domingo, outubro 29, 2006

Filmar a alma

As minhas três incursões no DocLisboa, muito condicionadas pelos horários e uma delas até resultante de um engano, acabaram por uma conduzir a uma única e inesperada questão: como filmar a alma? Vi os seguintes filmes: Our Daily Bread, de Nikolaus Geryhalter; Into Great Silence, de Philip Gröning; e Atman, de Pirjo Honkasalo. O primeiro documentário é uma montagem sem música de imagens de abate e esquartejamento de animais, recolha de alimentos vegetais e até de extracção do sal das minas; o segundo é o primeiro filme sobre a Grande Chartreuse, a casa-mãe da Ordem dos Cartuxos, uma das mais rigorosamente contemplativas, situada nos Alpes franceses; o último conta a história da peregrinação de seis mil quilómetros, ao longo do rio Ganges, de um deficiente indiano. As minhas reacções foram, por ordem sequencial: tédio, aborrecimento, entusiasmo.
Só a posteriori é que faz sentido revisitar na memória «Our Daily Bread» com a questão da alma. Mas quando o faço lembro-me daquele pensamento de Marx de que vivemos num mundo sem alma e de um outro de Feurbach: «o homem é o que come». O tédio que atinge o espectador, começa por ser o do trabalhadores que passam o dia a meter ou a tirar pintos de calhas, a cortar patas a porcos, a serrar vacas ao meio. Mesmo nas horas de pausa para refeição do seu trabalho, comem como preparam a comida dos outros, ou seja, mecanicamente, como se fossem seres híbridos sem alma, meio animais por serem constituídos por matéria orgânica e meio máquinas por cumprirem eficazmente as suas funções.
O filme sobre os Cartuxos é, em bom português, uma seca. Talvez o não fosse se durasse menos de 164 minutos, se o documentário construísse uma narrativa a partir de entrevistas aos diversos monges ou, pelo, menos, encontrasse uma legibilidade na divisão dos dias ou das épocas do ano. Pelo contrário, o realizador, talvez impressionado por o mosteiro ter demorado dezasseis anos a responder ao pedido de fazer um documentário, expõe na película a fuga ao tempo secular e ao mundo que alimenta uma certa espiritualidade monacal. É um filme do eterno retorno de práticas, rituais, palavras proferidas em oração ou projectadas no ecrã. O silêncio é rompido raramente por leituras no refeitório; por ocasionais reuniões no jardim (creio que uma vez por semana, ao domingo) em que os monges discutem se devem ou não lavar as mãos antes das refeições e a importância dos símbolos; por cânticos rituais. Durante alguns minutos, um dos monges mais velhos e cego afirma ter a certeza de que se Deus permitiu que cegasse foi para seu bem. Lamenta o mundo por ter perdido o sentido de Deus. Algumas micro-histórias atravessam como cometas as imagens de gestos repetidos: um monge alfaiate faz um novo fato; um monge negro, recém-chegado, inicia-se no mosteiro; outro monge arranja uma bota; um dia os monges vão passear pela montanha e divertem-se a escorregar pela neve. O essencial, o que dá sentido a tudo o que se vê, só pode estar fora do campo de visão. A mais íntima aproximação ao tema do documentário são os grandes planos dos rostos dos monges, intercalados no filme. Serão talvez uma dúzia e só um ou dois mantêm o olhar firme para a câmara até ao fim. Também só num ou dois é que se nota um brilhozinho nos olhos, um sorriso ténue, mas firme. A maior parte dos rostos são inexpressivos, tipo fotografia de passe.
«Atman» é a palavra em sânscrito para alma e também o título do documentário da filandesa Honkasalo, o último de uma trilogia sobre o sagrado e o demoníaco. Conta a história da peregrinação de Jamana Lal, um hindu de 35 anos, com as costas deformadas e as pernas raquíticas. A mãe morre e é dever de um hindu que, no ano seguinte, faça uma peregrinação para que a alma da defunta possa descansar em paz. Jamana parte num grupo de dezasseis pessoas. Tencionam percorrer seis mil quilómetros ao longo do Ganges até junto da sua fonte, nos Himalaias. Na parte inicial da viagem, Jamana Lal é por vezes transportado às costas pelo irmão. Quando se desloca sozinho, cruza as pernas minguadas no ar e anda equilibrado nas mãos. Apesar do seu fervor religioso, que o leva a mergulhar frequentemente nas águas imundas do Ganges, ficamos a saber que a sua relação com a família era tensa por um episódio contado: um dia o irmão bateu-lhe, dizendo-lhe que insultou um cliente (pertencem a uma casta de artesãos). Ele apanha o comboio e desaparece de casa durante dois meses. Só volta porque lhe dizem que, se não o fizer a mãe morre. Sentado numa carruagem de comboio, chupando o seu cigarrito e olhando a paisagem que desfila, vai confessando os seus pensamentos demoníacos: há dias em que lhe apetece matar ou morrer. À janela de um autocarro, olhando uma cidade cheia de gente como o Ganges de gotas pardas, sonha em como seria bom viver num deserto, em escapar a um mundo de conflitos pessoais.
Jamana Lal tem fé, mas não sorte. O grupo de peregrinos decide voltar para trás. Prossegue então apenas com uma mulher, Shanta. Têm pouco dinheiro, mas decidem comer apenas uma refeição por dia. É então que a realidade suplanta qualquer ficção verosímil: começa uma história de amor entre Jamana Lal e Shanta. O rosto do aleijado ilumina-se. As suas declarações enchem-se de esperança. Acredita que esta pode ser a sua última vida e que a irá partilhar com Shanta. À medida que os peregrinos se aproximam dos Himalaias, a água do Ganges vai-se tornando mais pura. Nenhum espectador acredita no que diz o guru: «não há neste mundo força capaz de tornar o Ganges impuro». Mas quando Jamana Lal mergulha nas piscinas naturais das altas montanhas, pela primeira vez, o ritual surge, aos olhos de um céptico ocidental, como sinónimo de purificação. Os diversos gurus confirmam que o karma de Jamana Lal e Shanta é viverem juntos. Após a peregrinação, ambos casam, segundo ritual hindu. O filme mais exótico pode ser o mais universalista. Os monges cartuxos cantavam que o Espírito Santo é um, mas foram as almas de Jamana Lal e de Shanta que encheram os ecrãns do DocLisboa.