Não ir de férias
«Uma das minhas mais velhas ambições, só compreensível para quem viveu em Lisboa nos anos 50, é passar as férias à janela, de pijama de flanela às riscas, a cuspir para a rua e a ler A Bola.
A paz de espírito e a confiança no mundo que a mera contemplação destas actividades plácidas me inspiravam não se pode imaginar. Vinte e cinco anos de tumultos, agonias, ambições, apetites e fraquezas conservaram-me cá em baixo, sem A Bola, intensamente ocupado a perseguir as mulheres da minha vida, escrever livros absurdos, regenerar a Pátria e educar a minha filha, se a palavra “educar” descreve o que, entre outras coisas, lhe fiz.
Este ano ainda não vou passar férias para uma janela. Várias circunstâncias se opõem a isso: as minhas janelas são altas demais para cuspir com verdadeira precisão e consolo; o próprio acto de cuspir na rua parece que foi proibido, como pouco higiénico, pelas autoridades camarárias e o ministério da Qualidade de Vida; não tenho pijama, nem de flanela, nem às riscas. Pior que tudo: o exercício presume um contentamento interno, uma imbecilidade redonda, uma elevação ascética, que por enquanto não consegui ou mereço.»
VALENTE, Vasco Pulido, Às Avessas, Lisboa, Assírio & Alvim, 1990, p. 41.
Etiquetas: A Bola, Clássicos para o povo, elevação ascética, Vasco Pulido Valente
2 Comments:
Brilhante, sempre!
«não tenho pijama, nem de flanela, nem às riscas»
Mas este teve-o:
Simon Wiesenthal, um negacionista do Holocausto disfarçado de caçador de nazis?
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