sexta-feira, outubro 27, 2006

Grandes Portugueses, Grande Confusão


O debate de há dias sobre os Grandes Portugueses foi esclarecedor na sua falta de esclarecimento e já valeu a minha estada tardia na pátria. Até houve direito a um sketch do Gato Fedorento a partir de Braga. (Apesar de, estranhamente, o Ricardo Araújo Pereira parecer estar em Lisboa a dizer coisas sensatas.)

No ponto essencial, a relação entre história, memória e televisão, Luís Reis Torgal, catedrático de história em Coimbra, foi intransigente. A história, insistia com ar preocupado, é complexa! Portanto, caso do programa vertente, não se pode evidentemente reduzir à vulgar divulgação televisiva. E atirou-se ao bode expiatório de estimação de muitos historiadores profissionais portugueses: José Hermano Saraiva. Realmente. Conclusão, avisem a BBC para fechar as portas! Mandem recado à PBS para deixar de produzir documentários! Será preciso lembrar que a BBC (ou a sua congénere norte-americana) tem uma enorme, e frequentemente excelente, produção de documentários de divulgação histórica? E com registos bem diferentes. Há desde os em tudo semelhantes aos de José Hermano Saraiva (veja-se a Sister Mary Wendy para a história de arte), até outros (como Nazis : A Warning from History de Ian Kershow, ou The Civil War de Ken Burns) que estão entre as análises mais incontornáveis (e complexas) que se fizeram sobre os respectivos temas. Além de tudo o mais, como é que é possível que um historiador da memória achar que uma escolha desta natureza não tem algum interesse?

A resposta veio por via do brilho verbal do velho professor Saraiva: "o professor Reis Torgal não me confunde com a história. Eu retribuo o cumprimento. Não confundo a história com o professor Reis Torgal". Mas veio sobretudo e mais substancialmente pela boca da Lídia Jorge que insistiu que não se tratava neste programa de história mas de mitologia: era um programa lúdico. Mas, no fundo, quer a descontraída Lídia Jorge quer o seríssimo Luís Reis Torgal concordavam que para ser interessante e divertido um programa não pode ser historicamente sério. Até pode ser que os Grande Portugueses não consiga ser as duas coisas, mas isso só depende de como vier a ser feito. Dizer à partida que é impossível fazer divulgação história que seja de qualidade e interessante é que não faz nenhum sentido tendo em conta o que se faz lá fora, o até o que ocasionalmente já se faz cá dentro.

Estranhamente, a mesma Lídia Jorge, e sobretudo a militante Joana Dias, com a ajuda de outros dedicaram-se sistematicamente a exorcizar o fantasma do velho Salazar, com dados da vida deles e com dados objectivos. Mas afinal não era tudo mitologia e brincadeira? Se a história não tem lugar nestes debates lúdicos, então como é que pudemos avaliar os testemunhos bem diferentes de Lídia Jorge e de José Hermano Saraiva, que ambos viveram o Estado Novo, mas evidentemente de forma bem diferente? A solução para o esquecimento dos males do regime por um apelo aos jovens para pedirem aos pais para lhes falarem das suas recordações do regime é, sem mais, um apelo à confusão generalizada.

Neste ponto Reis Torgal insistiu no essencial: à história, enquanto tal, não cabe propagandear heróis ou denunciar vilões, mas criar uma base sólida de análise. Torgal veio ainda desmentir a ideia cómica de que há pouca análise do Estado Novo, quando este é o campo actualmente mais estudado e publicado da história pátria. Falta talvez quem leia, e eventualmente falta até quem saiba escrever e divulgar, mas que o material está aí aos pontapés, está.
A história tem uma importante função cívica numa sociedade democrática precisamente ao desfazer mitos, ao permitir dar aos cidadãos uma referência crítica sobre o passado.
Quanto ao ensino da história, faltará eventualmente tempo para chegar ao Estado Novo, não sei. O que sei é que sistematicamente os programas portugueses eram (são?) demasiado ambiciosos. E se sou a favor da exigência quanto a alunos e professores, ela só faz sentido se for acompanhada de metas realistas. (Quanto à motivação dos alunos ela tem de vir sobretudo de casa, como é evidente, um professor dotado e empenhado ajuda, mas não fará milagres).

Evidentemente que a História de Portugal ensinada a crianças e adolescentes deve referir a natureza ditatorial do Estado Novo e a repressão. Como deve referir, também, se esses temas foram abordados, os exílio forçados e a violência política da Primeira República, o despotismo sangrento do Marquês de Pombal, sem esquecer, claro, os assassínios de D. João II ou o facto dos nossos heróicos marinheiro e soldados das Descobertas frequentemente recorrerem ao massacre e ao terror nos seus encontros de culturas. Quantas crianças e jovens tiveram o prazer ouvir aquela história fascinante de marinheiros indianos decapitados e das suas cabeças disparadas de volta para a cidade de onde provinham para servirem de exemplo? Ou seja, não se deve ignorar no ensino, bem pelo contrário, o lado negro do nosso passado. Embora também não se deva evidentemente ficar apenas por aí, cair na divinização ou na demonização.
A história pode ser cívica sem deixar de ser crítica, pode ser uma científica humana sem deixar de ser lúdica. E os portugueses podem votar em grandes do passado como pessoas adultas, ou seja, cientes de que não heróis sem mácula, nem santos sem pecado.
PS - Quando falo de confusão, não quer dizer que nada se aproveitasse. As intervenções de Évora, ou muito do que disse Mário Bettencourt Resendes, Ricardo A Pereira, Pedro Pinto, Isabel Alçada até me pareceram pertinentes sobre pontos de pormenor. Curiosamente o maior intelectual português do século XX, Eduardo Lourenço, e um dos mais importantes para se perceber Portugal - basta ler o Labirinto da Saudade - não brilhou particularmente. Talvez para o ambiente ou o tema não se prestar, talvez por precisar de tempo para pensar sobre o assunto, ou talvez por ser eu a precisar de mais tempo para digerir o que ele disse.
IMAGEM: Cold Mountain de Brice Marden.

3 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

"A história tem uma importante função cívica numa sociedade democrática precisamente ao desfazer mitos, ao permitir dar aos cidadãos uma referência crítica sobre o passado."

Tenho a curiosa impressão de que, na sociedade democrática norte-americana, a história tem a função exatamente inversa: a de criar mitos e a de evitar aos cidadãos qualquer referência crítica sobre o seu passado.

Pelo menos, a história que transparece para o grande público.

Luís Lavoura

5:39 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

"não heróis sem mácula, nem santos sem pecado"

Sendo isto naturalmente verdade, pode-se escolher heróis quase sem mácula, santos quase sem pecado. Eu teria votado o santo condestável Nun'Álvares Pereira como o maior português de sempre. O povo considerou-o santo e, que se saiba, não teve de facto grande mácula.

Luís Lavoura

5:41 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

E a Casa de Bragança não foi uma venalidade?

11:31 da tarde  

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