quarta-feira, fevereiro 15, 2006

Choque de civilizações encore


O choque das caricaturas, tal como o choque do 11 de Setembro, trouxe de volta à ribalta o Choque das Civilizações de Samuel Huntington. O Paulo Gorjão aproveitou para aprofundar a questão. Agradeço-lhe o pretexto para voltar ao local do crime. Tentei contribuir para isso há uns anos num «artigo de fundo» no N. 21 da Política Internacional. (Então ainda não editada pelo Paulo Gorjão, portanto não há aqui amiguismos). Não resultou. E foi um passo importante na perda da minha inocência quanto às potencialidades do debate académico em Portugal. (Tem havido umas ainda escassas melhoras). Por contraste, nos EUA, o sucesso de uma tese avalia-se grandemente pela discussão que gera. Neste aspecto a tese de Huntington foi um grande sucesso. A Foreign Affairs cuidou de publicar um dossier com o artigo original - o segundo mais citado de sempre na história da revista - e as principais respostas críticas ao mesmo. Em Portugal nem sequer é vulgar haver uma secção de cartas e polémicas nas revistas académicas (Creio que António Barreto tentou na Análise Social, mas debalde).

Para gerar tanta discussão alguma coisa Huntington terá feito bem. (Como diz JMF do licencioso French Kissin). Uma das coisas foi sem dúvida o título: O Choque das Civilizações! Até parece jogo de computador. É claramente mais vendável do que 99% dos ensaios académicos. Por exemplo, o primeiro grande livro dele, ainda hoje muito reconhecido... por muito pouca gente, dá pelo nome de The Soldier and the State: The Theory and Politics of Civil-Military Relations. Não é mau. Mas NUNCA se coloca teoria no título de um livro que se quer vender. Choque das Civilizações é um título deliberadamente provocador, fácil de assimilar e falar superficialmente. (Ou seja, no fundo, caro Pacheco Pereira, a culpa também é dele.) Assim se faz um best-seller.

Quanto às fragilidades da tese de Huntington disparo na mesma direcção de Paulo Gorjão e do sínico Mai Tei Long. (No meu velho artigo tratava longamente das confusões entre religiões e civilizações, por isso me desobrigo de voltar a essa via sacra.) E que para mim se resumem a dois problemas fundamentais. 1. As civilizações não são conjuntos suficientemente homogéneos e organizados para poderem ser consideradas como actores no campo internacional. 2. Os Estados não são suficientemente motivados por factores ideológicos ou identitários para se determinarem absolutamente em situações de crise a um critério civilizacional. O Paulo Gorjão dá vários bons exemplos de como os interesses e uma lógica de razão de Estado sobrepesaram factores civilizacionais. (Mas vê-se isso num caso tão cultural como o das caricaturas dinamarqueses. O Ocidente dividiu-se de acordo com as conveniências diplomáticas.) Huntington tem estado a recuar nestes dois aspectos desde que publicou o livro.

Há, no entanto, um elemento novo na política internacional que reforça o interesse da tese de Huntington nos tempos que correm. O peso crescente de actores não estatais: grupos religiosos, ONGs, organizações regionais, e até essas ONGs ou multinacionais «negras» que são os grupos terroristas. Claro que é impossível funcionar na sociedade internacional sem um elemento de cálculo de poder. Mas estes grupos podem dar-se mais ao luxo da ideologia «pura e desinteressada», fanática em vez de pragmática, do que os Estados. Como refere Huntington (oportunamente citado pelo Sínico): bin Ladin quer o Choque das Civilizações!

Relativamente a estes grupos terroristas concordo com o Henrique Raposo que é mais pertinente falar da continuação de um choque entre o sistema vigente e ideologias militantes, do que do confronto entre grandes e infinitamente complexas religiões tradicionais. Mas com o que não concordo é que essas ideologias possam ser reduzidas a variações de velhas ideologias ocidentais. Apontar para as influências comunista e nazista no pensamento político do Islão é importante para se perceber que não somos assim tão diferentes (ou inocentes). Não se pode reduzir, no entanto, o entendimento da Irmandade Muçulmana às influências do fascismo ou do comunismo. Ele tem uma forte base na teologia islâmica (e na filosofia grega). E o movimento evoluiu. Apesar de sujeito a uma repressão feroz em muitos países, acabou por rejeitar a violência. Grupos como a al-Qaeda surgiram de rupturas sucessivas deste núclero central do islamismo político - como Olivier Roy mostra (a meu contento) - em organizações dissidentes cada vez mais pequenas e mais radicais, numa dinâmica semelhante aos grupos terroristas no Ocidente. Além disso, as nefandas influências ideológicas ocidentais (nazis ou comunistas) foram bem mais espalhadas no Médio Oriente. Por exemplo, influenciaram fortemente os movimentos nacionalistas e socialistas seculares que fundaram os actuais regimes Árabes – Nasser e outros. Os quais, no entanto, de acordo com as conveniências, não deixaram de se aliar ao Ocidente, ou de instrumentalizar politicamente o Islão (como se viu agora nalguns países neste caso das caricaturas).

Apesar das fragilidades, no entanto, Huntington aponta para factos importantes. Também por isso o livro aparece repetidamente como pertinente. Factos que contrariam uma leitura simplista do fim da Guerra Fria, a cuja grelha ideológica de leitura a tese de Huntington oferece uma alternativa. Cito dois.
Aos dois modelos ideológicos seculares e pretensamente universais em competição na Guerra Fria substituíram-se, em parte, outras divisões ideológicas, mais de tipo cultural e identitário. Os interesses são fundamentais na vida internacional, mas a escolha de amigos e inimigos também pesa alguma coisa. Parece ser bem mais provável que os EUA invadam militarmente um qualquer país afastado em termos ideológicos – em termos de regime político mas também em termos culturais – do que o contrário. O que é duvidoso é que civilização seja a única, ou necessariamente a melhor forma de falar disso.

A modernização económica, o capitalismo, não significam automaticamente ocidentalização e, menos ainda, subordinação ao Ocidente como pólo de poder no sistema internacional. Não é pelo facto de na China se beber Coca-Cola que os chineses passaram a ser americanos (estranhamente). Na medida em que cada vez mais os países não-Ocidentais crescem economicamente e ganham peso internacional, é normal que o choque entre interesses instalados e interesses emergentes seja ainda complicado por diferenças culturais.

É significativo que uma versão mais sofisticada do tema principal de Huntington – o peso das ideias, das normas, da identidade, da cultura, nas relações entre Estados – tenha dado origem na última década à corrente mais dinâmica no estudo das relações internacionais: o constructivismo. Com autores como Alexander Wendt, que procuram suplementar o realismo com máximas como esta: “A anarquia [do sistema internacional] é o que os Estados fizerem dela”. Ou seja, a visão do mundo importa. A tese de Huntington no fundo andava em torno disto. O poder pesa muito, mas as ideias contam alguma coisa.

ADENDA. Para quem quiser ler (ainda) mais. Para uma abordagem nuanceada e historicamente rica do conceito de civilização – justamente reclamada por Luís Marvão no Office Lounging – veja-se o clássico de Fernand Braudel, A Gramática das Civilizações. E para quem acha que o Islão tem pouco para oferecer intelectualmente, ocupem-se da obra fundadora da sociologia histórica e do que por aqui se chama world history, de Ibn Khaldun, Muqaddimah ou Introdução à História Universal.
[Ilustração - David Levine]