quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Do Tibete para o mundo


Em tempos em que tanto se fala de «choque de civilizações» e de «guerra de religiões» é refrescante ler Ética para o Novo Milénio, do Dalai Lama. Na discussão acerca da superioridade da civilização ocidental entre o Rui Tavares e o Vasco Pulido Valente, o caso de Gandhi foi controverso. Para o Rui, como escreveu aqui, é um exemplo de superioridade ética na crítica ao Ocidente. Pulido Valente vê nele apenas um produto do império britânico, expondo os seus argumentos aqui. A ambos aconselho o livro, embora o ponto de vista do Rui Tavares saia beneficiado. Gandhi recebeu parte da sua formação no Reino Unido e, na luta política, usou a consciência ocidental para a derrotar. O Dalai Lama viveu na fechada sociedade tibetana até 1959. Exilou-se na Índia e visitou um país ocidental pela primeira vez em 1973. O seu adversário político não tem sido qualquer país ocidental, mas a China. A falta de sucesso não o afastou dos caminhos da não-violência.
O discurso do Dalai Lama só pode ser o de um outro civilizacional e religioso. Ele não procura iludir a questão e admite que na língua tibetana não há palavra equivalente a «culpa». É mesmo possível que não tenha percebido o conceito, tal como os ocidentais distorcem o sentido de karma, tornando-o sinónimo de destino quando significa acção. Frases curiosas como «todos nós temos oito dedos e dois polegares» lembram-nos a diferença entre quem escreve e quem lê. No entanto, este monge tibetano descortina em todos os seres humanos a vontade de evitar o sofrimento e de ser feliz. É a partir desta concepção e do reconhecimento da interdependência humana que propõe uma revolução espiritual. Distingue, no entanto, entre espiritualidade e religião. Todos os homens, tenham ou não uma vida religiosa, podem ser uma vida espiritual: esta consiste em cultivar valores que fundamentam a felicidade duradoura: o amor, a compaixão, a paciência, a tolerância, o perdão. A vida religiosa fundamenta a espiritualidade dos seus adeptos, mas pressupõe concepções sobrenaturais: Deus, o Nirvana, a Reencarnação, etc. O Dalai Lama não pretende afirmar que, no fundo, todas as religiões são o mesmo e cita, a propósito, um provérbio tibetano: «não devemos pôr a cabeça de um iaque no corpo de uma ovelha». Acredita é que em todas as tradições religiosas, e também em tradições ateias, se pode valorizar a ajuda ao próximo e a paz.
A ética do novo milénio define-se mais facilmente a nível individual do que do ponto de vista da sociedade global e das relações internacionais. Adepto, da não-violência, o Dalai Lama admite que «Nem podemos esperar uma paz verdadeira enquanto houver regime totalitários apoiados por forças armadas que, às suas ordens, não hesitam em praticar injustiças. Isto porque a injustiça mina a verdade e sem verdade não pode haver paz duradoura». O ideal é o desarmamento, a realidade desaconselha que este se faça unilateralmente. Sem pretender possuir uma resposta no bolso, o Dalai Lama avança com algumas ideias: a criação de «Zonas de Paz», desmilitarizadas, como já acontece na Antárctida e poderia acontecer no Tibete; a eliminação de alguns tipos de armamento como as minas pessoais, o que tem sido feito, e o as armas nucleares, o que devia ser feito.
A História e a Actualidade estão repletas de massacres em nome de Deus, da Política, da Moral e da Lei. Nunca se matou ninguém em nome da Ética. Por isso, que o nosso grito, ou a nossa oração, seja «a Ética primeiro».
Ética para o Novo Milénio, Lisboa, Círculo de Leitores, 2000