A História do massacre de Lisboa
O apelo de Nuno Guerreiro para comemorar os quinhentos anos do massacre de judeus em Lisboa tem provocado acesos debates na blogosfera. A última vez que vi o post de Lutz que despoletou a questão já ia em 104 comentários. À tona da polémica vieram acusações de instrumentalização da História. O acontecimento tem sido esquecido pela historiografia portuguesa ou nem por isso? As comemorações actuais podem sofrer aproveitamento político pelo lobby judaico e pelo Estado de Israel? Independentemente das respostas a estas questões, lamento que um Estado democrático, alicerçado nos valores do pluralismo e da tolerância, não tome a iniciativa de comemorar um acontecimento deste género. Ainda por cima, em plena ressaca das comemorações do terramoto de 1755 que deu origem a uma notável produção científica. Alguns justificarão a diferença de atitude pelo facto do maremoto asiático ter colocado a reflexão sobre as catástrofes naturais na agenda mediática. Mas, segundo outros, não vivemos uma guerra de civilizações, distinguindo-se a nossa civilização justamente pela tolerância? Ou a diferença de tratamento encontra-se no facto do terramoto ter suscitado uma intensa discussão filosófica na Europa? No entanto, a História do massacre de judeus é indissociável da História da expulsão dos judeus em Portugal e do restabelecimento da inquisição em Portugal. Foi o próprio Alexandre Herculano a sublinhar esta relação que alimenta reflexões sobre as causas da decadência de Portugal desde o século XIX.
Tendo lido tantas reacções de choque de pessoas que afirmaram ser versadas em História de Portugal mas desconhecer o acontecimento, como, por exemplo, aqui, resolvi dar uma vista rápida aos livros mais à mão. A primeira vez que me lembro de ter lido referências ao massacre foi numa obra de Maria José Ferro Tavares sobre judaísmo e inquisição (1). Trata-se de um livro de tiragem reduzida sobre um tema específico. Como é que ele é abordado nas obras de carácter geral, destinadas ao grande público? Oliveira Marques ignora-o na Breve História de Portugal (2). Creio que a explicação reside em razões metodológicas: a sua preocupação é narrar o estabelecimento da inquisição, apontando a queima de vítimas em Évora (1543), como o início de «nova época» para a História de Portugal.
Joaquim Romero de Magalhães dedica duas linhas à questão no capítulo sobre sociedade do volume III da História de Portugal de José Mattoso. Vale a pena transcrevê-las: «Logo em 1506 explode com grande violência um progrom em Lisboa. À integração legal respondia uma segregação popular muito forte» (3). É curioso que o historiador conservador Joaquim Veríssimo Serrão dedique duas páginas aos acontecimentos. Um parágrafo é gasto só a descrever a punição por D. Manuel I dos culpados do motim: 50 foram enforcados e os dois monges instigadores sofreram a pena do garrote. A cidade de Lisboa foi castigada com perda de privilégios e suspensão das eleições na Casa dos Vinte e Quatro. O Rei decidiu levantar restrições aos judeus autorizando-os a sair do Reino, podendo levar bens consigo (4).
No Dicionário de História de Portugal, o acontecimento escapa-se à rede das entradas. Nenhuma existe sob o título de «massacre». O autor do artigo sobre judeus termina a sua narrativa com a conversão forçada de Dezembro de 1496 e remete para a entrada «Cristãos-Novos e Santo Ofício» (5), de António José Saraiva, o qual problematiza a inquisição à luz dos conflitos entre burguesia e nobreza, num curto texto ignorando o massacre. No suplemento dirigido por António Barreto e Filomena Mónica, o artigo «Judeus em Portugal» retoma a questão a partir da I República.
Como se vê, existe um défice historiográfico acerca do massacre de judeus em Lisboa, em 19 de Abril de 1506. E, pela amostra, há muitas questões a discutir. A começar pelo perturbante facto da violência não se ter verificado no contexto de segregação tradicional, materializada nas judiarias, mas durante um processo de integração forçada.
(1) TAVARES, Maria José Pimenta Ferro, Judaísmo e Inquisição. Estudos, Lisboa, Editorial Presença, 1987.
(2) MARQUES, A. H. de Oliveira, Breve História de Portugal, 4.ª Edição, Lisboa, Editorial Presença, 2001.
(3) MATTOSO, José, História de Portugal, Vol. III, No Alvorecer da Modernidade (1480-1620), Coord. MAGALHÃES, Joaquim Romero de, Lisboa, Círculo de Leitores, 1993, pág. 476.
(4) SERRÃO, Joaquim Veríssimo, História de Portugal (1495-1580), Vol. III, Lisboa, Editorial Verbo, 1978, pp. 18-19.
(5) SERRÃO, Joel, (Dir.), Dicionário de História de Portugal, Vol, II e III, Porto, Livraria Figueirinhas, 1981.
(6) BARRETO, António e MÓNICA, Filomena, Dicionário de História de Portugal, Vol. VIII, Suplemento F/O, Porto, Livraria Figueirinhas, 1999.
8 Comments:
Obrigado pela pesquisa! Muito util para o debate em curso.
Parabéns! É com trabalhos desta qualidade que a blogosfera é um lugar cada vez mais agradável para se estar.
Referências na História de Portugal", de Oliveira Martins Tomo II,(11ª edição), 1927, Parceria Antonio MAria Pereira, pag. 14 a 18
E referências também em Lúcio de Azevedo, suponho.
Excelente post, João. Isto é o que se chama falar-sem-ser-da-boca-para-fora.
Obrigado pelos elogios. Limitei-me a procurar nos livros que tinha mais à mão. Não sei se a «História de Portugal» orientada por João Medina, por exemplo, ou a do José Hermano Saraiva, não terá também referências. Não verifiquei Lúcio de Azevedo. Deve focar o caso, pois trata da História dos cristãos-novos. A minha intenção não foi fazer uma análise de obras especializadas no tema, mas ver como é que ele aparecia na historiografia mais recente, de carácter genérico, sobre Portugal.
A dica sobre Oliveira Martins é boa. Hei-de ler o que escreve acerca do assunto.
Boa posta.
Publiquei o texto em que J. Lúcio de Azevedo se refere ao assunto, em http://ablasfemia.blogspot.com/2006/04/o-massacre-de-lisboa.html
Postal muito bem documentado. Parabens!
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