Simpatizo com o apelo à memória de acontecimentos como o massacre dos cristão-novos de Lisboa em 1506. É
importante recordar o bom mas também o mau da nossa história. Neste caso lembrar que a Inquisição Portuguesa não foi algo caido de pára-quedas. Correspondia a um anti-judaísmo entranhado e popular (que a sua criação procurava enquadrar e controlar, como explica Borges Coelho na sua obra). Claro que a real expressão desta hostilidade aos judeus é difícil de avaliar (não havia sondagens...). Mas basta recordar que quando o regente, futuro rei D. Pedro II, o Papa, o jesuíta António Vieira quiseram acabar com a besta, e realmente fecharam as portas do negócio inquisitorial no século XVII, logo houve manifestações populares em Lisboa aos gritos de "morte aos judeus, viva o rei D. Afonso VI!" (Afonso VI tinha sido recentemente deposto pelo seu irmão, o referido D. Pedro). Não demorou a que a Inquisição fosse restabelecida.
Pareceu-me sobretudo bem nesta iniciativa ela vir de fora do Estado. Sobre isto, e
pegando no mote dado por Vital Moreira para se comemorar o transferência do governo português para o Brasil, em 1807, para escapar aos exércitos de Napoleão, diria mesmo mais. O Estado, para mais no aperto actual, só deve ajudar a pagar, se puder: ou divulgação científica de qualidade nas escolas primárias e secundárias (aproveitar as datas para ensinar alguma coisa); ou iniciativas académicas para publicitar e discutir as investigações em curso sobre estes assuntos. O resto: festas, propaganda, romagens, usos ou abusos políticos pode e deve ficar por conta de quem está interessado.
Há ainda um ponto importante. O Estado português tem de pedir desculpas por este massacre? Acho esta moda altamente duvidosa. Excepto quanto diz respeito a acontecimentos relativamente recentes e anteriormente negados oficialmente. (Por exemplo o massacre dos arménios na Turquia). O que é a culpa colectiva? Se as penas não prescrevem onde é que se pára? Será que teremos direito de exigir dos Italianos desculpas pelos massacres das legiões romanas? Será que a Argélia nos deve desculpas (e reparações?) pela captura de escravos em navios portugueses?
O progrom de Lisboa em 1506 é, a este respeito, um caso até mais claro do que o costume. O Estado português na altura, e na pessoa do rei D. Manuel I [que podem admirar no quadro à direita, vestido de vermelho, num dos seus casamentos], teve um comportamento exemplar na repressão dos culpados. (Até um bocadinho excessivo para os gostos de hoje). O que valeu ao monarca o cognome, entre a populaça lisboeta, de «Rei dos Judeus». Seria escassa redenção pela conversão a que forçou os judeus para os reter em Portugal, ao mesmo tempo que agradava aos seus sogros, os reis de Espanha, Fernando e Isabel, decretando o fim do judaísmo em terras lusas. Mas o que não se pode dizer é que o Estado tenha sido cúmplice daqueles dias sangrentos.
17 Comments:
ora até que enfim que leio um comentário que vai ao encontro do que eu penso!
exactmente: não há hiato de dívida por saldar;
não há necessidade de homenagens oficiosas ou retrações nacionais.
O resto é com quem convoca e aí também ninguém tem de se achar no direito de alterar a dita homenagem ao seu gosto.
Tem piada que venha aqui ter em virtude da Cláudia ter medo do meu tom
:)
Só acrescento um outro facto histórico- esse sim, nitidamente judaico na sua formulação e com prolongamento actual- os judeus refugiados durante a guerra que foram acolhidos em Portugal e integrados em muitas famílias portugesas. Bastava este facto para ser totalmente disparatado dizer-se que sem esta homenagem estávamos no vazio da culpa por saldar.
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(estava tudo cheio de gralhas)
aproveito para dizer que me desagradou o tom do FJV ao chamar imbecis e outras coisas sem indicar quem e ainda mais no tom definitivo com que aparece agora, à última da hora, e a meter a notinha da "matança pascal". O que as fontes mais próximas referem é um Domingo de Pascoela- ou seja, uma semana depois da Páscoa. Por muitos paralelos transversais que tenham havido, esta denominação não me parece ingénua e muito menos neutra, na ideia que fez passar de mera manifestação de pesar pelos mortos.
uma outra nota ainda:
a existência de um anti-judaísmo entranhado na população, é uma conclusão um tanto abusiva e não conheço historiadores que tenham apresentado factos que a sustentem.
Se te referes aos estudos da Ferro Tavares há que ter cuidado porque grande parte são extrapolações sem apoio documental.
É óbvio que tinha de haver tensões mas o tipo de tensões existentes não tem paralelo com tensões actuais. Ou melhor, não existiam "coexistências" em pé de igualdade, baseadas em reconhecimentos de "dignidades do ser humano" ou outras perfeitamente modernas.
Existiam coexistências com choques de toda a ordem entre todos os membros em inúmeras divisões.
Por outro lado os judeus não eram apenas um grupo social com uma característica que possa ter paralelo com uma comunidade judaica dos nossos dias. Havia uma prática de ofensa e blasfémia paralela aos seus cultos. Esta prática inseria-se nos gethos ou margens citadinas a par dos "cagots" mais diversos. Estes não são os judeus de corte, nem os judeus agiotas ou literatos das diatribes na Sé. São o "judeu do bode da Barca do Infenro do Gil Vicente: o "mija nos finados na Igreja de S. Gião". E é preciso conhecer estas práticas para se entender onde radicava muito do antagonismo. O próprio exemplo do acontecimento dá para entender parte. O judeu não teme "desmascarar" um suposto milagre dentro de uma igreja cheia de fiéis em tempo de temor e fomes. Pelo contrário- afronta-a temerariamente. De forma quase suicida, dir-se-ia hoje, tendo em conta os dados do clima religioso da época.
e muito mais haveria a dizer em relação às próprias ligações com a coroa e possibilidades de se fazer ouvir.
As coisas são muito mais complexas se as queremos entender historicamente.
É óbvio que para se chorar uma mortande não é preciso mais nada para além da existência das vítimas.
Cara Zazie
Entranhado no sentido de que a Inquisição e a sua rede de «familiares», ou as turbas de 1507 eram de facto devotados perseguidores. Mas eu qualifico isso dizendo que desconhecemos a verdadeira extensão deste sentimento. Até porque era perigoso ser filo-judaico. Ainda assim poucos mas bons arriscaram-se a isso, dos quais o mais importante é o citado António Vieira. Mas mesmo os reis D.João IV ou D.Pedro II poderiam ser possivelmente incluídos. Mas se eles não acabaram definitivamente com a Inquisição era porque temiam reacções...
Ou seja, no fundo concordo consigo que há que ter cuidado com extrapolações, para um e outro lado. Nem eram todos fanáticos. Nem a Inquisição foi uma coisa de ETs sem importância na sociedade portuguesa e sem apoio.
Por fim, não concordo que se possa dizer que os judeus tinham práticas que justificavam os preconceitos. Quando muito que o seu estatuto marginal na sociedade os empurrava para sobreviverem para práticas que eram mal-vistas (mas necessárias: veja-se o empréstimo a juros).
calma aí, Bruno, calma aí. Eu não disse que os judeus tinham práticas que justificavam qualquer coisa. E a palavra preconceito nem se aplica à época.
Tinham práticas de achincalhamento da religião católica. Isso é mais que sabido, como ainda têm e tiveram em Israel depois do Holocausto. Sobre isso há documentação. Não acho sequer muito útil levantarem-se agora essas questões.
O que é bom que se entenda é que "preconceito" é palavra e questão que está fora no espírito da época.
As religiões sempre foram opostas. Está na sua própria génese. E nada desculpa ou serve de atenuante em termos morais dessa loucura. Se servisse agora, tinha servido na época e não foi isso que aconteceu. Não teria sido o próprio rei a mandar enforcar os culpados.
Se quer saber mais sobre o assunto não é aqui na blogosfera que se consegue. Por isso é que disse para se ter cuidado em não fazer extrapolações dizendo que este facto é sintomático do tipo de relações entre cristãos e judeus na Idade Média.
Se o fosse teria havido notícia de muitos mais motins e chacinas (como aliás existiram por todo o lado e ainda mais em tempo de peste). Não é e nem a Inquisição pode ser explicada como produto desse "preconceito" ou mal estar. Há uma série de documentação que demonstra a convivência pacífica em termos populares e ainda mais no que toca às relações com a corte. Eram as próprias cidades, por exemplo, que pagavam fatos e adornos às mouras mais bonitas para participarem em danças e festas citadinas.
Sobre isso tudo é sempre bom ler a Iria Gonçalves ou a Ana Maria Alves.
O estatuto também não era todo marginal. Não se pode falar numa "comunidade" judaica marginalizada quando essa comunidade tem direitos e poderes inclusive para escrever ao rei e se queixar por qualquer privilégio retirado, tal como se fosse um outro habitante. E sobre isso também existem documentos.
Por todas estas razões é que me parece que nunca é totalmente neutra uma cerimónia que, quer se queira ou não queira, vem tocar em vítimas e em algozes.
O que não invalida que se faça ou que eu queira com isto dizer que estou contra homenagear vítimas.
Apenas sou contra a transformação de questões tão antigas, acerca das quais muito pouco se sabe, em doutrinações oficiosas para todo o povo português.
E foi acerca disto que houve debate que me levou a entrar em antagonismos com alguns bloggers.
Por outro lado o empréstimo a juros também faz parte de práticas de outro tipo de judeus que não os que eu estava a caracterizar.
e por fim, no que toca à Inquisição e denúncias a história também mostra que em Espanha até foram judeus conversos a pedi-la e em todo o lado estes mesmos perseguiram fortemente os "falsos conversos" de forma a se destacarem deles e manterem uma sobrevivência junto dos poderes.
Por último deixo aqui uma pergunta: estava a par do acolhimento de judeus no tempo da Guerra e das famílias que os receberam e incluíram em laços de parentesco?
em Israel depois do Holocausto é uma frase incorrecta. Depois do Holocausto e a partir da criação do Estado de Israel.
De qualquer forma tudo isto está completamente fora da tradição mais recente em Portugal e não faz sentido querer-se dizer que existem preconceitos ou antagonismos sociais entre judeus e não judeus cá em Portugal.
Isto é que é total fantasia que pode ser bastante cretina quando se traduz no policiamento de supostos "estados de espírito" das pessoas ou "pensamentos incorrectos" que, como eles (os polícias do politicamente correcto) tendem a dizer, é necessário combater.
correcção: às mouras não, às judias. As danças chamavam-se mouriscas mas, por acaso, a maior parte dos documentos refere judias e judeus em bailes e festas promovidos pela corte ou pelas cidades.
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Nem eram todos fanáticos
- se calhar eram, para os nossos padrões presentes. Aqui está mais um termo que não se aplica.
Eram todos fortemente religiosos e todos fortemente ignorantes perante a peste, por exemplo. Não se sabia de onde vinha. Qualquer explicação por antagonismo era aceite. Dizia-se que os judeus envenenavam os poços, por exemplo. Há toda uma série de documentos e imagens a representarem-nos assim. Há peste, há busca de culpados, não há chamamento do médico para receitar o antibiótico, etc., etc.. É claro que depois existe proselitismo religioso e esse sim, acompanhado de literatura condenatória. Esse pode explicar o comportamento desses dominicanos. E parte do de alguma população. Mas mesmo aí é exagerado depreender-se que a população estava doutrinada contra judeus à custa de textos que apenas tinham divulgação entre elites.
A ideia de histerismo em momento de pestes, a par do próprio momento religioso tem tido mais acolhimento para se contextualizar o facto.
Nem a Inquisição foi uma coisa de ETs sem importância na sociedade portuguesa e sem apoio
-A Inquisição religiosa era antiga, a ligação ao Poder é que é moderna. Neste caso veio por casamento do monarca. Nunca precisaria de ir a votos.
Para as denúncias também não precisaria de ir a votos. Denúncias houve-as de toda a espécie e pelos motivos mais mesquinhos, bem para além de necessidade de justificações de "preconceitos".
Nesse caso então ainda tínhamos a caça às bruxas e bruxos que também é fenómeno que não tem uma explicação única. E que, por acaso ou nem tanto assim, teve mais intensidade em países menos católicos. Não há notícia em Espanha nem em Portugal. E tanto entraram na perseguição os religiosos como o povo em geral, como os senhores feudais.
resumindo:
a primeira noção que necessitava de não se extrapolada é a própria noção de convívio pacífico.
Aí está tudo. Se entendemos convívio pacífico como vivência racional com direitos iguais e respeitos mútuos baseadas em qualquer noção de "Homem universal", então estamos a fazer ficção em vez de contextualização histórica.
Se entemos por vivências religiosas qualquer ideia que tenha comparação com os nossos dias aqui na Europa mais perto, também estamos a fazer ficção em vez de contextualização histórica.
E se imaginarmos que fora das religiões apenas existiam os "não crentes" e que estes é que eram heréticos também estamos a fazer ficção.
quanto ao acabar com a Inquisição espero que também não vá atrás daquela "peregrina ideia" que foi o Marquês que nos livrou dela por ter horror a autos de fé. É que foi mesmo ele quem mais se aproveitou da Inquisição para lá atirar os religiosos que o incomodavam.
Cara Zazie
Obrigado pelos comentários, é sempre bom ter feedback desta qualidade.
Ainda bem que me diz que não achava que comportamentos justificavam preconceitos. Achei que provavelmente não pensava isso, mas também me pareceu ambígua a sua primeira formulação, e quis esclarece qual era a minha posição.
Quanto ao resto concordo com o essencial. E destaco: se calhar eram todos fanáticos de acordo com os nossos critérios de hoje. É verdade. E é verdade até muito tarde. Basta ver como é que as diferentes religiões se tratavam umas às outras ainda na década de vinte do século que passou (como eu fiz para um trabalho sobre Fátima) e vê-se que o ecumenismo ou sequer um mínimo de respeito mútuo demorou muito a frutificar.
Mas ainda sim se pode dizer que nem todos eram fanáticos de acordo com os critérios da altura. Alguns defendiam regimes de tolerância (como António Vieira no século XVII, ou D.Luís da Cunha, que muito influenciou Pombal, no século XVIII). Mas realmente até ao século XX em praticamente todo o lado, e não apenas Portugal, o que estava em jogo era perseguição ou tolerância e não verdadeira liberdade ou igualdade de crenças.
É por isso que os judeus em Portugal tinham um estatuto marginal - embora sendo uma comunidade organizada com alguns direitos. O seu estatuto era explicitamente inferior ao da maioria cristã.
Claro que havia judeus muito ricos e influentes, bem mais "privilegiados" do que muitos cristãos pobres. Mas esses judeus cortesãos eram ainda assim limitados, por exemplo, nos cargos que podiam exercer por um estatuto juridicamente inferior ao dos cristãos com igual riqueza e acesso comparável ao rei.
Quanto à Inquisição Portuguesa ser muito antiga, suponho que se esteja a referir à inquisição episcopal ou papal. Mas essa era feita de uma forma ad hoc e tinha um impacto muito reduzido ou nulo em Portugal. Na verdade até ao estabelecimento da Inquisição Portuguesa como um tribunal central por D.João III (face a grandes resistências dos bispos e do papa) nada existia de comparável e as alterações que resultaram da sua entrada em acção foram muito substanciais.
É verdade que o Marquês não era um homem muito tolerante. Mas ainda assim, o fim da perseguição aos cristão-novos foi um grande progresso.
Sobre os judeus e a Segunda Guerra
de facto sabia alguma coisa, escrevi até um pequeno texto sobre o cônsul Aristides de Sousa Mendes, mas é realmente algo pouco conhecido.
E concordo com os perigos de fazer catequese pelo Estado. O estado deve sobretudo apoiar divulgação científica séria. Mas fica uma dúvida: pode o Estado fazer pedagogia democrática com casos como estes? Admito que haja quem ache que sim, mas há o risco de todos pagarmos o propagandear de dogmas de fraca consistência histórica. Por isso acho realmente que a pedagogia democrática deve caber de preferência a iniciativas da sociedade civil.
Creio que estamos de acordo no essencial.
Começa a tornar-se curiosa uma certa inversão dos papeis sociais no que toca à espiritualidade. No passado coube ao laicismo ou descrentes a capacidade de sensibilizar o aspecto humano que existe em comum. Hoje em dia, por vezes (refiro-me entre nós) parece que os que têm uma qualquer religiosidade (no meu caso é mínima, nem deve chegar a fé) conseguem respeitar melhor a dos outros.
Posso estar enganada mas a tónica nas ideologias está sempre mais interessada em “combater” ou desmistificar” ou deixar uma qualquer marca de exemplo traçado a régua e esquadro e sempre de carácter universal, que o mais fácil e daí surgirem conflitos. Não me ocorre alguma homenagem ou vigília, já para não falar em manifestação que seja "por", tem de ser sempre reactiva, contra qualquer coisa. E como existem tantas coisas para sermos contra o que acontece é arranjarem-se mais pretextos para contendas.
Por razões destas e outras paralelas em que o sentimento perante um passado longínquo deixa de fazer sentido, (excepto para os que nutrem um sentido de pertença- neste caso os judeus) não me agradou a dita cerimónia – não no facto de a fazerem mas de defender, em teoria, a sua importância ou necessidade.
Quanto aos judeus, aos marranos e outras histórias, nesta altura não me parece indicado. No entanto apeteceu-me deixar uma nota ali noutros postes onde houve grande admiração por atrito em relação a conversos. Houve mesmo quem dissesse que eles, passados 10 anos já eram cristãos. Isso é uma enorme fantasia. A maior parte continuou a seguir os seus ritos hebraicos e até ainda com escárnios e blasfemas mais acintosas em relação aos cultos cristãos (neste caso até se compreende- foram obrigados a deixar oficialmente os seus). A título de curiosidade deixo apenas aqui um link sobre o assunto já em época recente: http://www.saudades.org/criptojudeaudafaixa2.html
(já agora vou dizer uma coisa que nem me atrevi a dizer em lado onde decorreu o pseudo-debate, não penso que seja necessário todo o povo saber todos os factos históricos e muito menos ter uma visão qualquer formada em boa ou má história. Tem a que tem. O resto é ensino e cultura, não deve ser doutrina).
E Boa Páscoa
Cervantes estuvo preso en Argel (Argelia)
A Paixão de Israel
Como Cidadão do Mundo, e, particularmente, como exilado interno lusitano, venho, através deste texto, associar este blogue a um dos momentos mais negros da nossa História Nacional.
Como está largamente documentado na Rua da Judiaria, celebram-se, no dia 19 de Abril, os 500 anos do infame massacre perpetrado pelos nossos antepassados sobre os antepassados dos nossos concidadãos de credo judaico. Um pouco por todo o lado se pede que nos associemos, e nesse dia acendamos, no Rossio, uma vela evocativa. Contudo, mais importante do que essa vela, convém que saibamos reacender a vela de uma memória interior.
Não me vou ater aqui a pormenores históricos, estão devida, e lapidarmente, descritos na Rua da Judiaria: em 1506, terão, por alto, sido chacinados e queimados vivos cerca de 4 000 dos nossos compatriotas, mais do que compatriotas, vizinhos de Lisboa, tão-só por uma diferença de credo, algumas referências de texto, e diferentes denominações daquele deus único dos 3 Monoteísmos.
Quando me falam de Judeus, de Cristãos e de Muçulmanos, imediatamente me acorre à ideia o Califado de Córdoba, onde, nos tempos intermédios da Reconquista, essas três religiões se uniram, para dar lugar a uma das mais espantosas florações culturais da Península, onde os pensares eram comuns, as sinagogas moçárabes, os príncipes cristãos versados nas línguas mouras, o filosofar árabe assimilado por todas as teologias, e as Igrejas de Cristo um lugar de cultos partilhados. Tudo o resto foi, depois, uma mera sombra cultural.
Portugal, país ingrato, mostrou-se sempre exímio em mutilar as suas melhores cabeças: num tempo de acolhimento, começou por juntar os restos dos perseguidos Templários com o ancestral Saber Judeu. Daí terá resultado a nossa única epopeia, a dos Descobrimentos, até que príncipes mal aconselhados, ao sabor das conveniências, resolveram substituir a Convivência pela Intolerância, obrigando ao exílio, à mentira da pele de uma religião forçada (o que é um cristão-novo, senão mais uma alma humilhada?...), e, por fim, a essa indesculpável hecatombe, iniciada em 19 de Abril de 1506.
Toda a nossa épica sucumbe nessa forçada Segunda Diáspora, onde as melhores mentes judaicas acabaram por levar o seu saber para as terras da tolerante Holanda, tornando-a na nova potência, que rapidamente substituiu o soçobrado Império Português.
Faz parte da cruz judaica a régua de dois saberes: 1) a de que mais tarde, ou mais cedo, ele será perseguido; 2) a de que, posto que essa perseguição inexoravelmente virá, lhe convém estar, ao máximo, preparado para ela. Isto gerou Judeus ricos, e Judeus sábios, e à volta disto, semeou-se sempre uma infindável história de mal disfarçadas invejas.
Quando ligo a televisão, tudo o que sinto de repulsa pelo presente xadrez de ódios do Próximo e do Médio Oriente consegue estender-se até esse dia de há 500 anos atrás. Dir-se-á que estão distantes, e que são povos que nos são quase alheios; todavia para quem invoca, repetidamente, o lema do país dos brandos costumes, relembro que esses bárbaros de há meio milénio atrás, também foram nossos antepassados, ou, por palavras outras, para que conste, que todos nós, Portugueses de hoje, deles descendemos, e descendemos em linha directa de culpa.
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