terça-feira, maio 16, 2006

Americana: melhor novela a pedido


O New York Times pediu a um conjunto de críticos, editores, e escritores – sobretudo norte-americanos, mas não só – que nomeassem a melhor "novela" norte-americana dos últimos 25 anos. A potencialmente mais canónica, portanto, publicada pós-1980. (E sim, Harold Bloom foi um dos grandes eleitores). Parece-me curioso exercício e oportuno pretexto de discussão (de gostos literários, ainda mais discutível do que outros). A lista completa de felizes seleccionados, a publicar na revista de livros de 21 de Março, está já disponível on-line aqui.
Os livros não se listam, dirão alguns. Mas porque não? Alguém consegue ler tudo ao mesmo tempo? Qual o lugar da recepção, e neste caso da recepção (algo) qualificada na vida de uma obra? Será desinteressante para o futuro comparar a persistência destas obras com o seu prestígio crítico e literato actual? O que faz um grande romance? A grande novela americana pode não ter nada que dizer sobre os EUA? Tem simplesmente de ser grande? Mas, além do tema e (possível) enredo, que outra coisa faz a grandeza novela? Número de páginas? Linguagem inventiva? Estilo único e adequado ao tema? Tudo isto é ensaiado neste artigo, e inclusões e exclusões são apaixonadamente debatidas num forum on-line, a que se podem juntar.
Há (para mim) o (pequeno) problema da americana ser das literaturas estrangeiras a que mais conheço, mas não deixo de ser estranho em terra estranha. Estou sempre atrasado na procura dos clássicos e na descoberta dos modernos. (E com cada vez menos tempo para uns e outros). Há alguns autores listados que desconheço, e outros que reconheço apenas de nome e reputação. Mas isso aguça o interesse e contribui para a (sempre crescente) lista das leituras futuras a pender.
Ganhou (é assim que se diz?) Beloved de Toni Morrison. (Traduzida Amada, e nunca lida, em inglês ou português). Foram finalistas com múltiplos votos: Underworld de Don DeLillo (dos últimos americanos ainda algo lidos em português); Blood Meridian, or The Evening Redness in the West de Cormac McCarthy (Beowulf de visita um Wild West realisticamente Wild, só o(s) título(s) valia(m) um prémio); American Pastoral de Philip Roth (E porque não, do mesmo autor, a bem mais evidente The Great American Novel? Será que os jurados não gostam de baseball; será que têm listas negras; será que se refugiaram no pormenor técnico de ter sido publicada em 1973?); Rabbit Angstrom de John Updike (este senhor Coelho é incontestável, mas sempre me pareceu divertido de um forma banal de mais: o subúrbio americano tem para mim limitados encantos por muito estiloso que seja o estilo).

Fiquei satisfeito, confesso, (clubismo atávico nestas coisas de campeonatos), por ver Roth, um grande favorito desta casa, consagrado como o escritor preferido desta mole literária. Isto se se considerar que foi de longe o nome com mais obras suas votadas pelos ilustres jurados. (Cuja seriedade, é certo, fica assim seriamente comprometida). Em suma, o júri apropriadamente dividiu-se pelas múltiplas obras deste escritor bastante variado. Já Toni Morrison nunca me assombrou. Mas pode ser tempo de voltar a tentar (quando tiver tempo).

A par do inegável virtuosismo e ambição propriamente escriturárias, o “júri” premiou textos que tinham algo a dizer sobre as grandes memórias da América: a escravatura e os seus fantasmas, a Guerra Fria e as suas guerras ideológicas, o Oeste e o muito sangue derramado durante a sua longa conquista. É justa vingança, num país que tanto preza o ajuste de contas final. É que não há género mais abusado do que o pobre romance histórico. Frequentes vezes carregado de anacronismos grosseiros e virtudes literárias de trazer por casa por calmeirões em busca de fortuna fácil. Outros, mais trabalhadores e talentosos, não retiram os andaimes eruditos e descritivos da escrita que tanta pesquisa custaram. (E, no entanto, até na História eles têm de ser retirados, confiando-se nas fundações e nas galerias subterrâneas abertas aos especialistas.) Nada disto nos textos de McCarthy e DeLillo, Updike e Roth.

A exclusão de Saul Bellow é (evidente) escândalo para alguns. Mas o essencial da obra estava (não menos evidentemente) publicada antes de 1980, e estragaria o sentido do exercício escolher o melhor escritor americano de todo o século XX. Para variar, no entanto, longe de me avergonhar com as exclusões, espanto-me com uma inclusão que me é cara e está longe de ser óbvia. De Tim O’Brien, The Things They Carried é um dos melhores trabalhos literários sobre a guerra e a sua memória. Os soldados perdidos no Vietnam carregavam muita tralha. Carregavam sobretudo o medo de ficarem mal perante os camaradas. Armados desse medo venciam o medo de perder a própria pele, matavam e morriam, para não corar derramavam sangue próprio e alheio.
Como dizia o nada literato mas profundamente literário General William T. Sherman (que bem podia ser personagem de MacCarthy): War is hell. Its glory is all moonshine... Também assim as guerras literárias (felizmente menos literalmente sangrentas.) Elas passam e os livros ficam. Mas não seria uma pena que ninguém se batesse por livros?