebido que o “conflito” é vital para a democracia e que sem ele não há democracia.
quinta-feira, outubro 19, 2006
País das Maravilhas em Estado de Choque
O choque orçamental, bem mais do que o choque tecnológico domina o País das Maravilhas. Obrigando aqueles com responsabilidades a fazer acordos realistas como o que foi assinado recentemente sobre a Segurança Social. Mas felizmente temos a CGTP, o BE, o PC, sem esquecer o PSD para garantir que ainda faz sentido manter esta rubricazinha, e que sofrem os sintomas de desorientação típicos de quem está em estado de choque.
O PSD parece estar a sofrer de um choque reformista. Depois de décadas em que deixou andar ou activamente promoveu o despesismo. Depois de nos ter dado o pior primeiro-ministro das última décadas (pelo menos). Agora deu-lhe para achar que o governo mais reformista das últimas décadas (pelo menos) está a reformar pouco. E (vai daí) resolveu traduzir as piores ideias estrangeiras sobre a suposta apocalipse da Segurança Social. O problema (excepto no País das Maravilhas) é que privatizar a Segurança Social é o mesmo que cometer suicídio por receio da morte. Troca-se eventuais deficit futuros por um gigantesco e absolutamente incomportável deficit no presente – o de toda a gente que deixa de contribuir para poder investir no privado. Isto torna o sistema mais seguro e sustentável? (As duas preocupações fundamentais das pessoas reais a respeito da sua reforma) A resposta é não. Porque se a economia continuar a ter problemas as poupanças e os investimentos e as reformas dos portugueses, seja no sistema público ou privado, sofrerão à mesma. E porque o Estado troca a possibilidade de deficits minimamente calculáveis e que se poderão prevenir com medidas correctivas como as que o governo veio agora colocar em vigor, por outros completamente incalculáveis. Pois alguém acredita que se fundos de pensões privados deram o berro, o Estado vai deixar os pensionistas na miséria? (Mas, claro, no País das Maravilhas do Capitalismo as pessoas todas o que querem é investir e o Estado não deixa, além de que todo o investimento será recompensado!)
A reacção da CGTP, BE e PCP a tudo isto é a de quem está tão chocado que nem se dá ao trabalho mínimo de mudar a cassete. São hoje, orgulhosamente, o verdadeiro movimento conservador em Portugal. (Algo perfeitamente natural quando se pensa na sigla CDU). Parece que o governo favorece o grande capital e tal, e prejudica o trabalhadores e tal, é tudo igual PS e PSD. (Como? Quais as alternativas? O deficit orçamental é uma conspiração capitalista? Isto perguntaria eu se não tivesse no País das Maravilhas.)
Curiosamente, Pedro Adão e Silva achou ser a altura adequada para vir defender o papel importante dos sindicatos modernos (Estou inteiramente de acordo. Mas onde é que eles andam no País das Maravilhas? Não me digam que é na CGTP e afiliados!? E, sobretudo, não me digam que também cabe ao governo fazer essa reforma!?!)
O PSD parece estar a sofrer de um choque reformista. Depois de décadas em que deixou andar ou activamente promoveu o despesismo. Depois de nos ter dado o pior primeiro-ministro das última décadas (pelo menos). Agora deu-lhe para achar que o governo mais reformista das últimas décadas (pelo menos) está a reformar pouco. E (vai daí) resolveu traduzir as piores ideias estrangeiras sobre a suposta apocalipse da Segurança Social. O problema (excepto no País das Maravilhas) é que privatizar a Segurança Social é o mesmo que cometer suicídio por receio da morte. Troca-se eventuais deficit futuros por um gigantesco e absolutamente incomportável deficit no presente – o de toda a gente que deixa de contribuir para poder investir no privado. Isto torna o sistema mais seguro e sustentável? (As duas preocupações fundamentais das pessoas reais a respeito da sua reforma) A resposta é não. Porque se a economia continuar a ter problemas as poupanças e os investimentos e as reformas dos portugueses, seja no sistema público ou privado, sofrerão à mesma. E porque o Estado troca a possibilidade de deficits minimamente calculáveis e que se poderão prevenir com medidas correctivas como as que o governo veio agora colocar em vigor, por outros completamente incalculáveis. Pois alguém acredita que se fundos de pensões privados deram o berro, o Estado vai deixar os pensionistas na miséria? (Mas, claro, no País das Maravilhas do Capitalismo as pessoas todas o que querem é investir e o Estado não deixa, além de que todo o investimento será recompensado!)
A reacção da CGTP, BE e PCP a tudo isto é a de quem está tão chocado que nem se dá ao trabalho mínimo de mudar a cassete. São hoje, orgulhosamente, o verdadeiro movimento conservador em Portugal. (Algo perfeitamente natural quando se pensa na sigla CDU). Parece que o governo favorece o grande capital e tal, e prejudica o trabalhadores e tal, é tudo igual PS e PSD. (Como? Quais as alternativas? O deficit orçamental é uma conspiração capitalista? Isto perguntaria eu se não tivesse no País das Maravilhas.)
Curiosamente, Pedro Adão e Silva achou ser a altura adequada para vir defender o papel importante dos sindicatos modernos (Estou inteiramente de acordo. Mas onde é que eles andam no País das Maravilhas? Não me digam que é na CGTP e afiliados!? E, sobretudo, não me digam que também cabe ao governo fazer essa reforma!?!)
Quem tinha dúvidas sobre se a extrema-esquerda de serviço no País das Maravilhas algumas vez estaria disposta a dispender algum do seu capital político na defesa de reformas para aumentar a sustentabilidade do Estado Providência e a eficiênciados serviços públicos elas deveriam ter ficado definitivamente esclarecidas. Mas parece que não. (Afinal, estamos no País das Maravilhas!)
PS - É verdade que falta dinheiro no País das Maravilhas, mas em contrapartida abundam os apartes cómicos. Por exemplo, do bloquista que parece que ainda não se deu conta de que há, por um lado, um Ministério da Educação, e há, pelo outro, um Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (com orçamentos diferentes, talvez convenha acrescentar). Ou do deputado do PS que não consegue perceber como é se leva os professores a fazerem um trabalho de qualidade quando só 1/3 [sic] é que podem ser recompensados com a ascensão ao topo da carreira! Uma maravilha!
IMAGEM: Algures num outro País das Maravilhas.
As minhas dúvidas (VIII)
Será a actual confusão do liberalismo com a trapalhada dicotómica "esquerda vs. direita" que leva certos "liberais (de direita)" a não denunciarem, alto e bom som, como iliberal e inconstitucional, a lei "anti-terrorista" agora promulgada pelo presidente George W. Bush?
R.E.M. - Nightswimming [Automatic For The People, '92]
No sábado passado fui ouvir música dos anos oitenta, ao Ateneu. Não foi a bicha, nem a casa cheia, nem os teddy-boys ou os skins que me fizeram sentir deslocada. Foi a vontade de estar ouvir a década seguinte, tantas vezes descoberta naquele estúdio da BBC, por culpa do Jools Holland.
quarta-feira, outubro 18, 2006
As minhas dúvidas (VII)
Não tenho dúvidas de que, aqui no rectângulo, esta é a questão mais importante do nosso tempo; mas como pode andar tanta gente distraída (mesmo aqueles que só a linkam como arma de arremesso e não comentam, não publicitam, não fazem dela a grande questão pública)?
terça-feira, outubro 17, 2006
Revista de Livros: Kissinger e as lições do passado
Um dos mais reputados historiadores norte-americanos, Robert Beisner, acaba de publicar uma biografia do chefe da diplomacia norte-americana aquando da criação do sistema internacional da Guerra Fria: Dean Acheson. A Life in the Cold War.
O New York Times oferece-nos uma recensão deste livro pelo ilustre sucessor de Acheson, o não menos famoso Henry Kissinger. Vale a pena ler este interessante jogo de espelhos. Deixo duas amostras.
O New York Times oferece-nos uma recensão deste livro pelo ilustre sucessor de Acheson, o não menos famoso Henry Kissinger. Vale a pena ler este interessante jogo de espelhos. Deixo duas amostras.
Comicamente Kissinger começa por afirmar que ‘Dean Acheson was perhaps the most vilified secretary of state in modern American history’ sendo ele próprio um possível recipiente deste prémio de vilão preferido da diplomacia norte-americana.
Mas Kissinger termina o seu texto de forma mais séria citando um dos discursos finais de Acheson como um exemplo de que o seu percurso e reflexões oferecem importantes lições para a actualidade:
Americans must reconcile themselves to “limited objectives” and work in congress with others, for an essential part of American power was the “ability to evoke support from others — an ability quite as important as the capacity to compel.”
Americans must reconcile themselves to “limited objectives” and work in congress with others, for an essential part of American power was the “ability to evoke support from others — an ability quite as important as the capacity to compel.”
É bom ler uns realistas a sério de vez em quando.
IMAGEM: www.time.com
As minhas dúvidas (VI)
Pausa do lanche: é impressão minha ou está toda a gente neste blogue à espera que o Fernando volte da Galiza para "explicar"?
segunda-feira, outubro 16, 2006
Depois explico!
Proponho que todas aquelas almas que nao consigam mudar, a fazer ou a nao fazer seja o que for, sejam apoiadas. Dos caloes aos homicidas, dos ladroes de bicicletas aos traficantes de droga, passando, claro está, pelos capitalistas sem escrúpulos. Todos devem ser ajudados. E ai de quem atire a primeira pedra. Se nem tudo é permitido, está mal. A sociedade com que eu sonho e com que todos nós devemos sonhar é a sociedade em que tudo é permitido. Tudo é permitido, excepto aquilo que pretenda permitir que nem tudo é permitido. Perceberam? Nao? Eu depois explico!
Estes problemas
A propósito do Dia Mundial da Saúde Mental, comemorado no passado 10 de Outubro, ouça-se a entrevista (disponível em podcast no site da Rádio Renasncença) concedida por José Miguel Caldas de Almeida, coordenador da Comissão Nacional para a Reestruturação dos Serviços de Saúde Mental. O quadro está, por ora, ainda longe de ser bom. Há a lei, recente (1998) e de bom desenho, mas a qual não se encontra verdadeiramente implementada; há a transição de um antigo sistema de apartamento entre unidades de tratamento de saúde mental e as mais unidades de saúde para a sua integração no sistema nacional, cujo processo está longe de terminado; há a distância a que os núcleos de saúde que prestam esse tipo de serviços especializados ficam da morada dos seus utentes, espalhados por todo o país. O panorama preocupa bastante, sobretudo porque, segundo Caldas de Almeida, são manifestamente insuficientes os dados epidemiológicos recolhidos até à data, relativos à população portuguesa. Para mais, diz, há o estigma social:" Estes problemas, faz-se sempre de conta que não existem." Pois é. Enquanto predominar a ideia de que uma perna partida é um problema de saúde objectivo, e que é óbvia a necessidade de tratamento médico, mas que a depressão, a bulimia ou a esquizofrenia são outra coisa, estaremos - literal e colectivamente - mal. Eu era dos que faziam de conta que não existem, estes problemas. Mudei de ideias.
[Foto: Wikimedia Commons]
domingo, outubro 15, 2006
Grandes Portugueses
Explicitamente inspirado no programa britânico, Greatest Britons, que terminou com a vitória de Sir Winston Churchill, começa hoje o “concurso” da RTP sobre os Grandes Portugueses, o qual levanta várias questões interessantes.
Qual o lugar dos grandes homens da história? Depois de se ter oscilado entre igualmente ridículos tudo ou nada, estamos agora numa via media bem mais sensata entre o papel de estrutura e indivíduos, entre constrangimentos do contexto e opções pessoais. A relevância crescente – em quantidade e qualidade – das biografias mostra isso mesmo.
Mas como é que se define um grande homem (nomeadamente se ele for mulher)? Será pelas qualidades de liderança, pelo heroísmo, pela generosidade, pela importância do seu legado? A questão é tanto mais interessante quanto estas qualidades não são sempre compatíveis, e a valorização de umas ou outras variou com o tempo. A escolha será uma indicação sobre os valores actualmente dominantes na sociedade portuguesa.
Será que há um conjunto particularmente português de qualidades ou legados ao mundo que deva ser especialmente valorizado? Aqui além do velho debate, algo estéril, entre casticistas e estrangeirados, será interessante ver até que ponto se irá valorizar a obra em favor de Portugal ou antes o impacto externo. Se no primeiro caso alguém como D. Afonso Henriques, ou Camões, ou D. Pedro IV ou Fontes Pereira de Melo ou Mário Soares teriam vantagem, no segundo D. Henrique ou Pedro Nunes ou Pessoa ou António Damásio estariam muito melhor posicionados.
A questão talvez mais interessante é saber qual o lugar dos media e do marketing no debate cultural? Aqui há, como de costume, apocalíticos e conformados. Eu situo-me nos optimistas moderados. Claro que não é indiferente a qualidade com que se faz as coisas. Mas parece-me simplista pensar, à partida, que usar novos meios e novas mecanismos de atracção para questões culturais é necessariamente mau. É sobretudo ingénuo, porque a alternativa é acreditar que os grandes debates culturais chegarão "naturalmente" ao grande público. Ou pior adoptar a pose elitista de que não chegarão, mas também não é preciso que cheguem.
Claro que não temos de escolher o maior português. E é evidente que a escolha será sempre contestável. (Embora menos do que se fosse uma votação em lista fechada, o que, ao contrário do que se tem dito, não é o caso: cada um pode escolher quem quiser). Resta ver se as audiências mostrarão que o grande público está interessado em algo mais do que novelas e concursos. Resta saber se o programa conseguirá fazer passar argumentos históricos de forma atraente mas com qualidade.
Qual o lugar dos grandes homens da história? Depois de se ter oscilado entre igualmente ridículos tudo ou nada, estamos agora numa via media bem mais sensata entre o papel de estrutura e indivíduos, entre constrangimentos do contexto e opções pessoais. A relevância crescente – em quantidade e qualidade – das biografias mostra isso mesmo.
Mas como é que se define um grande homem (nomeadamente se ele for mulher)? Será pelas qualidades de liderança, pelo heroísmo, pela generosidade, pela importância do seu legado? A questão é tanto mais interessante quanto estas qualidades não são sempre compatíveis, e a valorização de umas ou outras variou com o tempo. A escolha será uma indicação sobre os valores actualmente dominantes na sociedade portuguesa.
Será que há um conjunto particularmente português de qualidades ou legados ao mundo que deva ser especialmente valorizado? Aqui além do velho debate, algo estéril, entre casticistas e estrangeirados, será interessante ver até que ponto se irá valorizar a obra em favor de Portugal ou antes o impacto externo. Se no primeiro caso alguém como D. Afonso Henriques, ou Camões, ou D. Pedro IV ou Fontes Pereira de Melo ou Mário Soares teriam vantagem, no segundo D. Henrique ou Pedro Nunes ou Pessoa ou António Damásio estariam muito melhor posicionados.
A questão talvez mais interessante é saber qual o lugar dos media e do marketing no debate cultural? Aqui há, como de costume, apocalíticos e conformados. Eu situo-me nos optimistas moderados. Claro que não é indiferente a qualidade com que se faz as coisas. Mas parece-me simplista pensar, à partida, que usar novos meios e novas mecanismos de atracção para questões culturais é necessariamente mau. É sobretudo ingénuo, porque a alternativa é acreditar que os grandes debates culturais chegarão "naturalmente" ao grande público. Ou pior adoptar a pose elitista de que não chegarão, mas também não é preciso que cheguem.
Claro que não temos de escolher o maior português. E é evidente que a escolha será sempre contestável. (Embora menos do que se fosse uma votação em lista fechada, o que, ao contrário do que se tem dito, não é o caso: cada um pode escolher quem quiser). Resta ver se as audiências mostrarão que o grande público está interessado em algo mais do que novelas e concursos. Resta saber se o programa conseguirá fazer passar argumentos históricos de forma atraente mas com qualidade.
sábado, outubro 14, 2006
Almanaque do Povo
Soap opera: Quem me topa lá da outra paragem já adivinhou o que vou dizer: longa vida aos belos e delicados Ach.Brito, Flores de Antanho revisitadas por FJV, n'A Origem das Espécies.
Melancólica: Com isto do fim do Melancómico. Acredito na incansável capacidade de regeneração da blogosfera, o que não me impedirá de sentir falta dos posts do Nuno Costa Santos, como sinto dos do Lutz Brückelmann, do Afonso Bivar.
[Reprodução: BND]
Etiquetas: Almanaque