«(…) Mas, aqui vai o que eu tenho para te dizer sobre isto, sobre a vida que levas agora: tu agora és bonita, és nova, és sincera; e pronto, quando acordei, há pouco, senti mesmo nojo por estar aqui contigo! Só em estado de embriaguez é que podemos vir parar aqui. Se tu estivesses noutro sítio qualquer, se vivesses como gente decente, talvez eu não só te tivesse desejado, me tivesse apaixonado, pura e simplesmente, ficasse feliz só com um olhar teu, já nem falo de uma palavra tua; talvez ficasse à tua espera como minha noiva, e visse isso como uma grande honra. Nunca pensasse nada de impuro sobre ti. Mas aqui, basta eu assobiar – e tu, queiras ou não, tens de me seguir, não és tu quem me dita a tua vontade, sou eu quem faz segundo a minha. O último dos camponeses aluga-se como jornaleiro, mesmo assim não se vende completamente, sabe que há um prazo. E o teu prazo, qual é? Pensa só: o que estás aqui a dar, o que vendes aqui? A tua alma, sim, a tua alma, que não te pertence, que vendes ao mesmo tempo que o teu corpo! Expões a vexames o teu amor com o primeiro bêbado que apareça! O teu amor! Mas isso é tudo, é o teu diamante, o teu tesouro de rapariga, sabes o que é o amor? Há quem, para merecer o amor, esteja pronto a empenhar a alma, a deixar-se matar. E o teu amor, quanto vale ele agora? Compraram-te toda, és vendida na totalidade, e para que serve pedir amor se sem amor se pode pedir tudo? Não existe ofensa mais grave para uma rapariga, não entendes isso? Ouvi dizer que vos deixam divertir, que vos deixam ter amantes. Não passa de uma brincadeira, pobres tolas, uma mentira, um sarcasmo que vos fazem, e vós engolis isso. Será que te ama de verdade, o teu amiguinho? Não acredito. Como pode amar-te, se sabe que basta eu assobiar para que o deixes? É um depravado! Tem alguma estima por ti, por mínima que seja? Que tens de comum com ele? Ele ri-se de ti e, ainda por cima, rouba-te – é esse o amor dele! Do mal o menos, se ele não te bater! Porque ele até, se calhar, te bate. Pergunta-lhe, caso tenhas um, se ele se quer casar contigo. Vai rir-se-te na cara, se não te cuspir em cima, se não te bater, e no entanto ele próprio não vale dois tostões. Por que continuas aqui, a desperdiçar a tua vida? Porque te dão café e comida farta? E dão-te comer porquê? (…) Estás em dívida aqui, vais estar sempre endividada, até ao fim, até ao momento em que os hóspedes já não queiram nada de ti. E isso vai acontecer muito em breve, não contes com a tua juventude. Tudo desaparece num abrir e fechar de olhos, aqui. Vão pôr-te no olho da rua. E não vão contentar-se em pôr-te fora, antes disso vão começar a maltratar-te, a censurar-te, a injuriar-te, como se não tivesses dado a tua saúde, como se não tivesses arruinado por nada a tua alma e juventude, mas como se fosses tu que tivesses deixado a tua patroa na miséria, a deixasses sem nada, como se fosses tu que a espoliasses. E não esperes por apoios: as tuas amigas vão unir-se contra ti para lhe agradar, são todas escravas disto, há muito que perderam a consciência e a caridade. (…) E tu não te atreverás a dizer uma palavra que seja, não abrirás a boca, quando te puserem fora daqui vais-te embora como uma ladra. Depois passas para outro sítio, depois para outro, depois não sei mais para onde, até ires parar à praça Sennaia. Entretanto, já terão começado a bater-te, é a maneira de serem bem-educados; não acreditas que as coisas sejam tão horríveis, ali? Vai lá um dia, dá uma olhadela, e então verás, com os teus próprios olhos. Uma vez vi lá uma, no dia de Ano Novo, em frente à porta. Tinha sido deitada para a rua pelas amigas, só para apanhar um bocado de frio, porque chorava de mais, fecharam a porta atrás dela. Às nove horas da manhã já estava completamente bêbada, desgrenhada, seminua, moída de pancada. Na brancura do rosto pintado ressaltavam-lhe as olheiras negras; escorria-lhe o sangue do nariz e das gengivas: fora um cocheiro que tinha acabado de molhar a sopa. Estava sentada nos degraus de pedra, tinha na mão um peixe salgado; chorava, murmurava qualquer coisa sobre a sua má sina e batia com o peixe nos degraus. E frente ao patamar amontoavam-se soldados bêbados e cocheiros que se riam dela. Não acreditas que também vais ficar assim? (…) Não, Lisa, para ti a felicidade seria morreres depressa, não sei onde, num buraco numa cave como a desta manhã, e morrer de tísica. (…) Podes crer, é assim: vendeste a alma, além disso deves dinheiro, não te atreverás a abrir o bico. E, quando estiveres a morrer, todos te abandonam, todos se desviam de ti – o que te resta para dar? Vão censurar-te por ocupares ainda um lugar de graça, por não te despachares a passar-te. Vais ter de pedir muitas vezes que te dêem água, e quando ta trouxerem será com insultos: “Vê se te despachas a morrer, galdéria, não deixas a gente dormir, gemes, incomodas os clientes.” É o que te digo, eu próprio ouvi palavras dessas. Vão enfiar-te, na tua agonia, no buraco mais fétido, no fundo de uma cave – a escuridão, a humidade; e tu ali deitada, sozinha, em que pensarás? Depois morres, amortalham-te à pressa, um qualquer, refilando – não há tempo! -, ninguém para te benzer, ninguém mesmo para soltar um pequeno suspiro por ti, depressa que se faz tarde. Compram-te um caixão barato, tiram-te da cave, como tiraram de manhã essa desgraçada, fazem o teu banquete de luto numa taberna. Na campa rasa – a lama, a sujidade, essa neve líquida; para quê, fazer cerimónias? “Toca a baixá-la, Vânia; lá vai a má sina dela – de pernas para o ar aqui também, a grande porca. Mas encurta-me essas cordas, rapaz” “Estão bem assim.” “Mas como é que estão bem assim? Não vês que ela está de lado? É um ser humano, ao fim e ao cabo! E depois, que se amole! Vai, deita a terra.” Os coveiros não vão querer zangar-se por tua causa. Depressa te cobrem com esse barro azul, molhado, e voltam à taberna…E assim desaparecerá da face da terra a tua memória. Às outras vêm os filhos visitar o túmulo, vêm os pais, os maridos – a ti, nem uma lágrima, nem um suspiro, uma oração, ninguém, ninguém no mundo inteiro, nunca virá mais para junto do teu túmulo; o teu nome desaparecerá da face da terra – assim, como se nunca tivesses existido, como se não tivesses nascido! A lama e o pântano. Bem poderás bater todas as noites, quando os mortos se levantam, na tampa do teu caixão: “Abri, boa gente, deixai-me viver mais! Vivi e não vi nada da vida, a minha vida desfez-se em fanicos; beberam-me a vida, numa taberna da praça Sennaia: abri, boa gente, para eu recomeçar a vida!...”»
DOSTOIÉVSKI, Fiódor,
Cadernos do Subterrâneo, Lisboa, Assírio & Alvim, 2007, pp. 147-152.