Quando a tropa portuguesa saiu para a rua a 28 de Maio de 1926, espicaçada por várias conspirações que se urdiam para acabar com a ditadura do Partido Democrático, tanto ela como os seus chefes pouca ideia tinham daquilo que queriam, embora não duvidassem daquilo que não queriam. O 28 de Maio não se fez portanto para instaurar a monarquia, o fascismo, o salazarismo, o Estado Novo ou, para ser ainda mais prosaico, o corporativismo. Fez-se isso sim, e até ao início da década de 1930, não para derrubar mas para reformar a República (por isso, e por exemplo, houve conflitos entre Cabeçadas e Gomes da Costa – e aquilo que representavam –, da mesma forma que a deriva integralista deste aceleraria a sua substituição por Carmona na chefia do regime de excepção então em vigor).
Em Maio de 1926, o Partido Democrático e tudo aquilo que representava, mas não necessariamente a República, caíram às mãos dos militares. Foi derrubada uma solução constitucional adoptada em 1911 que não era nem nunca tinha sido democrática – e menos ainda na acepção da democracia que existe em Portugal desde 1975 ou 1976 – mas que, sobretudo, trouxera instabilidade política e social ao país. A Igreja e os Católicos, assim como os sindicatos, foram perseguidos e reprimidos. Foi imposta a participação de Portugal na Primeira Guerra Mundial, ao mesmo tempo que não se desenvolveu a economia e não se cuidou do império, da mesma forma que se acumularam tanto os escândalos financeiros como a miséria mais ingente de largas faixas da população, fosse em meios rurais, urbanos ou industriais – facto de que a grossa emigração, sobretudo para o Brasil, era e é o testemunho mais objectivo do fracasso de um projecto político e social.
Vem isto a propósito de um post que eu queria escrever sobre os 80 anos do 28 de Maio – cumprem-se hoje –, mas, e acima de tudo, de um texto entretanto publicado por Vital Moreira no blog que partilha. O texto singelo que há cerca de uma semana se me ocorreu escrever estava pensado para não ir muito além de uma pequena provocação. Acudiu-me a ideia para o texto quando se deu notícia de um estudo da União Europeia que fazia referência ao previsível agravamento – absoluto e relativo – do nosso atraso socio-económico nos próximos dez ou quinze anos. Nessa altura novamente voltaremos – se é que alguma vez de lá verdadeiramente saímos – à condição dos mais pobres entre os pobres da Europa. Aproveitando a deixa, e para ajudar a relativizar tão deprimente mas igualmente correcta informação, propunha-me recordar o 28 de Maio de 1926 para dizer que, na véspera desse dia, e tal como nas vésperas do 5 de Outubro de 1910, ou do 25 de Abril de 1974, Portugal se encontrava tal-qualmente entre os países mais pobres e atrasados aqui do velho continente, embora com a vantagem de naquelas três datas a Europa ser muito mais rica do que o resto do mundo, com a excepção da América do Norte. O post, pelo tom e pelo conteúdo pretendia provocar umas reacções e, por aí, uma subida de audiências do Amigo do Povo. Por outro lado, procurava chamar a atenção para o facto de, independentemente da natureza dos regimes políticos, os problemas portugueses de atraso económico, social ou cultural insistirem em manter-se. Mande Fontes, mande João Franco, mande Afonso Costa ou António Maria da Silva, mande Salazar ou Caetano, mande Vasco Gonçalves, Mário Soares, Cavaco, Gueterres, Santana ou Sócrates, é óbvio que não se lhe dá a volta. Finalmente, interessava-me de modo implícito sublinhar o facto de todos os regimes em Portugal terem de modo demasiado óbvio um prazo de validade, pelo que mereceria talvez a pena chamar a atenção para esse facto – evocando os oitenta anos do 28 de Maio – e lançar o debate sobre quando, como e porquê cairá a 2.ª (ou será a 3.ª?) República portuguesa em que vivemos.
Vital Moreira, na Causa Nossa, veio pôr fim a um plano que até há dois ou três dias reputava, desculpem-me a imodéstia, de bem engendrado, sobretudo por causa da sua simplicidade. Obriga-me assim o distinto professor de Direito, e eu não queria, a falar de outras coisas a propósito do 28 de Maio e daquilo que veio a seguir. Coisas que revelam algo sobre Vital Moreira e, sobretudo, sobre os limites do debate intelectual em Portugal mais de trinta após o 25 de Abril de 1974. No seu post aquele professor da Faculdade de Direito da lusa Atenas atira-se, como gato a bofe, aos historiadores (?) que se entretêm a branquear o salazarismo, ao mesmo tempo que mancham o bom e imaculado nome da I República. O pequeno texto de Vital Moreira tem desde logo o problema de não citar sequer o nome de um historiador que defenda, não sei se em conjunto se por separado, “o edulcoramento do carácter repressivo da ditadura” – quer dizer a Ditadura Militar e o Estado Novo – e “a relativização da diferença entre o Estado Novo e a actual República democrática”. Como nunca li tal coisa em artigos ou livros escritos por historiadores, gostaria de vê-los nomeados. Só assim poderia confrontar opiniões. Mas gostaria igualmente de vê-los nomeados porque só desse modo tais historiadores, a existirem, poderiam eventualmente defender-se dos ataques políticos e intelectuais (?) vindos de um colega – ainda que com percurso académico noutras áreas –, e de um concidadão.
Deixando agora de lado a absurda ideia de que há historiadores que relativizam as diferenças entre Estado Novo e a democracia em que vivemos só para desvalorizar o “25 de Abril” – se o fizessem, e como “fascistas” que indiscutivelmente são aos olhos de Vital Moreira, estavam estranhamente, aos seus próprios olhos, a despromover o primeiro regime e a valorizar o segundo – a verdade é que, e naquilo que à I República diz respeito, esta não só nunca foi democrática – nem segundo os padrões da época (muito pelo contrário) nem segundo os actuais – como nunca foi, sequer, popular. Uma e outra realidade, assim como várias outras, conduziram à sua queda a 28 de Maio de 1926 – na realidade apenas uns dias mais tarde – sem que se disparasse um tiro em sua defesa. É que nunca vi, e não me parece que alguém tenha visto, um regime democrático desfazer-se como se desfez a I República. Excepto, claro, no caso da grande maioria dos portugueses, sabe-se lá porquê, não amar a República e suspirar por uma ditadura que pusesse fim a uma outra estranhamente conhecida como a ditadura do Partido Democrático.
Resumindo, é óbvio que a I República foi mais antidemocrática do que o seu contrário – a mítica “República democrática” – e, sobretudo, do que a Monarquia Constitucional. O Estado Novo foi não apenas autoritário mas, sobretudo, violento. No entanto, e embora parte do seu êxito se tenha devido ao cansaço do parlamentarismo – para não dizer outra coisa – que a República trouxe à sociedade portuguesa e à sua vida política, certo é que ele foi o produto de um confronto político que transformou a Ditadura Militar, nascida a 28 de Maio de 1926, numa síntese que não se limitou a reformar a velha I República. Se o resultado da Ditadura Militar foi o rasgar da maior parte da experiência constitucional de 1911, então tal deveu-se pura e simplesmente ao facto de se terem tornado mais fortes aqueles que defendiam, depois de 1930, novas soluções, da mesma forma que os republicanos do Partido Democrático tinham sido os mais fortes – embora com excepções importantes – entre 1910 e 1926.
A 28 de Maio a I República, tal como a Monarquia a 5 de Outubro de 1910 ou o “fascismo” português a 25 de Abril de 1974, caíram por mérito dos conspiradores. Mas também foram derrubados por se terem transformado em regimes que haviam esgotado toda a sua legitimidade e utilidade. A I República, e não a República, caiu como consequência dos seus deméritos, da sua natureza, das suas fraquezas e da sua impopularidade. Não caiu por causa do fascismo que aí vinha – aliás nunca veio. Mas quaisquer que tenham sido as causas de uma queda ou a natureza daquilo que veio a seguir – Ditadura Militar (1926-1933), “Estado Novo” (1933-1974) – o mais preocupante, mas não espantoso, é ver os Vitais Moreiras deste mundo permanentemente com o dedo em riste lançando patéticas acusações àqueles que, em liberdade, nos dão, bem ou mal, as suas interpretações sobre acontecimentos mais ou menos longínquos da nossa dilecta história de Portugal. Quem, portanto – marafado ou marafada –, saia do padrão dominante de interpretação da história portuguesa pós-1910, é, no mínimo, ignóbil lixívia branqueadora do Estado Novo e/ou vil caluniador da I República. E Vital Moreira o que é?