terça-feira, janeiro 31, 2006

Chris Penn: proletário de Hollywood (1962-2006)



Às lembranças do Pedro Mexia acrescentava o «Nice Guy» Eddie de Reservoir Dogs: um dos grandes-psicopatas gajos-porreiros do cinema. (Nunca mais olhei para um homem de fato-treino da mesma maneira.) Hollywood deixou de poder contar com um dos seus proletários.

Subsídios Para a Série "Aceitamos de Bom Grado Lições de Democracia", I

"O primeiro princípio do democrata é transportar a ideia de governo e império, do corpo social, onde todos a vêem, para dentro do espírito do cidadão. O democrata verdadeiro não é o que começa por dizer ao povo: 'tu és soberano', mas sim o que toma como ideia básica 'que cada um eleve no seu próprio espírito um duro soberano do seu mesmo eu, que submeta os impulsos e as ambições, os desejos e os sentimentos, ao ponto de vista racional, que é o ponto de vista social.' Democracia é disciplina interna, política do Espírito; e querer constituí-la mecanicamente, fora do Espírito, é não atingir a menor noção dos seus princípios fundamentais."
[sublinhados do autor]

António Sérgio, Seara Nova, nº 87, 13 de Maio de 1926.

O suicídio dos liberais

Sempre considerei um erro que os liberais raciocinassem em termos políticos dentro do binómio esquerda/direita. Além de redutor e falacioso, esse binómio não é compatível com a tradição liberal. Daí também as minhas dúvidas relativamente a formulações recentes em torno de uma "direita liberal", como fui, há uns bons vinte anos, muito céptico perante o "liberalismo de esquerda" de João Carlos Espada e José Pacheco Pereira. Desgraçadamente, na blogosfera liberal, é agora corrente colocar o problema do liberalismo em Portugal nos termos da "direita liberal" emergente (mesmo das bandas de onde menos o esperava). Eu considero isto uma derrota dos liberais. Por rendição.

segunda-feira, janeiro 30, 2006

A Bomba vai ter concorrência (diz New York Times)

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A Bomba, como outras marcas de referência, enfrenta crescente concorrência internacional. Neste caso duma BD islâmica. Mr. Mutawa's Teshkeel Media, based in Kuwait, says that in September it will begin publishing "The 99," a series of comic books based on superhero characters who battle injustice and fight evil, with each character personifying one of the 99 qualities that Muslims believe God embodies.

Uma dessas personagens, certamente numa homenagem ao nosso passado islâmico (e potencial petrolífero na costa do Algarve?) será: Mumita a bombshell from Portugal with unparalleled agility and a degree of bloodlust (a primeira da esquerda na imagem acima). Mas como não dizem que é uma bomba inteligente, talvez a concorrência seja limitada.

Duas conclusões se impõem. Parece que até as personagens de BD estão a emigrar. E estão evidentemente errados aqueles que dizem que ler jornais de referência da esquerda liberal é coisa chata e inútil.

domingo, janeiro 29, 2006

As the Cold Air Pushes South

[the gift, the magical day]
Eric Kipp, Winter Snow, Atlantic Public Media, 2003

O ópio do Povo (SIC)


Como consumidor de informação prefiro jornais e Internet à televisão. Abro excepções para os grandes debates, como os que ocorreram durante o período da campanha eleitoral, e reportagens em directo de acontecimentos relevantes. Ontem, durante um jantar volante, fui confrontado com o telejornal da SIC. Durante meia-hora ou mais passou uma reportagem sobre mulheres jovens que são «exploradas» por revistas «para homens». As entrevistas às meninas eram intercaladas com depoimentos de um sociólogo e um psiquiatra. Mas a maior parte do tempo era gasto a mostrar as «pobres vítimas» a despir-se frente a câmaras de televisão ou de fotografia. Pelos vistos, não passava pela cabeça de ninguém de que se aquelas mulheres se despissem na televisão em tempos rotulados como «publicidade» ou «programação» ganhariam muito mais do que aparecendo em qualquer capa de revista. A «reportagem» explorava o voyeurismo dos telespectadores, dando-lhe caução intelectual e jornalística.
À «grande reportagem» sobre belas mulheres que se despem seguiram-se os depoimentos de estrangeiros ricos a viver no Algarve. A rematar o «noticiário», o encontro de Rogérios. Parece que os portugueses com este nome sofrem de qualquer idiossincracia que justifica um jornal, encontros regulares e tempo de antena. Em suma, Portugal é um país de mulheres bonitas que se despem facilmente, nababos a gozar delícias no Algarve e tipos patuscos reconhecíveis pelo nome próprio. Se a SIC fosse blogue podia chamar-se o ópio do Povo.

Redes ou Cliques, Amigos ou Inimigos


O Esplanar e o Abrupto resolveram falar da influência das cliques na cultura. É um tema useiro na sociologia e na história da cultura. E é verdade que, para não ir mais longe, nos blogues há redes de citação mútua que são fundamentais para captar leitores. É difícil ver como evitar isso. Seria bom que prevalecesse uma cultura de debate que favorecesse a diversidade de pontos de vistas, e não previsíveis alinhamentos ideológicos ou pessoais. Mas na grande rede que é a internet, redes vão existir sempre.

E confesso que fico um pouco espantado ao ver José Pacheco Pereira dar lições de bom comportamento intelectual. Ele costuma ser mais reticentes nestas questões de moralismos. E não pode ser considerado exactamente acima de crítica. Aliás, no seu mais recente poste sobre esta questão, JPP parece estar a comentar este texto do Pedro Mexia que não cita (e não sou o único a pensar que isso é assim, e não é a primeira vez).

Ao texto do João Pedro George sobre as cliques na cultura, que deu origem a tudo isto, diria que redes de um tipo ou de outro existem em todo o lado. Quando gostamos delas são cumplicidades ou correntes. Quando não, são cliques. É provável, no entanto, que tenham um peso maior ou mais negativo em países pequenos e com poucos recursos (como sublinha Pacheco Pereira).

Parece-me, no entanto, complicado pegar na questão pelo lado dos conhecimentos pessoais. Para mim, o verdadeiro problema não é existirem redes de conhecimentos nos jornais, nas revistas, na internet. Mas sim saber se funcionam de acordo com uma estreita mentalidade amiguista; ou, o que é talvez mais aceitável, mas igualmente empobrecedor, de uma canina fidelidade ideológica. É a prevalência da cultura do tempo de antena. Em que é boa prática (ensinada aos mais novos) brilhar pelo apagamento dos outros. Em que frequentemente a forma mais gabada de «ganhar uma discussão» é ignorar a outra parte. Em suma, é a ausência duma verdadeira cultura de debate.

Eduardo Pitta diz que é normal haver um quadro de comentadores ou recenseadores residentes. É por isso que se lê um jornal. Tem alguma razão. Mas também é normal convidar regularmente gente de fora – com algum conhecimento ou interesse na área relevante – a recensear ou comentar um assunto. Acho que não se perdia nada no combate a estas lógicas em ir mais por aí.

Porque é certo que é preferível ser um desconhecido (do autor) a recensear um livro, e não um amigo (corre-se sério risco de se perder a amizade ou a recensão). Mas muitas vezes, sobretudo num país pequeno, os conhecimentos são inevitáveis. E o problema não se coloca só com os amigos, mas também com os inimigos. Será que devemos, por exemplo, desqualificar o texto do João Pedro George sobre as memórias de Filomena Mónica, só porque ele deixa claro que não gosta da pessoa?

O essencial para mim é a valia dos argumentos. E também algo que em inglês tem direito a expressão própria: full disclosure, a honestidade quanto à amizade (ou inimizade) do recenseador. Aqui estou completamente de acordo com Pacheco Pereira e (creio) com o João Pedro George. O leitor julgará com conhecimento de causa. Parece-me mais complicado do ponto de vista prático, e questionável como tese, ter como intelectual ideal o tipo(a) encerrado numa torre de marfim.
ADENDA: Amigos e conhecidos

João Pedro George volta ao tema em vários textos interessantes. Neste quase parece estar a responder ao que aqui escrevemos. E tem toda a razão que há uma distinção importante entre amigos e conhecidos (eventualmente por quem se tem simpatia, não raras vezes nascida da admiração pelo respectivo trabalho). Uma distinção que eu não tinha feito. Uma distinção que ele também não tinha feito.
E é importante informar o leitor (das amizades, que não dos conhecimentos). Não é impossível um grande amigo escrever uma grande crítica a um texto de um grande amigo. Só é muito difícil. E é bem possível que seja visto como desonesto se a amizade não for denunciada. É provavelmente preferível, concordo, deixar isso para prefácios, blogues ou apresentações. Por outro lado, em recensões mais académicas (admito que é um campo específico) por vezes os reais especialistas num tema são tão poucos que todos se gostam ou desgostam. Só restam mesmo as razões (quando as há).
Afonso Bivar anota soltamente sobre a questão com linques adicionais. E dá um exemplo de transparência ao dizer que com ele nunca podemos contar com declarações de interesse. Respeito a objecção de consciência. Reconheço a dificuldade prática (quanto aos conhecidos, menos quanto aos amigos). Detecto talvez uma objecção de estilo: é coisa chata. Mas olhe que não, como tudo, pode ser feita com interesse ou sem ele.
O José Mário Silva responde aqui. E ainda mais demoradamente aqui. Não tenho razões para questionar as explicações que dá. A mim pareceram-me dispensáveis, desde o início o deixei claro, os processos de intenção (viessem de onde vierem). A mesma razão – o facto de não existirem regras claras em Portugal ou uma tradição de transparência sobre a crítica de proximidade – que me levou a considerar que a discussão em termos mais genéricos era pertinente (desde logo para meu governo), também me leva a considerar evidentemente injusto qualquer tentativa de fazer do José Mário Silva um bode-espiatório.

sexta-feira, janeiro 27, 2006

Sociologia de um génio


O génio é Mozart e o sociólogo é Norbert Elias, um dos nomes mais importantes da sociologia histórica e autor de O Processo Civilizacional e de A Sociedade da Corte. Mozart Sociologia de um Génio é o título do livro publicado em 1993 pela Asa. Os textos, reunidos após a morte de Elias, destinavam-se a uma obra mais vasta: O Artista Burguês na Sociedade da Corte. É possível contrapô-lo a O Queijo e os Vermes de Ginsburg. Neste exercício de «micro-história» que se tornou um clássico tratava-se de negar a dicotomia entre a «História dos Grandes Homens» e a «História das Massas Anónimas», tomando como objecto de estudo um pobre moleiro italiano perseguido pela inquisição no século XVI. Sendo um «pequeno homem» excluído dos centros culturais e sob vigilância do Poder, Menochio, o moleiro, construíra uma visão original do mundo cozendo tradições orais com a sabedoria bebida em textos impressos trazidos pelos clientes do moinho. O mundo «saído da cabeça» do moleiro começara por ser uma massa láctea ao qual os anjos, agindo como vermes em relação ao queijo, deram consistência.
Norbert Elias escolhe estudar um génio – Amadeus Mozart – descobrindo nele as marcas do seu tempo, sendo que este tempo não é homogéneo. No século XVIII um bom músico tinha condições para ocupar uma posição na casa de um príncipe ao lado de pasteleiros, cozinheiros e camareiros. Enquanto os escritores, publicando em livros e jornais, começavam a ser capazes de viver do mercado constituído pelos novos leitores. As extraordinárias capacidades de Mozart permitiram-lhe libertar-se do patrocínio do bispo de Salzburgo e tentar viver satisfazendo o gosto do público de Viena. Teve sucesso durante algum tempo e depois falhou. É comovente ler um grande sociólogo, ao analisar o estado de espírito de Mozart, no fim da vida, admitir que o compositor tinha consciência de que a sua obra ficaria para a posteridade, mas era o sucesso do seu tempo que buscava. Mozart escrevia música para ser amado e morreu duvidando do amor da mulher, do público e dos amigos. Em vez de teses conspirativas sobre a morte do génio, Elias sugere que Amadeus terá sofrido de uma violenta depressão e desistido de viver. Não morreu considerando-se uma vítima da sociedade, mas que a sua música não fora capaz de criar uma nova sociedade. E era verdade. Ainda é verdade.

Créditos

O Amigo do Povo faz a vénia a Miss Pearls, dedicando-lhe a mozartada de hoje; sem a sua assistência técnica, o audiotunning deste blog não teria sido possível. Danke schön!
[Foto: Warner Bros.]

Previsíveis indignações: o Hamas e o terrorismo ideológico na blogosfera portuguesa


O mais interessante nesta história do Hamas é que é possível ler na imprensa de referência israelita análises mais equilibradas e realistas sobre o Hamas do que na blogosfera portuguesa. Até parece que no seu sentido de urgência e indignação os nossos heróicos bloguistas têm a vida em risco nesta questão, e os equilibrados jornalistas ou analistas israelitas vivem confortavelmente afastados do conflito. Mas claro que é precisamente o conforto da distância que permita o luxo da cegueira ideológica. E é a urgência da proximidade que exige o realismo na análise.

Na Glória Fácil, o João Pedro Henriques escreve (à segunda tentativa) um texto exemplar no seu tom «façam-lá-um-esforço-para-ver-se-vêm-a-luz-seus-burros» (a atacar este do Luís Rainha na Aspina B). Sim JPH, é verdade que o Hamas financia famílias dos «mártires». Mas a Fatah - que o Ocidente preferia que ganhasse - faz exactamente o mesmo às famílias dos seus «mártires». Não me diga que não sabia? Aliás, qualquer grupo que tenha uma força armada, seja ele tribo, Estado ou grupo terrorista, geralmente faz isso. A grande questão é porque é que há gente disposta a morrer para matar (ou a votar no Hamas, o que sempre é um bocadinho melhor). E nada disto impede que o Hamas, movimento terrorista mau como é, tenha uma rede social que lhes garante muita popularidade. A realidade é assim, complicadamente chata.

No Blasfémias o JC Dias publica um largo estrato do programa do Hamas. É a velha táctica dos documentos falam por si mesmo. Só se esqueceu de acrescentar – como faz aqui o Haaretz – que, como sucede com tantos partidos, a actual direcção do Hamas está disposta a colocar o programa na gaveta. Desde que Israel recue para as fronteiras de 1967 e acabe com os ataques, está disposta a aceitar uma trégua prolongada e o futuro dirá o que fazer.

No Caetera, o Rui Fernandes, que não é, verdade seja dita, dos mais terroristas nestas andanças, diz que eu atribuo tudo isto à invasão do Iraque. Não é bem isso. Embora ela tenha inegavelmente tornado a vida mais difícil no Médio Oriente às correntes mais moderadas e liberais, geralmente associadas ao Ocidente
Mas o meu argumento principal é que a estratégia de democratizar o Médio Oriente para ganhar amigos da Administração Bush ignora um facto fundamental. Os amigos seguros dos EUA são os ditadores da região (que precisam de Washington). Os movimentos realmente populares, que inevitavelmente ganharão enorme força em quaisquer eleições livres e justas, são o islamismo e o nacionalismo radical. E estes são mais hostis aos EUA – pelo menos, enquanto Washington mantiver a sua política actual – do que os poderes instalados.

O que cria (mais) um problemazinho sério à tese em que o Henrique Raposo tanto tem insistido de que os EUA são uns magníficos Kantianos, e todos os problemas do Mundo seriam resolvidos por uma comunidade de democracias. (Como se Bush alguma vez tivesse mostrado facilidade em negociar com quem quer que fosse.)

Em suma, caros ideólogos de serviço, importam-se de explicar porque é que o triunfo dos islamistas no Iraque foi um triunfo magnífico da democracia, e o triunfo dos islamistas na Palestina é uma coisa terrível? Se calhar a realidade é um bocadinho mais complexa do que uns slogans de trazer por casa.

Em Portugal, nos blogues e na imprensa, faz-se pouca análise política. Faz-se sobretudo política (mal) disfarçada de análise. E a política internacional raramente é mais do que um pretexto para fazer política interna. (Veja-se a referência tão a (des)propósito do JCD a Mário Soares.)

Soares é... assim!


Os apologistas das virtudes políticas de Mário Soares – mesmo que não oriundos da área socialista, como foi o caso de André Gonçalves Pereira no “Prós e Contras” do dia 23 – não se têm cansado de sublinhar que a derrota sofrida pelo antigo Presidente da República no passado Domingo em nada belisca a grande figura de estadista que foi. Permitam-me que discorde. Começo por citar de cor uma frase que Albert Speer terá pronunciado diante dos seus interrogadores depois detido pelos aliados terminada já a Segunda Guerra Mundial na Europa: “A História enfatiza sempre os acontecimentos finais”. Queria o arquitecto favorito de Hitler com isto significar que seria de todo injusto ver a história III Reich apenas à luz dos trágicos acontecimentos ocorridos após 1942 ou, até, depois de iniciada a Segunda Guerra Mundial. Afinal, era opinião de Hitler e de muitos nazis, antes de iniciada a guerra, ou de se ter começado a perceber que esta iria ser perdida, que nunca a Alemanha e os alemães teriam vivido durante uma meia dúzia de anos uma era de paz e de prosperidade económica, de estabilidade social e sem qualquer crise de identidade nacional como aquela que parecera ser estrutural desde a assinatura do armistício com os aliados em Novembro de 1918. Por outro lado, e como notou Antony Beevor, aquilo que Speer e outros líderes nazis – e não só – pareciam querer ignorar com a crítica ao ênfase colocado na atenção a dar aos acontecimentos finais, era que os acontecimentos subsequentes a 1943 – os relativos à queda do III Reich – diziam quase tudo sobre a natureza do sistema nacional-socialista e dos seus líderes.

Uma analogia idêntica serve tanto para que se perceba a tragédia por trás da queda do fascismo em Itália, como a do comunismo na Rússia ou do autoritarismo e do colonialismo português depois de Abril de 1974.

Não querendo levar longe de mais estas afinidades, e não pretendendo prever que politicamente o dr. Mário Soares morreu a 22 de Janeiro de 2006 – ele próprio afirmou no seu discurso na noite de 22 não estar para aí virado e José Medeiros Ferreira confidenciou no seu blog que se encontrou com Soares a 23 para estarem todo o tempo a falar do futuro –, a verdade é que os resultados obtidos e a dimensão da humilhação – quase trágica – dizem-nos quase tudo sobre o seu carácter e a sua forma de fazer política. Se nos recordarmos da feição da campanha e do modo como a sua candidatura foi preparada e quase imposta a uma liderança socialista incompetente e cujos resultados estão à vista, o que é que se vislumbra? Uma carreira política de décadas assente na arrogância e no narcisismo, na intriga, nas solidariedades e cumplicidades impostas, na subserviência, na condescendência para com os negócios poucos claros (Rui Mateus, Contos Proibidos), no improviso, no tacticismo, no clientelismo, na insinuação, na ofensa e na agressão pessoal aos seus adversários e inimigos (um mau chefe de família não pode ser um bom primeiro-ministro ou um homem que não sabe conversar não pode ser o presidente da República num Estado democrático), fossem ou sejam eles públicos ou privados. As tentativas de manipulação dos media e dos jornalistas (veja-se o livro de Estrela Serrano), dos intelectuais, dos chamados homens e das mulheres da cultura e de cultura, as promessas irresponsáveis, o dito pelo não dito. Todas estas são e foram sempre as suas armas que ele bebeu não na Europa democrática pós-1945 mas no modo como os republicanos portugueses – do PRP e do PD – fizeram política em Portugal desde o século XIX. Aparentemente, na última vez que Soares falou em público, concedeu-nos o privilégio de poder acreditar que estaríamos perante o democrata combatente de longas e longas jornadas, capaz de aceitar uma derrota, reconhecendo as virtudes da democracia e a razão dos vencedores. Nada mais errado. O dr. Soares quer voltar e vai voltar. Assim tenha saúde e oportunidade. E quer voltar, seja de que forma for, para se vingar. De Cavaco e, sobretudo, de Manuel Alegre. Para que esqueçamos aquilo que ele é? Para que recordemos aquilo que ele quer que nós pensemos sobre a sua altíssima figura? Soares é assim!

quinta-feira, janeiro 26, 2006

Testemunhos

O Pequeno Livro do Grande Terramoto, de Rui Tavares, e o terceiro volume de Álvaro Cunhal: Uma Biografia Política, de José Pacheco Pereira, são exemplos recentes e particularmente bem sucedidos do acolhimento público que a historiografia pode ter. Havendo crescente interesse pela História, aproveito para fazer lobby pela publicação de um sub-género inexplorado pelas nossas bandas, o da edição crítica de testemunhos sobre acontecimentos marcantes do século XX. Destaco aqui das minhas prateleiras duas leituras recentes: Forgotten Voices Of The Great War, por Max Arthur, em colaboração com o Imperial War Museum, e Paroles du Jour J: Lettres et Carnets du Débarquement, Eté 1944, por Jean-Pierre Guéno, em colaboração com a Radio France. Ambos são best-sellers, não por haver investigadores profissionais e war buffs aos milhões, ou apenas por culpa do bom preço, do formato de bolso e da muita publicidade nos principais media, mas porque o cidadão comum - o leitor comum - tem uma imensa vontade de saber pelo seu semelhante como foi. [Foto: NYPLDG]

Hamas: da Paz dos Túmulos à Paz dos Acordos?


O Hamas ganhou as eleições palestinianas. Muito por causa das divisões e da corrupção na OLP. Do voto de protesto contra a Fatah, portanto. Mas também do voto de protesto contra os EUA e Israel. Um voto realmente islamista numa Palestina relativamente secularizada seria provavelmente menor. Mas as coisas mudam. Veja-se o peso crescente dos fundamentalistas judeus em Israel.

Parece que a política norte-americana de ganhar amigos no Médio Oriente através da promoção da democracia, de eleições livres e justas, está a deparar-se com uns problemazinhos. Da vitória de islamistas no Iraque até à vitória de islamistas na Palestina é só escolher. Quem diria? Eu, por exemplo. Ou qualquer (outro) especialista de jeito na região.

Parece que a política israelita dos anos oitenta de minar o peso da Fatah nos Territórios Ocupados facilitando a expansão das redes islamistas (que vieram a formar o Hamas em 1987) pode ter resultado bem de mais.

Parece que o Hamas vai ter de decidir se quer ser sobretudo um grupo terrorista ou um grupo político. Uma transição que não é propriamente inédita no Médio Oriente. (Veja-se o caso da Israel).

Parece que o Kadima (o novo partido centrista formado por Sharon), depois do choque da trombose de Sharon, vai ter de lidar com um choque ainda maior. Mas é bem possível que os verdadeiros perdedores sejam os Trabalhistas (fazer um acordo de paz com quem?). Não me espantaria que o Likud e outros partidos (ainda mais) radicais da direita israelita beneficiam com isto. Afinal os extremos sempre se ajudaram no Médio Oriente. Claro que o falhanço dos moderados em entenderem-se lhes facilitou muito a vida.

Gosto do Hamas? Bem, mas que pergunta difícil!!! Vejamos, um grupo envolvido no ataque indiscriminado a alvos civis. A resposta é capaz de ser NÃO. Claro que o facto de muitos civis palestinianos terem sido mortos pelas forças israelitas, e (quase) todos viverem em condições miseráveis, é capaz de ter algo a ver com a epidemia súbita de terrorismo com origem nos Territórios Ocupados na última década. Não gosto da Hamas. E não gosto dos grupos e partidos de colonos israelitas que também acham que Deus lhes deu toda a Palestina, e que podem e devem fazer tudo para a manter. Fanáticos violentos nunca foram my cup of tea. Infelizmente os meus gostos ou desgostos contam pouco. Felizmente há sinais de que o Hamas está disposto a apostar mais na via política, se Israel estiver para aí virado. Embora um acordo não esteja provavelmente para breve. Uma trégua prolongada já não seria má.
PS - O mundo não é a preto e branco. Também pode ser verde. É tudo uma questão de cores, portanto.

quarta-feira, janeiro 25, 2006

Woody Allen na terra de Shakespeare

Match Point é o último filme de Woody Allen e uma tragédia passada entre a sóbria paisagem londrina e a suavidade do campo inglês. Há quem encare a obra como uma Woody Allen atípico, uma reviravolta inesperada num realizador que todos julgavam conhecer. Eu, pelo contrário, fui deparando com numerosos pontos de contacto com os filmes do autor: a referência mais óbvia é Crimes e Escapadelas (1989), que conta a história de um crime sem castigo. Mas há outras: as referências à tragédia grega já se encontram em Poderosa Afrodite. Na comédia ligeira O Alegre Conquistador há um encontro de carga erótica numa galeria de arte. Lembremos que a personagem principal deste filme, interpretada pelo próprio Woody Allen, vive na sombra do seu super-ego, Humphrey Bogart, e não se cansa de rever Casablanca nem de ouvir a cantar «a kiss is still a kiss» e «the same old story/the fight for love and glory». Em Match Point os beijos são mortais e entre o amor e a glória há uma escolha radical a fazer. Mais subtil e a denunciar alguma mania cinéfila: Luís Buñuel foi convidado a aparecer em Annie Hall, tendo recusado o convite. A história passou-se na década de 70, pouco depois do espanhol ter assinado O Charme Discreto da Burguesia – filme que mostra um assassinato com uma espingarda de canos serrados.
Muitos ficarão chocados com o facto de um cómico assinar um filme tão trágico e sombrio. Curiosamente, veio-me à memória outro filme pessimista de um grande comediante: Charlie Chaplin. Em 1947 realizou e interpretou Monsieur Verdoux, a partir de uma ideia de Orson Welles. A história de um «Barba Azul» que vai casando com mulheres ricas para assassiná-las e ficar com as respectivas heranças. O choque virá do preconceito que coloca a comédia ao nível do ridículo e atira a tragédia para o grandioso, em vez de enraizar uma e outra no absurdo da condição humana.
O filme também vale pela sensualíssima Scarlett Johansson a quem Woody Allen resolveu – e muito bem – tratar como uma mulher a sério. Também não é novidade, neste cineasta que geralmente associamos à beleza neurótica de Mia Farrow. Em Poderosa Afrodite, Mira Sorvino mostrou todo o esplendor de uma morena. Infelizmente, não fez mais filmes com Woody. Esperemos que Scarlett Johansson tenha mais sorte.

Auto-Retrato com chapéu de feltro

Van Gogh dizia um ano depois de pintar este auto-retrato e um ano antes de morrer no asilo de St. Remy: «conhecermo-nos a nós próprios não é fácil. Mas pintarmo-nos a nós próprios também não». Os mais cépticos a respeito de pintura menos estritamente naturalista dirão que se nota. E terão razão. Mas é por bem.

Em todo o caso porquê o «mas» caro Vicent? Não faria mais sentido um «portanto»? Talvez precisamente para ajudar a desfazer a ilusão naturalista. «Vê-te ao espelho!» É o que nos dizem como se isso fosse remédio santo. Espelho que é o instrumento tradicional do auto-retrato. Se fosse assim tão simples...

Vem isto a propósita desta exposição na National Portrait Gallery, onde nos deparámos com o sr. Vicente. Mais se dirá a respeito, talvez.

Drôle de Guerre

"Independentemente do que é que eu penso, ou deixo de pensar sobre os tablóides, é sem dúvida aqui que eu posso, neste momento, ser mais eficaz na luta contra a estupidez do mundo."
Clara Pinto Correia, O Fio da Navalha (9 de Janeiro de 2006) [24 Horas, via Citador]

Clara Pinto Correia nasceu em 1960, na cidade de Lisboa. Licenciou-se em Biologia e doutorou-se em Ciências Biomédicas, prosseguindo carreira académica em Portugal e nos Estados Unidos. Tem trabalhado em Biologia Celular e Molecular, História e Teoria da Reprodução, bem como História e Filosofia das Ciências. Manteve, paralelamente, intensa actividade jornalística e literária. Ano novo, vida nova: Pinto Correia declarou guerra à estupidez do mundo n'O Fio da Navalha, a sua coluna no jornal 24 Horas. Na segunda-feira passada, por exemplo, dedicou-a integralmente ao enxovalho de uma pessoa, no caso Maria Cavaco Silva. Há aqui qualquer coisa que não bate certo.

Adenda: vide, à propos, Chuva de Pérolas, de Rogério Santos, no Indústrias Culturais.

terça-feira, janeiro 24, 2006

Sir Winston Churchill (1874-1965)


Foi há quarenta anos que o leão calou o seu rugido. Mas ainda hoje se ouvem ecos. Sir Winston não se enganou ao dizer «sei que a história me fará justiça, até porque tenciono ser eu a escrevê-la». Mas mesmo posteriores revisões não contestaram o essencial. Churchill não teria ganho sozinho a Segunda Guerra Mundial. Mas naqueles dias e meses negros de 1940 e 1941 em que a Grã-Bretanha resistiu só a um Hitler no pico da sua força, em que recusou uma paz tentadora que salvaria o império, Churchill impediu que o terrível demagogo nazi ganhasse. Como Sir Winston disse: «Se o Império e a Comunidade Britânica durarem mil anos, os homens ainda assim dirão: esta foi a sua hora de maior glória!»

Um imperialista amigo do povo portanto. Daqueles com a coragem para dizer (no seu discurso de tomada de posse como primeiro-ministro em 1940): «só vos posso prometer sangue, trabalhos, suor e lágrimas».

É Oficial: Portugal já é a Califórnia da Europa!

Do declínio no espírito marcial e macho do cowboy americano (com as consequências sabidas no Iraque), até aos benefícios da presidência iminente de Cavaco Silva (e seus vastos conhecimentos internacionais) muito haveria a dizer. Mas enfim, correndo o risco de repetir o João Miranda, resumiria a moral da história assim: nós queixamo-nos dos chineses, os americanos queixam-se de nós, assim vai a globalização.
Parece em todo o caso que ainda temos algumas vantagens competitivas insuspeitas. Nem que seja a tiro. É só esperar que Hollywood e Sillicon Valley, Harvard e Stanford (já que o MIT está no papo) sigam o mesmo caminho da Winchester.

[Foto: gentilmente cedida por John Ford (ele pelo menos não se queixou até agora)]

segunda-feira, janeiro 23, 2006

Um homem com sorte

José Sócrates é um homem com sorte. Nem o seu mais fiel adepto o considera uma figura com a estatura de um Mário Soares, um Vítor Constâncio ou um António Guterres. No entanto, a experiência governativa delirante de Santana entregou-lhe de bandeja uma maioria absoluta sem precedentes no partido socialista. Nas últimas eleições presidenciais, mais uma vez, Sócrates foi bafejado pela sorte. Do seu ponto de vista, a hipótese óptima seria uma vitória esmagadora de Mário Soares. Excluindo a hipótese ideal, os resultados são a alternativa que mais o beneficia. Uma vitória tangencial de Soares ou Alegre iria potenciar as divisões no PS. A vitória de Cavaco Silva, com um resultado significativo de Alegre, favorece a reconciliação – a força de Alegre tem de ser reconhecida e Cavaco pode ser visto como um adversário comum. Mas Cavaco, por natureza, quer estabilidade, não conflito. Ao contrário do que se espera, à esquerda e à direita, mais facilmente o Presidente apadrinharia um governo PS/PSD unido pelas prioridades de saneamento das contas públicas do que dissolveria de ânimo leve o parlamento para entregar o poder ao PSD/CDS. Na noite eleitoral, um amigo italiano falou-me na hipótese de um governo de centro-esquerda/centro-direita suceder à maioria absoluta do PS. Só a falta de distanciamento nos permite considerar a possibilidade absurda.
Cavaco está no Poder para consolidar o centro, garantir a autoridade do Estado e a estabilidade. Quem espera dele a salvação da pátria ficará decepcionado. Porém, mesmo os mais cépticos agradecerão a Cavaco ser uma barreira sólida contra derivas populistas do género da dupla Santana Lopes/Paulo Portas.
A esperança voltará a deslocar-se de Cavaco para o euromilhões. O Presidente tornar-se-á símbolo de uma situação «remediada», de um regime que, afinal de contas, «vai andando».
Post Scriptum: peripécias várias impediram-me de ler os outros posts de O Amigo do Povo sobre as eleições antes de escrever o meu. Concordo com o LAS de que um primeiro-ministro não devia apoiar um candidato à presidência da República.
É pena que as declarações de Agustina Bessa-Luís à TSF na noite eleitoral tenham sido erradicadas das colunas «Diz-se» dos jornais. Fiquei a saber que Manuel Alegre é um homem fora do seu tempo porque é atencioso com as senhoras, o que é completamente anti-erótico, e que uma grande vantagem de Cavaco Silva é a sua estatura física.

A Propósito de Mãos à Obra

No perfil que Daniel Piza traçou de Paulo Francis dei pela primeira vez com o jobbism. À boca da década de oitenta, um Francis de meia-idade desiludira-se com tudo o mais que não estivesse ao seu directo alcance: "Procuro ser um bom jornalista, cumprir o meu dever, ganhar a vida. É um triste destino para quem achava que podia fazer tanto por seu país." A máxima ecoava a mundividência de um outro jobbist, Edmund Wilson. Continuando a puxar da meada, chegamos a Oliver Wendell Holmes, o mais chão dos Transcendentalistas.
Um destes homens suportou a ditadura, outro desiludiu-se com a democracia, e outro participou numa guerra fratricida. Une-os a todos a descoberta da dignidade profissional enquanto último e inoxidável instrumento de participação social. Não será a pólvora, mas para mim o jobbism foi um achado. Que funcionará, quando muita gente o achar também.

Frases esclarecidas (Eu, o Irão, o Ken Waltz e outros maus da fita)


O André Azevedo Alves resolveu citar no Insurgente uma "frase esclarecedora" minha a respeita do Irão. Como imaginam não podia perder a oportunidade de me citar a ser citado. Ei-la (a minha frase):

O (meu) problema com o Irão é que é demasiado parecido com os EUA de Bush.

Permita-me que lhe diga caro AAA que a considerava bem mais esclarecedora se se tivesse dado ao trabalho de citar também as que imediatamente se seguem. Não me diga que teve medo que a sua clientela ficasse convencida pela força do meu argumento? Ei-las.

O (meu) problema com o Irão é que é demasiado parecido com os EUA de Bush. Demasiado nacionalista. Demasiado unilateralista. Demasiado peso de Israel na política interna. Demasiados fundamentalistas com peso político.

Embora talvez fosse pedir demais que acrescentasse as seguintes.
A eleição de Ahmadi-Nejad é, em todo o caso, a segunda verdadeira alternância de poder no Irão. Que é mais do que se pode dizer da maioria dos aliados dos EUA na região. Imaginar que mais democracia vai fazer com que o Irão, ou outros países do Médio Oriente, sejam mais amigos duns EUA com as políticas actuais é uma miragem.

Enquanto isso, na Caetera, o Rui Fernandes resolveu provar mais uma vez que contra factos não há argumentos. Só adjectivos. E refere-se à "lógica retorcida" do meu primeiro texto sobre o Irão.

A lógica será retorcida caro Rui, mas infelizmente não é minha. É do Kenneth Waltz [foto acima]. Uma referência nas Relações Internacionais. Alguém que a vasta tribo dos auto-intitulados realistas portugueses deveria conhecer pelo menos de nome. Claro que conhecido não quer dizer certo. Ele mesmo reconhece que os seus argumentos são controversos. Mas vale com certeza a pena considerá-los.
É que ao menos este académico norte-americano não passa de realista duro e ciente do papel da força na vida internacional a moralista de coração choroso com a rapidez estoteante que é costume em tantos «analistas» portugueses.
Sobre o Irão, o nuclear, e o excelente discurso de Jacques Chirac, mais se seguirá...

Prémio Tão Democrata que Eu Sou


O Presidente Eleito a treinar para dizer o nome do «outro partido» que o apoiou.

E por falar nisso, foi o CDS ou o PP?

Mmm-mmm... Ain't that a piece of bad way...!


1. O NOVO PRESIDENTE

Cavaco Silva ganhou por décimas, é certo, mas, exceptuando a eleição de Ramalho Eanes em 1976, nunca um candidato foi eleito para um primeiro mandato com um abismo de 30% a separá-lo do segundo mais votado. Isto deve ser tido em consideração por quem já menoriza esta eleição à primeira volta.

Resta agora esperar pelo desempenho do presidente Cavaco Silva, que, estou convencido, vai surpreender muita gente. Cavaco vai querer ser o social-democrata do consenso (até porque segundo mandato oblige) e não estará propriamente a mudar a sua maneira de ser. Se passou por reformista enquanto primeiro-ministro foi porque dificilmente poderia ser outra coisa vindo o País do socialismo hard core onde o metera a revolução e pedindo a União Europeia as reformas que pedia. E a verdade é que, nessa conjuntura, fez o mínimo que podia, fortalecendo em paralelo toda a tendência anterior para a consolidação do Estado Social herdado da II República.

A grande tentação de Cavaco (e isso também não será inédito) será tentar agradar à esquerda que não votou nele, querendo provar que não é o presidente da "direita". Algumas "brincadeiras" desta campanha acentuar-se-ão e a disposição de Cavaco de partilhar com o governo o ónus de algumas (poucas) reformas em curso será muito limitada. Aliás, e isto é mais grave, parece-me que essa atitude de Cavaco como o social-democrata do consenso vai funcionar sobre o governo como um grande incentivo à moderação da já fraca vontade reformista do gabinete de Sócrates. O bloco central só não irá funcionar porque Cavaco não estará interessado nisso.

2. A NOITE DE ONTEM

O melhor discurso da noite foi o de Mário Soares. O homem pode ter muitos defeitos, mas sabe perder com dignidade. Não resvalou para o mau perder em nenhuma das frases que proferiu. E o seu discurso estava bem construído e equilibrado.

Já José Sócrates conseguiu protagonizar o pior da noite, ele que foi um dos maiores derrotados de ontem (já lá vamos). Ao falar à imprensa logo que Manuel Alegre começou a discursar (ao mesmo tempo que falava em "contar com todos"), Sócrates cometeu um erro escusado e aparentemente revelador de mau perder. Helena Roseta teve absoluta razão ao indignar-se com o comportamento das televisões, que seguiram subservientemente a estratégia do primeiro-ministro, colocando-o no ar e cortando a palavra a Alegre. Este foi o segundo candidato mais votado, com um quinto dos votos, e a noite era sua, não era do chefe do governo, que não era parte na eleição. Talvez Sócrates esteja, involuntária e desnecessariamente, a provocar uma cisão no Partido Socialista.

3. SEPARAÇÃO DE PODERES

A opção de José Sócrates apoiar um candidato à Presidência não é nova entre os chefes de Governo. Mas até pelo que sucedeu nesta eleição, talvez este hábito devesse ser repensado. Por que razão há-de o detentor de um órgão de soberania (o primeiro-ministro, chefe do Governo) ter um candidato a outro órgão de soberania? Talvez possa, mas tenho muitas dúvidas que deva. Porque isso compromete a sua própria legitimidade aos olhos de muita gente em caso de derrota do seu candidato, enfraquecendo o governo, mas também e sobretudo por causa da necessária separação de poderes. O primeiro-ministro é em parte responsável perante o Presidente da República e não faz muito sentido ficar depois sob um Presidente que combateu na contenda eleitoral. O que isto implica provavelmente é que os chefes do governo, nessas funções, não acumulem a liderança dos seus partidos e não se imiscuam directa e publicamente na eleição do chefe de Estado.

Esta separação de águas tem outra vantagem. No caso do partido do primeiro-ministro não ter um candidato único (aceite por todos os militantes), o desfecho da eleição presidencial causará menos estragos ao governo e à relação com o partido que o apoia. Uma lição que, para Sócrates, teria sido bem mais conveniente do que a alhada em que se meteu.

Prémio Fair-Play!!!



Coincidência? Distraído? Incompetente? Ou só Canalha?

Em transe?

domingo, janeiro 22, 2006

Ex Aequo

E a distinção Fífia Fairplay vai para:


José Sócrates Agora Falo Eu Carvalho Pinto de Sousa

&

Jerónimo É O Capital É O Capital Carvalho de Sousa

Posvisão Eleitoral


Esta é a altura em que geralmente recebo lições de boas maneiras democráticas. É um equívoco. Nem eu preciso do povo para decidir o que pensar. Nem o povo (estranhamente, é certo) precisa de mim para decidir o que fazer.
Para consolar os aflitos sempre direi que não faltarão jornais e revistas a anunciar mais um grande passo na transição portuguesa para a democracia plena. Um primeiro presidente de direita desde o 25 de Abril. Suponho que teria de acontecer. Eu por mim passava, só mais esta vez.

Prognósticos Só No Fim

...e a ver vamos quantos chumbam a fairplay.

Reflexão interna: o Senhor Kraus quer desempregar-me


Um dos mais interessantes e prolixos escritores portugueses, Gonçalo M. Tavares, escreve num dos seus livros menos interessantes (pelo que me pareceu ao tresler, confesso, numa livraria quando passei pela pátria):

O senhor Kraus saiu do jornal bem-disposto. Sabia que nos tempos que corriam (para trás?, para o lado?) a «única forma objectiva de comentar a política era a sátira».

Uma frase demasiado vazia ou demasiado cheia. Pode dizer-se de tudo ou de nada, «nos tempos que correm» ou noutros quaisquer. Será a sátira menos objectivamente - palavra sempre complicada - aplicável à vida literária, jornalística, académica? Sempre me divertiram as lições de boas maneiras de académicos e intelectuais vários aos políticos. Talvez se deva reservar, em todo o caso, o drama para os desempregados de longa duração e os migrantes clandestinos. Talvez mesmo até a tragédia. Não raras vezes há mortos.

Mas o facto de me dedicar à história política e às relações internacionais terá contribuído para me apoquentar com uma frase que poderia ser prenúncio perigoso de um futuro como desempregado ou imigrante de longa duração.

Reflexão externa: o Irão nuclear explicado a crianças e adultos

Agradeço ao Paulo Gorjão dar-me pretexto para aquilo que mais me interessa no regresso aos blogues: debater ideias. O texto meu que ele cita tinha algo de provocação. Em resposta à ideia estapafúrdia de Vasco Pulido Valente de que um Irão nuclear era o fim da ordem internacional!

Este meu pequeno «inquérito» ia pouco para além de combater a ideia de que um Irão ameaçador tão popular no Ocidente levanta alguns problemas em termos dos factos. Só me faltou mesmo referir a terrível campanha terrorista anti-regime no Irão nos anos oitenta, com apoio do Iraque e do Ocidente, ou a destruição (acidental) de um avião civil iraniano pelas forças americanas no Golfo. O Paulo diz com razão que a ambição de ter a bomba é anterior a este presidente. Atribuía ao regime. E tem alguma razão. Mas ela vai para além do regime. É uma ambição nacional. E que resulta dos iranianos se sentirem inseguros, se sentirem objecto de repetidas agressões externas. E eles são muito nacionalistas.

Não tenho nenhuma simpatia pelo actual presidente do Irão e pelos seus apaniguados. Mas no fundo o (meu) problema com o Irão de Ahmadi-Nejad é ser demasiado parecido com os EUA de Bush. Demasiado nacionalista. Demasiado unilateralista. Demasiado peso de Israel na política interna. Demasiados fundamentalistas com peso político. A eleição de Ahmadi-Nejad é, em todo o caso, a segunda verdadeira alternância de poder no Irão. Que é mais do que se pode dizer da maioria dos aliados dos EUA na região. Imaginar que mais democracia vai fazer com que o Irão, ou outros países do Médio Oriente, sejam mais amigo duns EUA com as políticas actuais é uma miragem.

Como refere Ken Waltz, um Saddam ou um Mao ou um Kim Jong Il poderão ser loucos, mas são certamente sobreviventes. Parece improvável que este tipo de líder faça algo de suicida. Veja-se a China durante a Revolução Cultural. É difícil imaginar situação de maior caos ou fanatismo revolucionário. No entanto as armas nucleares continuaram por disparar.

Mas um Irão nuclear não será especialmente grave pelas suas consequências no Médio Oriente? Em termos da geopolítica do Médio Oriente as consequências parecem escassas. Israel há muito que tem bombas nucleares em grandes quantidades. Nem por isso é capaz de dominar o Médio Oriente. Mas é certamente bem capaz de dissuadir o Irão (um conceito chave na estratégia nuclear que está a ser esquecido). Mais, o facto de Israel ter a bomba há muito que leva os países da região a tentar obtê-la. Não é preciso o Irão para isso.

Além disso a ideia de uma invasão iraniana de qualquer país do Médio Oriente é difícil de conceber.
O Irão é persa e xiita. Sabe que qualquer agressão sua levantaria contra ele todo o Mundo Árabe e Sunita. Mais, invadir o quê? O Iraque? Para quê? Graças aos EUA, o Irão tem hoje uma posição mais influente do que nunca no país vizinho.

Entregará o Irão o nuclear a terroristas? Não há razão nenhuma para pensar que quisessem avançar para uma escalada dessas. E tendo em conta o número limitado de fontes de nuclear, ela poria em grande risco o regime de Teerão. A probabilidade disso acontecer é, por isso, bem maior em países com grandes arsenais e grandes problemas financeiros como a Rússia. E uma bomba suja não exige, infelizmente, grande quantidade de material nuclear.

Quais são então as possíveis respostas? Não existem respostas boas e politicamente fáceis. Daí a Europa ter sido empurrada para a frente pelos «homens fortes» de Washington. O poderio militar, mesmo dos EUA, não serve para confrontar e controlar um Estado bem organizado, populoso e vasto como o Irão. E os americanos estão até ao pescoço na confusão do Iraque. Mesmo se os EUA se limitarem a bombardeamentos e acções de forças especiais arriscariam a retaliação iraniana no Iraque. Sanções? Para serem a sério teriam de incluir o petróleo. Já imaginaram o que isso significaria em termos da subida do preço do dito e impacto económico no Ocidente?

Sobretudo os conservadores iranianos colocaram-se numa posição de ganhar sempre. Se houver uma acção hostil – militar ou de quarentena económica e diplomática – ganham pela via da agitação nacionalista e do isolamento do país. Se não houver nada de eficaz reforçam a sua posição.

A alternativa é oferecer algo que o Irão há muito vem pedindo e que talvez nem sequer Ahmadi-Nejad consiga recusar. Reconhecimento diplomático e relações normais com os EUA. Garantia pública de não-agressão. Mas o mais provável, por razões de política interna americana, é vivermos num impasse tenso e custoso, com escasso impacto no avanço do programa nuclear, e de que a culpa fundamentalmente – desde logo por não ter aceite a mão estendida publicamente pelo anterior presidente Khatami – é dos EUA. Que mais uma vez não perdeu uma oportunidade de perder uma oportunidade de reforçar os moderados no Irão. Ou talvez Israel resolva o problema, se ele for realmente sério.

sábado, janeiro 21, 2006

Reflexão autobiográfica

Os Amigos do Povo têm discutido entre si as vantagens e até a necessidade de cada um escrever um texto a apresentar-se, dado que este é um blogue plural e diverso. Encarei o dever como um trabalho penoso, dado ser reservado. Escrevi um texto curto, pois uma personalidade linear como a minha não justifica longas análises. Decidi que o dia mais adequado para publicá-lo era hoje, dia decretado obrigatoriamente de reflexão. Aqui vai: em política, liberal por causa da liberdade e de esquerda por causa da igualdade. Religiosamente, cristão por causa do evangelho e católico por causa do baptismo. Na cultura, dado à literatura e ao cinema. Herói da adolescência: Sam Shepard porque era escritor e casado com a Jessica Lange. Fotografia de actriz que tinha afixada no meu quarto: Nastacha Kinsky (um plano a preto e branco de «Paris Texas»). Quanto a assuntos culinários, adepto do bacalhau com grão, muito por causa do grão, e do arroz de pato, por causa de ambos. Em anos recentes, deu-me para a dança e subir montanhas. Não atingi o topo do Quilimanjaro, mas hei-de tentar outra vez.

Reflexão Aspiritual: Deus está cada vez mais em toda a parte

Muito divertido a Aspirina B providenciar tempo de antena a um infiltrado de direita que é realmente de direita e é Deus e tudo! Parece-me previdente, providencial mesmo. (Aliás, como bom ribatejano sempre fui fã duma boa toirada.)

Sobretudo, demonstra duas coisas que me dão grande consolação espiritual.

Deus pode realmente muito: dez contra um.

Deus está cada vez mais em toda parte.
E será sempre bem vindo por mim. Santas postas é o que lhe desejo, Rodrigo, e muitas homilias. (Já mandei à senhora do livro as moradas dos teus blogues).

PS – Duvido Cláudia. Se a inspiração tivesse vindo destes lados porque não o diria a Aspirina B, que aliás ainda não dei que tivesse dado por nós? E sobretudo a Aspirina B não pode ser, como aqui o Amigo, um blogue pensado desde o início com base na diversidade de opiniões (o que é diferente de ter um esquerdista ou direitista de estimação). Para isso já vão tarde. Para o resto vão muito a tempo.

sexta-feira, janeiro 20, 2006

O Meu Humphrey Bogart é Assim

O meu Prof. Cavaco é assim

Este Domingo...


Não vou escolher o que não quero. Logo, espero pelo que prefiro.

Previsão para Domingo


Manhã de nevoeiro, portanto. Mas claro, as previsões às vezes enganam. Eu, pelo sim, pelo não, recomendo uma lanterna.

Amena Cavaqueira

- Cá para mim, aquela rapariga ali vai votar em si, professor.

- Diz que sim, diz que sim.


[Foto: Lusa]

A confusão à direita

As declarações de Cavaco Silva de auto-exultação por as fontes de financiamento da sua campanha serem exclusivamente particulares esclareceu o carácter «supra-partidário» da sua candidatura. Numa eleição presidencial, todos os candidatos devem ser nacionais, ainda que apoiados por partidos políticos. No entanto, só a conduta pessoal pode dar garantias do necessário distanciamento e independência em relação à vida partidária. O trajecto de Cavaco Silva e o seu comportamento no período de delírio santanista não permitiam considerar uma ameaça real a ideia das presidenciais como uma segunda volta das legislativas. Eu achava que Cavaco não seria uma rampa para o PSD e o CDS/PP e mantenho esta opinião.
O problema é outro: Cavaco não vem à liça como um cavaleiro dos partidos da direita, mas como um César, capaz de estabelecer uma relação directa com as massas e o poder económico. Júlio César escreveu no seu relato acerca da conquista da Gália: «cheguei, vi e venci». Cavaco, em plena batalha, já divulgou alguns elementos da sua narrativa de conquista: começou por cavar milho, num Verão da remota adolescência; está a fazer uma campanha sem apoio dos partidos e apenas financiada por gente honesta. Falta-lhe a parte da vitória. Essa se viesse, seria um duro golpe não só na esquerda, mas também nos partidos de direita.
Convém lembrar que Cavaco não é o único candidato sem apoio partidário – o mesmo se passa com Manuel Alegre. Quanto a este candidato, a situação é clara: o PS decidiu apoiar outra pessoa e Alegre, tendo o direito de avançar, considerou que cumpria um dever ao fazê-lo. Muito se tem falado em «confusão» à esquerda. Não percebo porquê. A direita terá a ganhar com Cavaco, mas não os partidos que a representam.

O antigo Paulo Portas sobre Cavaco

Paulo Portas escreveu em O Independente o seguinte editorial sobre Cavaco Silva em 4 de Outubro de 1991:

«O homem poderá ter milhões de votos mas o meu voto não terá. (…)
A primeira razão é de carácter. Uma pessoa não deve habituar-se a votar no alheio. Cavaco Silva é mesmo um social-democrata, eu não sou, longe disso. (…)
Do ponto de vista da economia, Cavaco Silva tem limites conhecidos. Será sempre a favor duma economia dirigista, a única que ele conhece e, sobretudo, a única que lhe permite que lhe permite gozar o poder de Estado. Mas eu sou muito mais liberal, entendo que ele privatiza a ritmo de caracol, mantém o complexo partidário-empresarial do Estado e não toca no essencial, ou seja, no monstro da administração pública. É também por isso que a visão social de Cavaco Silva é assistencialista, com uma legião de pensionistas e subsidiados que dependem directamente de um poder milagroso e votam em conformidade. Eu defendo outra sociedade, eventualmente mais desigual mas certamente mais livre, em que o Estado não seja a forma de vida das pessoas e o igualitarismo não seja o critério obrigatório.
A segunda razão é patrimonial. (…) Cavaco Silva, entre punir o Estado e punir as empresas, tenderá sempre a punir as empresas.
A terceira razão é de prudência. Uma pessoa deve saber qual é o efeito do seu voto no político a quem o entrega. Cavaco Silva parece imutável mas não é. Ele só conhece uma lei – a lei das relações de forças. Nos primeiros dois anos de mandato, Cavaco Silva cultivou o pior de si próprio. Foi arrogante com todos os poderes corporativos, não quis ouvir nenhuma voz diferente da sua, foi irresponsável perante as denúncias graves de corrupção no seu próprio governo. Viveu-se um tempo de certezas estúpidas, delitos de opinião e protecções imorais. (…)
Cavaco Silva quando tem a barriga cheia, convence-se, cega, exagera, e torna-se perigoso. Quando se sente apertado, vê, ouve, modera-se e torna-se tolerável. É toda a diferença entre um autocrata natural e um democrata forçado. Imagine-se agora que, no domingo, Cavaco Silva consegue votações fantásticas, como é possível que consiga. Deve temer-se o pior. Ele é vingativo, iluminado e simplista. Após doze anos de poder, o partido de Cavaco Silva tornou-se o albergue de pequena, média e grande corrupção, o convite mais tentador para os intelectuais venais, o meio mais fácil de obter decisões e mudar de vida. Se o voto é uma questão de força, eu não quero dar mais força a quem costuma abusar dela. Questão de cautela.
(…) Penso no futuro e faço contas. Mais quatro anos de Cavaco Silva sozinho, com a direita esmagada e a esquerda em farrapos, são uma tentação para este homem. Segue direitinho para Belém. No palácio, serão mais dez anos porque um Presidente ganha sempre a reeleição. Chegaremos ao ano de 2006 com Cavaco Silva. Tudo, somado, teremos, nessa altura, 26 anos de laranjinhas. Pode ser que o povo goste. Eu não.»

A Minha República Favorita (Parlamentarista)

Voltar para quê?

Voltar à blogosfera para quê? Regressar ao passado nunca foi o meu género. Após a minha saída deste meio virtual, houve quem tivesse tido a gentileza de me oferecer poiso. Alguns fizeram-no publicamente, outros por mail. Agradeço aqui a todos. Mas não me pareceu então ser o momento.

Volto agora por ter sido possível juntar um pequeno grupo de pessoas com ideias e gostos muito diferentes na política e no resto. Uma novidade, creio, numa blogosfera dominada, sobretudo nos blogues colectivos, por empreitadas ideologicamente motivadas. O que está muito bem, mas me desapetecia.

As minhas simpatias e ideias políticas foram rigorosamente caricaturadas aqui e filosoficamente explanadas por estes lados (com a ajuda do AAA e do João Miranda). São de proximidade do PS e do actual governo, e por Mário Soares a presidente. São filosoficamente próximas das tradição de catolicismo liberal erasmiano e de certas correntes da esquerda liberal e social-democracia. Mas aqui tenciono (modestamente claro) emular Aristóteles que tanto escreveu a Poética como a Política.

As minhas razões para me amigar do povo são sumamente três. Desenferrujar o português. Gosto pelo debate. Desalinho ideológico. Agrada-me que a coincidência de opiniões entre os amigos do povo seja isso mesmo, pura coincidência, num país onde é tão grande a tendência para ortodoxias, geralmente em parelhas.

Há o risco consciente de que a heterodoxia desagrade a gregos e troianos e escasseie de público. É bem possível tendo em conta que muitos andarão à procura de argumentários políticos prontos a servir em blogues com orientações políticas claras. Mas se há meio em Portugal que ainda representa alguma promessa de debate é a blogosfera. Enquanto me parecer que é assim valerá a pena continuar a leitura e escritura apesar de me escassear o tempo e me abundarem tarefas.

As minhas preferências bloguísticas exprimem - penso eu de que - este meu gosto pelo debate de ideias. Por isso cito primeiramente alguns blogues que tiveram a paciência de se debater longamente comigo no passado, como as Blasfémias, o Sinédrio, e o Acidentalgood to be back caro Rodrigo Moita de Deus, e, por falar nisso, ainda estou à espera do chequezinho, não prometo é investi-lo a mudar de sexo e de raça para me conformar à analogia, acho que prefiro gastar tudo em freiras e livros. Dos muitos que vou visitando ao sabor dos apetites, cito apenas aqueles de que sou cliente mais frequente, por razões desvariadas, mas que terão a ver com serem mais do que corte e cola e uma certa coincidência de interesses que não necessariamente de ideias: Bloguítica, Causa Nossa, Contra-a-Corrente, Cibertertúlia, Da Literatura, Esplanar, Mar Salgado, Margens de Erro, A Origem das Espécies e a Praia.
Acompanho com natural curiosidade e muita simpatia o regresso de alguns barnabitas à blogosfera na Gardleste, Pequeno Blogue do Grande Terramoto e Fuga para a Vitória. Sem esquecer o retorno tão aspiciosamente coincidente do Daniel Oliveira via Aspirina B.

PS - Para quem quiser mais cartoons do Danziger é fartar vilanagem.

A Minha República Favorita (Semi-presidencialista)

Povo com Todos

Trendsetters, nós? E tão depressa?

quinta-feira, janeiro 19, 2006

O Problema da Condução

Faço pouco mais que uma vaga ideia do que se passa nos Passos Perdidos, em Belém, nas Necessidades ou na Boa Hora, por isso não sei como é a condução de quem por lá trabalha. A postura de nós outros, porém, está bem mais à vista: excesso de velocidade, falta de sobriedade, manobras impensadas, agressividade, incumprimento da lei. Não, não estou a falar da tragédia rodoviária. Estou a falar do péssimo uso que fazemos do poder informal.
Qualquer pessoa que tenha tido uma experiência duradoura de trabalho colectivo antes da idade adulta, fosse no dramático do bairro, na equipe de futebol lá da escola ou no grupo de jovens da paróquia, está minimamente preparada para a natural tensão e para a concorrência que as relações sociais comportam. O que não cessa de me espantar é o facto de tantos de nós não estarmos. Ordem de trabalhos, hierarquia, devido procedimento, informação reservada, decisão, voto vencido, parecem ser conceitos vazios ou desconhecidos. Por ignorância ou má-fé, a nossa descrença em todos eles faz-nos reféns do sangue, do afecto e do conhecimento pessoal. O que deveria ser um recurso excepcional é o recurso useiro e vezeiro. Mantemo-nos, sem nos apercebermos, estupidamente individualistas. Como na estrada, utilizamos por sistema a via mais rápida - e o resultado é o mesmo.

Re: A minha república preferida...

Gente Hospitaleira (Act.)

Filetes de Povo

- Boas tardes!
- Bons olhos o vejam, xiôtôr, como está?

- Bem, muito obrigado, e o senhor?
- Cá vamos andando, xiôtôr, cá vamos andando.

- Então hoje, o que é que recomenda?
- Ó xiôtôr, temos aí uns filetezinhos de povo fresco que estão uma categoria!

- âââââââh... 'tá bem.
- Trago já, xiôtôr!
[...]
- É o café e conta, por favor.
- Ó xiôtôr, já?

- Tem de ser, t'fonaram-me, volto agora mesmo para o trabalho.
- Mas xiôtôôôr, deixou o povo quase todo no prato!

quarta-feira, janeiro 18, 2006

Pequeno Questionário sobre o Grande Irão


Parece que em Portugal anda muita gente preocupada (seguindo como de costume as modas ideológicas internacionais recentes) com um Irão nuclear. Até o geralmente calmo e céptico Vasco Pulido Valente. Segue-se um pequeno questionário impróprio para almas sensíveis.

Quantas vezes o Irão invadiu um país vizinho nos últimos 250 anos? Zero

Quantas vezes o Irão promoveu um golpe de estado na Europa ou nos EUA nos últimos sessenta anos? Zero

Quantas vezes a Grã-Bretanha e os EUA ocuparam militaramente o Irão nos últimos sessenta anos? Uma

Quantas vezes a Grã-Bretanha e os EUA apoiaram com sucesso golpes de Estado no Irão nos últimos sessenta anos? Duas

Quantas vezes um Estado nuclear usou as milhares de bombas atómicas em existência? Duas (Os EUA utilizou duas contra o Japão em 1945, coincidentemente numa altura em que não havia mais)

Quantas vezes o mais conhecido especialista de Relações Internacionais vivo (Ken Waltz) escreveu a explicar que a proliferação nuclear ao nível de Estados até é uma coisa boa para a paz? Duas pelo menos (veja-se aqui e aqui)

Quantos aliados próximos dos EUA têm um arsenal nuclear? Três (Paquistão; Índia e Israel).

Qual a probabilidade de os EUA invadirem o Irão para encontrarem - desta vez a sério - armas de destruição em massa? Nula

Portanto, menos alarmismos e menos moralismo, sff.

PS – Antes que me acusem de plágio, o título deste poste encerra um pequena homenagem a um livro recente. Sobre ele e sobre o Irão mais se escreverá no futuro, talvez.

Criar excêntricos para quê?

Se há coisa que eu não compreendo no nosso panorama publicitário nos últimos meses – e já lá vão bastantes – são os anúncios idiotas do Euromilhões. Quem quer que seja responsável pela publicitação daquele concurso lembrou-se de comprar uma campanha que se limita a associar a uma catadupa de imbecilidades o gozo dos largos milhões de euros que são semanalmente distribuídos entre alguns dos seus muitos apostadores. Quem quer que seja bafejado pela sorte, e em especial com um jackpot, só poderá usufruir da fortuna com idiotices: aviões estacionados na garagem ao lado da casa, comprar pedaços mais ou menos aprazíveis do nosso território nacional e, ultimamente, ir assistir e participar no Lisboa-Dackar a bordo de uma limousine que pelo meio se avaria mas que é, imediatamente, substituída por outra do mesmo calibre. Não sei se esta campanha tem apenas por objectivo aumentar o número de apostas e de apostadores enfatizando a idiotice. Não sei, sequer, se tem bons ou maus resultados para a evolução das receitas do concurso. E se é de um péssimo gosto por todas as razões e mais uma, é-o sobretudo por desaproveitar uma oportunidade única para através de um concurso popular que já fez alguns grandes milionários em Portugal, demonstrar o papel social útil e responsável que um cidadão, que se vê de repente afogado em euros, pode e deve desempenhar. Ou, pelo menos, que os promotores do concurso achem que deve ser desempenhado.

Os Temperados

Chamo ‘temperados’ aos que se atemperam às circunstâncias do tempo e do meio. São os piores, porque são mistos – têm três doses da bílis azeda dos três partidos. São a mentira convencional – a máscara. Déspotas para zelarem a liberdade, livres para glorificarem o despotismo.”

Camilo Castelo Branco, ‘Proémio’. In Perfil do Marquês de Pombal: Porto, Lello & Irmão, 1982 (1ª Ed. 1882), p.3.


Como se lê em epígrafe, Camilo não poderia ter em pior conta os ‘temperados’, esses que não tomavam partido certo por regeneradores, progressistas ou republicanos. Ou se alheavam, ou se acomodavam, ou eram imprevisíveis, os ‘mistos’. Hoje chamamos-lhes centrão. Fosse o centrão mais que uma abstracção e seria seguramente a família política mais desconsiderada no interior dos regimes democráticos. Mas não é. É apenas o patronímico de quem por qualquer motivo está órfão de ideologia e partido. Enfio o barrete do centrão, sem mais delongas, o que não significa que me alheie da ciência, do debate, ou da acção política. Acredito que o melhor regime possível é uma democracia com plena separação de poderes. Sou pela república, que o exercício da mais alta magistratura do meu país não o desejo condicionado por privilégios de sangue. Prefiro reformas a revoluções. O anarquismo e o libertarismo assustam-me ou fazem-me rir, à vez, e às vezes ao mesmo tempo. Ao fascismo e ao comunismo, bem como a qualquer outra concepção absoluta de organização da sociedade humana, oponho-me, e não lhes subestimo as mutações. Aprecio os legados do liberalismo, da democracia cristã, da social-democracia e do socialismo democrático, mas não me identifico profunda ou totalmente com nenhuma destas tradições. Tenho por positivo o rotativismo que caracteriza a governação em regimes demoliberais - a imprevisibilidade do voto é instrumento de que esta cidadã não abdica para se ir atemperando às circunstâncias do tempo e do meio.

terça-feira, janeiro 17, 2006

A Minha República Preferida

A minha república preferida é a velha Atenas. Aquela em que se aplicava o único sistema verdadeiramente democrático de selecção dos governantes: o sorteio entre todos os cidadãos.

Um sistema absurdo? É exactamente aquele que ainda sobrevive no caso da selecção dos jurados. Que pode ser usado em Portugal para ajuizar os crimes mais graves. Há os juízes para evitar desmandos? Há o sistema de recurso dos tribunais? Há (quando funciona). Mas e não há acessores e todo o aparelho do Estado? Não há o sistema de garantias da constituição?
Seria o portuga médio assim tão mais atreito a abusos e faltas de sensos do que o político professional médio? (Contra o qual, aliás, nada me move, desde que não fale demasiado do povo.) Seria assim tão difícil a um português médio aceder a um cargo governativo, como se lhe calhasse o totoloto? Demoraria muito mais do que os seis meses da praxe a adaptar-se? Tinha pelo menos a vantagem de acabar de vez com a conversa de café sobre «nós e os políticos», sobre a incompetência «dos políticos», sobre a incapacidade «dos políticos para nos tirarem da crise.»

Por outro lado, há que dar a palma a Portugal. Poucos países terão conseguido ter ao mesmo tempo um regime de partido único e de anarquia como a nossa Primeira República. É obra. Depois, o regime republicano - aliás nunca referendado pelo sempre referido povo, ao contrário do prometido em 1910 - deu-nos 48 anos de ditadura, e uns 30 e tal de democracia, em que não se está a sair mal.

O nosso sistema semi-presidencial - que agora há quem queira estragar - é um exemplo típico dos sistemas híbridos constitucionais que já Aristóteles elogiava na sua Política e que os monárquicos liberais tentaram difundir no século XVIII e XIX. A III República Portuguesa é provavelmente a melhor monarquia constitucional que podemos ter.

Mas não deixa de ser ridículo que os raros cidadãos «normais» - alguns até doutores são e tudo - que, loucamente, decidem tomar à letra a doutrina republicana e o texto da constituição e concorrer à presidência da república, sejam objecto de quase universal gozo e desprezo. Toda a gente sabe que, em Portugal, não pode ser presidente qualquer um, mas apenas um par de políticos bem conhecidos cada dez anos. Os quais geralmente logo se esforçam afincadamente por fazer esquecer os partidos de onde vêm. Isso parece perfeitamente natural à grande maioria deste povo. A mim também me serve, desde que não se fale demasiado de povo e república.

O melhor amigo do povo é a xenofobia?

No decurso da campanha eleitoral pelo menos dois candidatos andaram a visitar templos e personalidades do mundo religioso do nosso país. Ele foi o cardeal patriarca, a mesquita e a sinagoga de Lisboa. Não sei se visitaram alguma igreja protestante e se se encontraram com algum pastor das chamadas seitas importadas do Brasil nos últimos dez ou vinte anos. Manuel Alegre, por outro lado, faz romagens a lugares simbólicos – apenas para ele e para uma minoria de portugueses. Jerónimo de Sousa, num momento de fraqueza megalómana visitou a catedral onde recebeu o apoio de uma das mais curiosas classes profissionais portuguesas. Não me lembro se algum candidato houve que visitasse a praça do Martim Moniz e respectivos centros comerciais, tentando chamar a atenção para os problemas com que se deparam quotidianmente populações de origem asiática fixadas em Lisboa. Mas se algum o fez foi certamente com o propósito de recordar a natureza humanista da sua altíssima figura. Devo confessar que nada disto me surpreende, embora tenda a deprimir-me. É que nenhum dos candidatos aproveitou ainda a campanha para de uma forma séria alertar os portugueses para o seu estrutural racismo e proverbial xenofobia. No último par de anos racismo e xenofobia têm-se virado fundamentalmente para tudo aquilo que vem leste. Seja da Europa de leste seja, sobretudo, do sub-continente indiano e da China. O povo português – e grande parte da classe média – pode não ter dinheiro senão para almoçar ou jantar em conta e com alguma qualidade em restaurantes chineses e para comprar roupa, calçado, brinquedos, pequenos electrodomésticos, senão nas chamadas lojas chinesas. Móveis e outros objectos de decoração, por exemplo, têm os indianos como comerciantes emblemáticos. Ao mesmo tempo, muitas vezes com a ajuda de políticos e de intelectuais, os portugueses vão alimentando lentamente o seu ódio ao chinês e ao indiano, culpando-os pela crise económica anunciada há cerca de uma década. A partir da Ásia roubam-nos a indústria e condenam-nos ao desemprego. Chineses e indianos, amarelos e castanhos, tendem a não falar português ou a fazê-lo com dificuldade, trabalham muito, poupam ainda mais, cultivam os valores familiares ditos tradicionais (lá tenho que dizer: cada vez mais postos de lado no mundo ocidental). Mas, sobretudo, vão prosperando – aqui e na Ásia – quando Portugal, cada vez mais, e a Europa, apesar de tudo menos, vão empobrecendo. É a receita para o ódio larvar e, a prazo, para qualquer coisa ainda mais grave. Se continuarmos a empobrecer ao ritmo a que temos empobrecido nos últimos cinco anos não sei se partiremos para confrontos raciais abertos com espancamento de asiáticos, assaltos às suas lojas e restaurantes e, obviamente, a segregação dos seus filhos nas nossas escolas. O que sei é que basta ouvir o cidadão português comum nas ruas, programas como o famoso “fórum” na TSF, os políticos nas televisões e nas rádios, para, pelo menos, estar de orelha aberta. Perante isto, os candidatos presidenciais andam cinicamente por onde podem ganhar votos mas voluntariamente a fugir dos temas civilizacionais que, a curto prazo, se transformarão em graves problemas. Felizmente, “o amigo do povo” nasceu num dos muitos restaurantes chineses que pululam por Lisboa e arredores.

P.S.: Conto, mais tarde, dizer alguma coisa sobre o debate que está decorrer entre dois amigos do povo.