Reflexões sobre o 25 de Abril
O 25 de Abril de 1974 não assinala apenas o fim de uma longa ditadura, mas também a subversão revolucionária de um golpe de Estado e uma reviravolta nas expectativas da oposição política ao Estado Novo. Não é uma consequência inevitável da degenerescência do regime, nem de um golpe minuciosamente programado, nem de uma estratégia cumprida pelos militantes dos partidos clandestinos. Também não é o dia em que em que alguém dá corda a um relógio da revolução, pondo em movimento uma maquinaria que produzirá de forma mecânica todos os acontecimentos subsequentes.
Quando os militares liderados por Salgueiro Maia avançam para Lisboa, a Marinha, ramo das Forças Armadas marcado pela influência do PCP, mantém uma posição de expectativa e o MRPP emite um comunicado denunciando as movimentações em curso como originárias de uma «clique» cujos objectivos se situam no interior do regime. O programa do MFA não prevê o desmantelamento da PIDE. Os insurrectos apelam para que o povo saia da rua e siga os acontecimentos pela rádio e televisão. Mas essa manhã anulou todos os cálculos, abriu os tectos a muitas esperanças e foi invadida pelos acontecimentos. A afluência de gente à rua não só ajudou os operacionais, como poderá ter pesado na reacção dos poucos dispostos a defender o regime e nas decisões de Marcelo Caetano. Só um banho de sangue poderia inverter o curso das movimentações. Caetano, ao insistir em render-se a um General, Spínola, terá esboçado um apelo de último recurso a uma «transição pacífica», isto é pactuada entre elites, neste caso fazendo a passagem de poder entre o Presidente de Conselho e uma alta patente militar. Esta personagem hamletiana chegara ao poder alimentando equívocos e abdicava dele equivocando-se. A ideia de transição não só pacífica como pacificadora, era anterior ao próprio Estado Novo. O 28 de Maio de 1926 fizera-se em nome da necessidade de uma ditadura provisória e regeneradora da república. Salazar deu um carácter permanente à «situação» criada pela ditadura militar. Mas como o novo regime foi o resultado de um compromisso entre diferentes correntes, o sistema possuía uma brecha por onde poderia entrar a democracia: a eleição directa do Presidente da República. Após o terramoto «delgalista», em 1958, esta falha é colmatada, passando o chefe de Estado a ser eleito pela Assembleia Nacional. De 1926 a 1974 falharam todas as hipóteses de «transição pacífica», inclusivé a do próprio dia 25 de Abril. Esse foi o dia em que se deu a ruptura.
O corte deu-se, como já afirmámos, não só com a «situação», mas também com as estratégias oposicionistas. Foi o movimento popular espontâneo e improvisado que impôs aos golpistas o desmantelamento da PIDE, a libertação dos presos políticos e o fim da censura. Todas as convulsões subsequentes, com o perigo de inflexão anti-democrática, não conseguiram rasurar a pulsão libertária inicial. O Luís, neste texto, escreve que «o 25 de Abril não se fez em nome de uma experiência histórica do liberalismo (…) fez-se em nome de uma míriade de socialismos coligados» e que «logo a 1 de Maio, quando a esquerda (melhor dizendo, os comunistas) tomou as ruas, ficou patente quem teria força para imprimir à revolução a direcção e a cor que lhe construiriam a identidade». O meu ponto é que em relação ao 25 de Abril é mesmo legítima a frase existencialista de que «a existência precede a essência». É verdade que, não se reconhecendo no Estado Novo, os liberais têm dificuldade em se identificar com os actores do processo revolucionário. E que a transição democrática portuguesa não encontra paralelismos com periodização da Revolução Francesa. Mas esta foi uma revolução conduzida por liberais que rompeu com o absolutismo. A do 25 de Abril rompeu com uma ditadura autoritária do século XX. Durante a qual se organizaram partidos da oposição socialistas e comunistas, mas não partidos liberais. A crítica do Luís coloca-nos perante um contra-factual: um partido liberal com legitimidade anti-fascista seria excluído do processo revolucionário? Ou até seria um interlocutor à direita preferido a Freitas do Amaral? Não sabemos. O que sabemos é que as liberdades de expressão e de associação foram conquistadas no 25 de Abril. Não foi por falta de causas que não surgiram opositores liberais ao Estado Novo. Nem por terem ideias incompatíveis com o colonialismo e logo com o programa do MFA, pois nos Estados Unidos também existe uma tradição política anti-colonial.
Sendo um acontecimento histórico, a comemoração do 25 de Abril não se reduz à compreensão do passado. Os acontecimentos marcantes libertam-se da História, tornam-se mitos e arquétipos. Reflectem uma imagem da sociedade que fundam e constituem referências para o futuro. Não creio que a concretização das aspirações de liberdade e justiça do 25 de Abril se limite à experiência concreta do período revolucionário. Os cravos não constavam do plano de operações do golpe militar. E no 25 de Abril também havia cravos brancos.