domingo, outubro 29, 2006

De Comboio

No sábado, recém-chegada da Beira, fiz-me ao sol de Lisboa aproveitando a borla ferroviária do dia. Enquanto seguia, lembrei-me não ter chegado a falar aqui, durante a semana, sobre isto de andar de comboio. Faço-o hoje, cento e cinquenta anos depois de, feita a solene inauguração da linha que ligou a capital do reino ao Carregado, esta ter começado efectivamente a funcionar.
A primeira linha de caminho-de-ferro moderna foi aberta em 1825, no Reino Unido. Passou-se mais de uma década até que a discussão pública sobre a sua implantação em Portugal se fizesse, por via da imprensa, e somente após a criação da Companhia das Obras Públicas, em 1844, se tornou expresso o objectivo de ligar o país a Espanha, e daí ao restante continente. Uma dúzia de atribulados anos mais tarde, iniciou-se o estabelecimento dessa nova rede de vias e veículos de comunicação. Hoje, o comboio é apenas um entre outros meios. Mas é o meu preferido. Depois das primeiras viagens de automóvel com a família, ainda criança, durante as férias frias (expressão em desuso, como em desuso está aquele pequeno Fiat 127), descobri o meu país de comboio. À medida que fui crescendo, com os amigos, mais raramente sozinha, andei no mítico regional (ou seria inter-regional?) das onze e muito da noite, de Santa Apolónia à Campanhã. Aquele que nunca demorava menos de oito horas a lá chegar, e que já saiu da tabela. Viajei no Tomarense, no Comboio dos Torresmos, pela Linha do Sul. Saí em apeadeiros rurais, em estações das linhas suburbanas. Vi magalas de harmónica, senhoras de lenço e cabaz, romances entre duas capitais de distrito, revisores bêbados, miúdos escrevendo diários de inter-rail.
Há umas semanas, a minha empregada salvou a biblioteca de uma outra cliente em mudanças, que num furor de desprendimento a tinha destinado integralmente à reciclagem. Fui chamada a recolher os salvados. Entre eles, estava um livro com quase vinte anos, escrito por um rapaz também nos vintes, onde se pode ler:

"É para esses que este livro é feito em especial. Com eles está em perfeita comunhão o espírito da viagem sentimental do nosso tempo. Não da viagem à Xavier de Maistre, em redor do seu quarto. Não a viagem interior, qualquer que ela seja. Mas a viagem real marcada pelo facto de percorrer uma linha que já possibilitou outras viagens uma geografia, a formação de um espírito do lugar, a construção de uma visão do mundo realizada a partir de uma partilha dos lugares, dos espaços e do tempo."
Julgo que esses sou eu, e todos os que partilham o apego aos carris. O livro salvado chama-se Comboios Portugueses. Um Guia Sentimental [Círculo de Leitores, 1988]. O seu autor, aqui está.

[Gravura: Inauguração da Ferrovia Stockton & Darlington]