sexta-feira, janeiro 27, 2006

Previsíveis indignações: o Hamas e o terrorismo ideológico na blogosfera portuguesa


O mais interessante nesta história do Hamas é que é possível ler na imprensa de referência israelita análises mais equilibradas e realistas sobre o Hamas do que na blogosfera portuguesa. Até parece que no seu sentido de urgência e indignação os nossos heróicos bloguistas têm a vida em risco nesta questão, e os equilibrados jornalistas ou analistas israelitas vivem confortavelmente afastados do conflito. Mas claro que é precisamente o conforto da distância que permita o luxo da cegueira ideológica. E é a urgência da proximidade que exige o realismo na análise.

Na Glória Fácil, o João Pedro Henriques escreve (à segunda tentativa) um texto exemplar no seu tom «façam-lá-um-esforço-para-ver-se-vêm-a-luz-seus-burros» (a atacar este do Luís Rainha na Aspina B). Sim JPH, é verdade que o Hamas financia famílias dos «mártires». Mas a Fatah - que o Ocidente preferia que ganhasse - faz exactamente o mesmo às famílias dos seus «mártires». Não me diga que não sabia? Aliás, qualquer grupo que tenha uma força armada, seja ele tribo, Estado ou grupo terrorista, geralmente faz isso. A grande questão é porque é que há gente disposta a morrer para matar (ou a votar no Hamas, o que sempre é um bocadinho melhor). E nada disto impede que o Hamas, movimento terrorista mau como é, tenha uma rede social que lhes garante muita popularidade. A realidade é assim, complicadamente chata.

No Blasfémias o JC Dias publica um largo estrato do programa do Hamas. É a velha táctica dos documentos falam por si mesmo. Só se esqueceu de acrescentar – como faz aqui o Haaretz – que, como sucede com tantos partidos, a actual direcção do Hamas está disposta a colocar o programa na gaveta. Desde que Israel recue para as fronteiras de 1967 e acabe com os ataques, está disposta a aceitar uma trégua prolongada e o futuro dirá o que fazer.

No Caetera, o Rui Fernandes, que não é, verdade seja dita, dos mais terroristas nestas andanças, diz que eu atribuo tudo isto à invasão do Iraque. Não é bem isso. Embora ela tenha inegavelmente tornado a vida mais difícil no Médio Oriente às correntes mais moderadas e liberais, geralmente associadas ao Ocidente
Mas o meu argumento principal é que a estratégia de democratizar o Médio Oriente para ganhar amigos da Administração Bush ignora um facto fundamental. Os amigos seguros dos EUA são os ditadores da região (que precisam de Washington). Os movimentos realmente populares, que inevitavelmente ganharão enorme força em quaisquer eleições livres e justas, são o islamismo e o nacionalismo radical. E estes são mais hostis aos EUA – pelo menos, enquanto Washington mantiver a sua política actual – do que os poderes instalados.

O que cria (mais) um problemazinho sério à tese em que o Henrique Raposo tanto tem insistido de que os EUA são uns magníficos Kantianos, e todos os problemas do Mundo seriam resolvidos por uma comunidade de democracias. (Como se Bush alguma vez tivesse mostrado facilidade em negociar com quem quer que fosse.)

Em suma, caros ideólogos de serviço, importam-se de explicar porque é que o triunfo dos islamistas no Iraque foi um triunfo magnífico da democracia, e o triunfo dos islamistas na Palestina é uma coisa terrível? Se calhar a realidade é um bocadinho mais complexa do que uns slogans de trazer por casa.

Em Portugal, nos blogues e na imprensa, faz-se pouca análise política. Faz-se sobretudo política (mal) disfarçada de análise. E a política internacional raramente é mais do que um pretexto para fazer política interna. (Veja-se a referência tão a (des)propósito do JCD a Mário Soares.)

5 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

"No Caetera, o Rui Fernandes, que não é, verdade seja dita, dos mais terroristas nestas andanças, diz que eu atribuo tudo isto à invasão do Iraque. Não é bem isso. Embora ela tenha inegavelmente tornado a vida mais difícil no Médio Oriente às correntes mais moderadas e liberais, geralmente associadas ao Ocidente. Mas o meu argumento principal é que a estratégia de democratizar o Médio Oriente para ganhar amigos da Administração Bush ignora um facto fundamental. Os amigos seguros dos EUA são os ditadores da região (que precisam de Washington). Os movimentos realmente populares, que inevitavelmente ganharão enorme força em quaisquer eleições livres e justas, são o islamismo e o nacionalismo radical. E estes são mais hostis aos EUA – pelo menos, enquanto Washington mantiver a sua política actual – do que os poderes instalados."

Aqui estás em bastante concordància com o que escrevi no meu post.

Um abraço!

6:21 da tarde  
Blogger Alexandre Monteiro disse...

Pois é !
Parece que só o Bruno teve clarividência para analisar corretamente essa grande vitória da democracia e da paz que foi o triunfo dos libertadores do Hamas!
Presunção e água benta...

6:49 da tarde  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Presunção e água benta cada um toma a que quer.

Quem é que falou em grande triunfo da democracia?

O que me apoquenta não é a divergência de opiniões. É o moralismo barato, a distorção (como a sua referência à democracia), a colheita altamente selectiva de factos convenientes. Que somos todos contra o terrorismo (e a guerra? e o crime?) no melhor dos mundos já se sabe.

Mas eu, ao contrário de alguns, estou disposto a debater com todos. Até com os terroristas... pelo menos os ideológicos.

7:02 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Talvez não fosse má ideia ler o que pensa alguém que sabe do que fala: Maria do Céu Pinto, no Público de hoje. Isto, e os restantes trabalhos desta investigadora da Universidade do Minho.

5:42 da tarde  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Eu não posso ler o Público porque vivo no estrangeiro.

Mas conheço a Maria do Céu Pinto com quem estive em uma ou duas conferências. E também conheço alguns dos seus «restantes trabalhos». Nomeadamente conheço bem o livro que fez a partir da tese de doutoramento, e que recenseei há alguns anos na Política Internacional. É uma pessoa com quem vale a pena debater.

Mas sobre isso dos especialistas... Em Portugal toda a gente é especialista em política internacional sem nunca ter escrito (e às vezes parece que até lido) alguma coisa sobre o assunto. Não é o caso da Maria do Céu Pinto, e não é o meu. O que não quer dizer que tenha de concordar com ela, ou ela comigo, ou você com qualquer um dos dois.

2:44 da manhã  

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