quarta-feira, fevereiro 22, 2006

Irving & Hitler: limites na expressão, limites na interpretação


O João Miranda é uma mente sistemática devotada à clareza conceptual e doutrinária. Isso leva-o a abordar temas complicados de ângulos pouco populares, o que é sempre interessante. Para ele é evidente que, ao contrário do que refere Vasco Pulido Valente, a salvaguarda da liberdade de expressão se aplica ao caso do duvidoso David Irving. O facto de ele ser ou não um bom ou mau historiador do III Reich é uma questão de opinião. Por isso não pode, ou não deve, num entendimento liberal, ser julgado ou condenado.
Este não é o primeiro julgamento de Irving. Ele perdeu um caso cível na liberal Inglaterra, que ajuda a mostrar que é perfeitamente possível concluir que ele é um falsificador da história. Não se trata de uma questão de opinião, como o tribunal austríaco mais uma vez confirmou. O principal perito usado contra Irving foi Richard J. Evans, um dos mais laboriosos historiadores da Alemanha nazi, que explica como desmascarou a fraude de Irving no livro Lying About Hitler.
Aliás, a história tem uma, talvez não evidente, proximidade com os tribunais. Trata-se, num caso como noutro, de arrolar testemunhos, registar factos, cruzar tudo isso por forma a criar um todo minimamente coerente pelo menos em relação a determinados aspectos centrais do que se passou. Umas vezes consegue-se uma imagem mais nítida da realidade. Noutras as coisas são mais nublosas. Nunca é um exercício fácil. Daí a importância da revisão, ou do recurso no caso dos tribunais. Os factos nunca falam por si. Por isso são necessários profissionais. Mas entre reconhecer que há zonas de dúvida, algo que todo o bom historiador aprende a fazer sem problemas, e dizer que vale tudo vai uma grande distância. E vai uma distância ainda maior entre esta falácia do cinzento universal e a deliberada distorção ou supressão de factos documentados em nome de uma verdade alternativa desonesta.
Irving falsificou deliberadamente os factos por ser um racista e um filo-nazi. Não se pode assumir a pose de historiador da Alemanha que denunciar a «tese» do genocídio nazi dos judeus, para depois ignorar ou amputar partes essenciais dos documentos em que assentavam os argumentos que ele atacava. A morte de perto de 6 milhões de judeus – dos quais cerca de 100.000 só no gigantesco campo de trabalho e de extermínio de Auschwitz-Birkenau – é um dos factos mais exaustivamente documentados da história humana, apesar dos esforços para apagar os seus traços. Pode-se discutir muita coisa mas não isto. Não de boa fé. Ora a falsificação deliberada e a burla são crimes. Nem é preciso explicar porquê, mas é por boas e liberais razões. Misturar esta questão, como alguns fazem, com uma longa tradição de caricaturas deliberada e reconhecimente satíricas é não quer perceber o que está em jogo. Será a prisão a pena mais adequada para Irving? Penso que não. Ele enfrentou a bancarrota a seguir perder o processo em Inglaterra. Essa foi sem dúvida uma punição exemplar para quem tinha feito uma pequena fortuna a vender livros que apagavam a desgraça alheia.

4 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Pois é,"double-standards" é do que se trata.Tanto o grupusculo que controla o jornal dinamarques como Irving são xenofobos, anti-semitas, mais propriamente neo-nazis.Porque é que se condena um e não se condenam os outros?
Por falsificação,por burla?Não insulte a inteligência das pessoas.Eu p.e. abomino-os, mas aos dois (o pasquim e o Irving),porque são a mesma coisa. Agora você vem com leis para distinguir um caso do outro? Já não é a universal liberdade de expressão?
"Double-standard

9:37 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

Pois é sr.Irving,pelo menos em Inglaterra(e agora também na Austria)a justiça funciona...

4:06 da tarde  
Blogger Pedro Picoito disse...

Muito interessante, mas discordo. As falsificações da história combatem-se com notas de rodapé, não com sentenças de tribunal. O facto de Irving ser filonazi e anti-semita é irrelevante do ponto de vista académico. Já não é irrelevante saber se ele diz ou não a verdade, assunto para historiadores e não para juízes. Por muito odioso que seja. Vou tentar escrever na Mão Invisível sobre isto.

12:12 da tarde  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Obrigado pelos comentários e vou estar atento a outros postes. O tempo tem escasseado, mas talvez volte ao tema. Para já deixo duas notas.

Realmente a lei é um ponto de referência, mas não é uma resposta: pode-se discutir se a lei faz sentido ou não, deve ou não ser alterada ou não. Há leis mais (EUA e RU) e menos liberais (Europa Continental) a respeito da liberdade de expressão. Mas em todo lado há alguns limites.

Parece-me evidentemente relevante - independentemente da lei - distinguir caricaturas que vivem da sátira e do exagero, em que mesmo um toque de racismo ou de estereótipo negativo (o Zé Povinho, o John Bull) é admissível, e a tentativa de fazer passar gato por lebre, i.e., vestir da roupagem do discurso histórica aquilo que não passa de propaganda.

10:33 da tarde  

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