sexta-feira, maio 16, 2008

Blade Runner - Perigo Eminente

A reposição nas salas da sétima versão de Blade Runner tem, a par da emoção de rever um clássico, um efeito inquietante: onde está o «verdadeiro» filme e onde está a réplica? É como se o tema deste filme de ficção científica – a dificuldade em distinguir entre seres humanos e «replicantes» - tivesse contaminado a película, a nossa ideia da obra, a nossa memória da história. Não gostei desta versão. Como não tenho uma colecção de DVDs com as versões anteriores estou impedido de fazer críticas seguras e rigorosas. Admito que a voz «off» debitasse informação irrelevante, mas acho que não devia ter sido totalmente eliminada, pois para mim é indissociável do filme, como a voz off de Apocalypse Now de Coppola ou de Europa de Lars von Triers. O filme de que me lembro começava com um mergulho no caos das ruas de Los Angeles em 2019 e rapidamente se transformava uma caçada de morte do «blade runner» Rick Deckard (Harrison Ford) à replicante Zhora. Na versão actual a sequência só parece ao fim de um terço do filme. O que está antes permite compreender melhor a história, mas adia o pathos, o «perigo eminente» sem o qual o drama perde intensidade e a sensação de beleza se dilui.
Blade Runner não foi um êxito de bilheteiras quando estreou, em 1982. Hoje está de novo em exibição e, por muito que enfraqueça em réplicas, penso que continuará a iluminar os nossos sonhos e pesadelos durante o século XXI. À distância, foi um filme a contra-corrente dos anos 80, década em que o cinema europeu se afundou, e Hollywood parecia imbatível com os seus filmes de «ingenuidade sofisticada». Na televisão e na música Michael Jackson parecia mostrar a capacidade da tecnologia e do dinheiro realizarem um mundo à parte e à medida dos sonhos mais íntimos, moldarem o próprio corpo à imagem dos desejos. Blade Runner era o lado negro do sonho. Como, também na área da ficção científica e também realizado por Ridley Scott, Alien, o oitavo passageiro. Ou, num género muito diferente, Blue Velvet, de David Lynch.
Hoje a imagem que temos dos «replicantes» tem outro nome: «clones». Mas o problema ético que uns e outros colocam é o mesmo: um cenário tecnológico que permite construir «sub-homens» destinados à exploração. Outros temas que fazem parte da agenda dos nossos dias estão lá – o descontrolo climático indutor de uma chuva asfixiante, uma sociedade sujeita a uma hiper-vigilância policial, o poder das corporações colocado acima de qualquer código ético e da vida sem horizontes do comum dos mortais. E, para a par de todos os problemas, a possibilidade do amor, de dar sentido e valor a uma vida neste mundo que pode ser curta e é certamente mortal.

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sexta-feira, abril 11, 2008

Talento sem filme

Youth without youth, de Francis Ford Coppola, é uma banhada. Eu, que até já fui acusado de ser demasiado indulgente com alguns filmes, não consigo descrever a minha reacção de outro modo. O plot é uma variação estapafúrdia, do mais gasto dos plots: «boy meets girl». Neste caso, um velho orientalista apanhado por um raio que o rejuvenesce trinta anos encontra a reencarnação de um antigo amor da juventude. Que é também a reencarnação de uma mulher da antiguidade remota, que consegue falar imensas línguas antigas conhecidas e desconhecidas. Esta variação do plot só se torna nítida ao fim de uma hora. Em toda a primeira parte do filme a história de amor é secundária e o espectador é confrontado com os dilemas existenciais de um investigador, que além de ser rejuvenescido por acção de um raio caído dos céus, em 1938, ganhou superpoderes e por isso é disputados por norte-americanos e nazis. A segunda guerra mundial acaba e seria natural que a disputa continuasse por intermédio de norte-americanos e soviéticos. A meio do filme acaba a história de espionagem e começa outra de amor e demanda espiritual.
Pior que as incongruências do guião é a deriva estilística do realizador. Coppola imita Coppola, imita o Carol Reed de O Terceiro Homem (nas cenas nocturnas de Genebra), parece que imita Oliveira. O espantoso é que fiquei com a impressão de que alguns diálogos palavrosos das personagens seriam mais toleráveis numa película do quase centenário realizador português. Em Youth without youth aparecem todos os géneros: ficção científica, fantástico, melodrama, histórico. Só não aparece a inspiração do realizador que nos deu grandes filmes como todos os Padrinhos, o Apocalipse Now, e pequenas obras-primas como Do Fundo do Coração e Rumble Fish. De todos os seus filmes anteriores, Drácula é o mais parecido com este, sendo muito mais eficaz. O filme adapta uma história de Mircea Eliade, de quem li, desde a minha adolescência, várias obras como O Mito do Eterno Retorno. Sempre tive curiosidade em ler as incursões do orientalista na ficção, curiosidade que Coppola conseguiu extinguir. Um filme a perder.

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sexta-feira, março 21, 2008

Haverá sangue

A última longa-metragem de Paul Thomas Anderson, There will be blood, é um filme épico sobre a exploração do petróleo nos Estados Unidos no início do século XX. O termo épico é adequado pois Paul Thomas Anderson pretende, como Homero, contar e cantar uma saga. A narrativa alia-se à poesia visual e sonora. Mas, ao contrário dos heróis da épica clássica, Daniel Plainview, a personagem central da história, não aspira à glória, à conquista de uma mulher ou ao regresso a casa, mas à solidão que a acumulação de ouro negro permite. As qualidades heróicas – sagacidade, tenacidade, bravura – conduzem-no a um destino que, antecipadamente sabemos só pode ser violento. Por isso, no filme o sabor épico mistura-se com o amargo sabor das personagens condenadas ao fracasso de Herman Melville ou de Kafka.
O filme pode surpreender, num primeiro momento, quem viu outros filmes de Paul Thomas Anderson, como a comédia romântica Punch-Drunk Love (2002) e o mosaico dramático Magnolia (1999). Numa segunda análise podemos detectar nos três filmes o tema familiar como motor da narrativa. Haverá sangue é a história de duas famílias em desagregação: a de Daniel Plainview, que nunca casa e acabará por rejeitar o filho adoptivo, e a da família Sunday, proprietária do terreno que Plainview compra para extrair petróleo. A esta família pertence Eli Sunday, filho do proprietário do terreno e pastor que funda a Igreja da Terceira Revelação. O confronto entre Daniel e Eli é um duelo entre a lucidez obsessiva e a obsessão da má-fé, do qual só poderá resultar a morte e a destruição. O eventual final feliz ficará para as personagens secundárias: H.W., o miúdo adoptado, usado e por fim, já homem, repudiado por Plainview, e a mulher de H.W., Mary Sunday.

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sexta-feira, fevereiro 29, 2008

No vale de Elah

Paul Haggis bem pode dar entrevistas a dizer que não quis realizar um filme com uma mensagem sobre a guerra do Iraque. O último plano do filme não podia ser mais explícito na mensagem que transmite: a bandeira norte-americana colocada de modo a significar um apelo de ajuda internacional, como é previamente descodificado. A questão é que o filme de Haggis, não se reduz a uma obra de propaganda, como Peões em Jogo, de Robert Redford. Tal como Redacted de Brian De Palma, Haggis também recorre aos vídeos feitos por militares norte-americanos no Iraque. Mas a estética e a construção cinematográfica de Haggis vai no sentido oposto ao de Brian De Palma: sobriedade em vez de exuberância formal; silêncio em vez de gritos e explosões; o cinema como meio de dar uma perspectiva mais ampla, decifrar os estilhaços de vídeo, em vez de uma espécie de mosaico gigantesco de diferentes registos audiovisuais.
A interpretação de Tommy Lee Jones, um antigo polícia militar que investiga o desaparecimento do filho, recém-chegado do Iraque, é o eixo do filme, bem secundado por Charlize Theron, no papel de polícia civil. Foi no vale de Elah que David venceu Golias. A metáfora não vale em termos de relações internacionais: foram os Estados Unidos a entrar no Iraque como super-golias - império incomparável e imbatível. É antes uma metáfora da luta que cada homem trava no seu íntimo com os seus gigantescos monstros. Aqueles que só olhando de perto se pode vencer.

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segunda-feira, dezembro 24, 2007

(Auto)crítica amadora

Já tenho sido criticado por escrever posts demasiado complacentes acerca de determinados filmes. Uma resposta fácil, mas insuficiente, é que escrevo textos cinéfilos e não críticas de cinema. Insuficiente porque não evito juízos de valor e quando os faço tento fundamentá-los com argumentos. De vez em quando até me divirto em contrariar os pontos de vista das críticas publicadas em jornais. O busílis da questão é que as diferenças nas condições de escrita têm de se reflectir nos textos. Um crítico profissional é pago para ver filmes e tem o dever de criticá-los. Um espectador como eu tem como único dever pagar os bilhetes dos filmes que vê. Quando escrevo sobre o que vejo, o meu impulso é escrever sobre o que valeu a pena pagar para ver. Se o filme é mesmo mau, não perco tempo a recordá-lo, quanto mais a escrever sobre ele. A não ser, num caso extremo, como exorcismo de uma má memória.

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A violência não é «cool»

Redacted é o filme mais surpreendente e desafiante que vi este ano. Foi também um violento murro no estômago e em algumas pessoas mostrou-se capaz de provocar tremendas agonias. Apesar da força do tema – a guerra no Iraque – a surpresa e o desafio provêm, em primeiro lugar, da forma: um filme que é um mosaico de registos visuais – câmaras vídeo portáteis, vídeos de segurança, vídeos e teleconferências na Internet, fragmentos de um documentário francês, reportagens de televisões parecidas com a CNN e com a Aljazira, etc. O cinema surge como a reconstituição maior de uma multiplicidade de registos menores que não reproduzem a vida, fazem parte dela.
O cinema é montagem, já não montagem do material cinematográfico, como dizia Orson Welles, mas sim montagem de toda a imagem em movimento, ou seja, de toda a imagem derivada da matriz cinematográfica. O cinema afirma a sua especificidade ao mesmo tempo que afirma o seu princípio de aglutinador não só de todas as artes, mas também de todas as formas de imitar/reproduzir a vida.
Que seja Brian De Palma a realizar Redacted é uma das maiores surpresas. Brian De Palma sempre foi acusado de copiar, no mau sentido do termo, os grandes mestres do cinema: sobretudo Hitchcock, mas também Howard Hawks de quem fez um remake de Scarface (1983) e até, pontualmente, Eisenstein, do qual surripiou uma famosa sequência do Couraçado Potemkine para a enxertar em Os Intocáveis (1987). Era de esperar que, ao abordar a guerra do Iraque, se «inspirasse» nos filmes sobre o Vietname. Em vez disso, gastou muito do seu tempo a fazer a ver vídeos no You Tube.
O método teve efeitos impressionantes no resultado. Esqueçam o «teatro» e a «ópera» de guerra de Apocalipse Now, ou o melodrama travestido de realismo de Platoon. A guerra do Iraque de Brian De Palma assemelha-se mais a um reality show com assassínios e violações a sério. Neste filme a violência não é cool como nos filmes de Tarantino, e, muito antes dele, nos filmes de Coppola e nos grandes clássicos de filmes de gangsters ou westerns. A violência é suja, sórdida, repugnante. Como, num registo narrativo mais tradicional, noutro filme que estreou este ano e tem passado despercebido: Coeurs perdues/Corações solitários.
A temática da guerra do Iraque é partilhada com outro filme estreado há pouco tempo, fraquíssimo – Peões em Jogo. Redacted, ao mesmo tempo que rompe com a estética de violência típica de Hollywood, rejeita um dos eixos característicos do cinema «liberal» norte-americano: o herói que descobre a verdade ou denuncia a injustiça «faz a diferença». O filme expõe outra moral: numa guerra, a verdade é a primeira vítima.

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sábado, dezembro 08, 2007

Eastern Promises

Eastern Promises, o título do último filme de David Cronenberg, perde na sua tradução portuguesa, Promessas Perigosas, uma das suas conotações mais interessantes, a de uma espécie de cartografia do mal. Uma História de Violência, seria um primeiro tomo deste mapa, analisando as perversões das «promessas do Oeste», do sonho norte-americano. Eastern Promises é um filme sobre os sonhos de Leste que se transformam em pesadelo, ou sobre a Europa sonhada a Leste revelando-se um inferno clandestino.
Não percebo os fiéis de Cronenberg que vêem neste filme uma traição. Ele não só se encontra intimamente ligado à longa-metragem anterior, como dá continuidade a movimentos passados do universo do autor: Spider (2002) foi uma primeira incursão no cenário londrino; M. Butterfly (1993) abordava o tema da espionagem entre Estados, o qual em Eastern Promises é transposto para as relações entre Estados e crime organizado.
Uma das obsessões de Cronenberg – o corpo e as suas transfigurações – marca presença neste filme, numa sequência antológica da sua filmografia – o atentado na sauna. Desta vez o corpo é visto com uma ambivalência inquietante: as tatuagens são máscaras que tanto podem identificar como esconder.
Viggo Mortensen, na pele de Nicolai, volta a ser uma peça fulcral na história contada pelo realizador canadiano. É uma grande interpretação, que se distingue da de Uma História de Violência pelo processo de interiorização. As motivações da sua personagem nunca são plenamente desvendadas ao espectador, como se a sua conduta fosse explicada por uma promessa silenciada, que fará tudo para cumprir. É um filme que cintila na sala de cinema como a neve na noite escura.

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segunda-feira, dezembro 03, 2007

Don´t come knocking

Don´t come knocking voltou a juntar Wim Wenders e Sam Shepard, quase vinte anos depois do primeiro ter realizado Paris, Texas com um guião escrito pelo segundo. O risco do filme do século XXI parasitar e estragar as memórias de um dos filmes mais marcantes dos anos 80 era óbvio. Deste ponto de vista, as minhas apreensões não se concretizaram. Don´t come kocking é um filme menor e não bastam as brilhantes interpretações de Sam Shepard, Jessica Lange, Tim Roth, Eva Marie Saint, ou a direcção de fotografia por Franz Lustig para resgatá-lo dessa menoridade. Falta-lhe uma estrela como Nastassja Kinski em dias de maior esplendor; falta-lhe esse ritmo lento e voluptuoso, pontuado por silêncios, murmúrios e a música de Ry Cooder; falta-se a densidade dramática criada pelo luto de um grande amor ou a devolução de um filho a uma mãe. Falta-lhe tudo o que fez de Paris, Texas, uma peça única, imensa, completa.
Mas o tom menor de Don´t come knocking é justamente o mais adequado a contar uma história que expõe relações humanas frágeis: um sexagenário que parte à procura de um filho desconhecido e nascido de uma relação fortuita; o esboço de fraternidade entre dois estranhos; reencontros de pouca consequência. Filme de misfits, inadaptados de duas gerações, uma à beira dos trinta e outra à beira dos sessenta, que vêm uma na outra, com perturbação, um futuro imaginável ou um passado submerso. O desajustamento não vem só de percursos falhados e também de uma dificuldade de envolvimento num mundo subtilmente transformado pelas novas tecnologias e por todo o sistema mediático, de que a personagem principal, Howard Spence faz parte como estrela de westerns. A melancolia de Paris, Texas cede lugar a uma visão da distância entre as personagens e os lugares que percorrem com ecos de Antonioni e um sentido de humor com laivos de Jacques Tati.
O filme é uma estrela solitária, como o título mal achado para a versão portuguesa, e uma estrela pálida, que ainda assim merece ser vista.

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domingo, outubro 28, 2007

O caso Litvinenko


The Litvinenko Case foi um dos três filmes que mais apreciei no DocLisboa – os outros foram o pouco falado Calle Santa Fé e Elle s´apelle Sabine - e o mais estimulante do ponto de vista da reflexão. Vou cingir-me a três pontos que não vi focados nos textos que li sobre o documentário acerca do ex-agente do FSB que entrando em rota de colisão com o regime de Putin por denunciar a corrupção e o carácter criminoso do regime russo, acaba por se exilar em Londres, onde é morto por envenenamento.
O primeiro é a dimensão dostoeiveskiana da personalidade de Litvinenko, um desses homens que, mesmo nas piores circunstâncias e sob as maiores ameaças, não se resignam à injustiça e por isso justificam o projecto de uma vida humana decente, apesar de todas as misérias e defeitos da nossa espécie. Um aspecto apenas aflorado no filme é o da sua conversão religiosa do cristianismo ortodoxo ao islamismo. A partir da informação fragmentada surgiu-me a hipótese de essa conversão ser motivada pela exigência de fundamentar a moral numa fé transcendente e absoluta, dando sentido à dissidência ética no contexto da indiferença geral e de uma eminente ameaça de morte. A conversão ao islamismo é a conversão à religião do inimigo tchecheno. A sua participação na guerra levou-o a tomar consciência da corrupção no exército russo – há oficiais que vendem armas ou alugam soldados ao inimigo, há violências injustificadas, há a suspeita de que os incidentes que justificaram a guerra, os atentados a civis moscovitas em 1999 podem ter sido manipulados pelo FSB, o serviço secreto russo. E o inimigo, mais fraco do ponto de vista militar, mostra uma moral mais sólida. Litvinenko mostra como ficou impressionado ao interrogar um guerrilheiro tchecheno, de 17 anos, a quem perguntou por que é que combatia e respondeu: «Odeio esta guerra. Mas todos os colegas da minha turma combatem». E Litvinenko encontra um paralelismo entre esta situação e as histórias que ouviu da resistência russa aos alemães nazis durante a II Grande Guerra.
Outro ponto que não vi comentado é a entrevista de Andrei Nekrasov a André Gluksmann. O filósofo francês compara a complacência europeia face a Putin com a reacção europeia face a Hitler. O Führer foi o produto de uma minoria militante – os nazis – e a indiferença não só dos alemães, mas de todos os europeus. Eu penso que a comparação podia ir mais longe. A complacência europeia face à emergência do nazismo pode explicar-se em parte pela sua má consciência em relação às injustas condições impostas pelo Tratado de Versalhes ao povo alemão. O fim da Guerra Fria e o desmantelamento da URSS foi visto com uma satisfação mesquinha por europeus e norte-americanos. Muito do dinheiro canalizado para gastos militares que deixaram de fazer sentido após o fim do Bloco de Leste podia ter sido empregue na recuperação económica dos países ex-soviéticos, um pouco à semelhança do Plano Marshall para a Europa Ocidental após o fim da II Grande Guerra. Em vez disso, proclamou-se arrogantemente o «fim da História» e gozou-se o espectáculo, com alguma curiosidade mórbida, da implosão das estruturas de poder da URSS, das ascensão do crime organizado, dos delírios etílicos de Yeltsin, do embaraço russo com o afundamento do submarino Kursk. A má consciência norte-americana e europeia, combinada com o ressentimento russo em relação ao período pós-soviético, criaram um clima de condescendência face a um Putin que, atropelando liberdades fundamentais, devolvia prestígio às instituições russas e poder de compra aos cidadãos russos. Estamos agora na fase em que a condescendência é substituída pela inquietação alimentada pelo temor. Ou pela indignação impotente senão hipócrita quando vinda dos apoiantes de uma administração norte-americana com uma política externa devastadora para os direitos humanos, sem sequer ter a atenuante, como a Rússia, de um passado autocrático.
O último ponto, o mais apaixonante de um ponto de vista da ciência política e da História, é a continuidade que o documentário estabelece entre o KGB e o FSB. Entre as duas instituições dos serviços secretos a continuidade reside na ideologia nacionalista e nos métodos. Mas também sugere-se, na formação e recrutamento das elites que governam a Rússia. Putin formou-se no FSB, como Andropov no KGB. Mesmo Gorbatchov, que pretendia reformar o socialismo soviético, surge na vida pública pela mão de Andropov. Estas hipóteses, a serem verificadas e fundamentadas, desafiam radicalmente as teses marxistas que serviram de fundamento ao Estado soviético e segundo as quais as relações de produção determinam, «em última instância», as superstruturas. Pelo contrário, no contexto de uma profunda transformação económica e social, é o KGB continuando sob um novo nome, o FSB, a fomentar uma reestruturação de toda a sociedade a partir de cima. É a nomenklatura, com todos os seus pseudónimos, e as suas armas, o medo e a intimidação, que determinam, «em última instância», o que acontece na Rússia.



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quarta-feira, setembro 12, 2007

Curtas portuguesas na RTP2

A RTP2 vai passar no próximo domingo, 16 de Setembro, a partir da meia noite e meia, duas curtas-metragens de Margarida Leitão: Parte de Mim (2006) e A Ferida (2003). A realizadora nasceu em 1976 e possui um curriculum cinematográfico preenchido, como se pode ver aqui, tendo realizado estas duas obras de ficção. É possível descortinar nestes filmes linhas de continuidade temática e estética: os sofrimentos femininos, a centralidade do corpo na exposição das emoções e a impotência das palavras perante a tragédia, o silêncio, as sombras.
Antes de enveredar pela ficção, Margarida Leitão realizou Kilandukilu (1998), um documentário sobre os primeiros passos de um grupo musical africano, actualmente bem conhecido dos frequentadores do Andanças.

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terça-feira, agosto 14, 2007

«Lutas extremamente avançadas»

Torre Bela, o filme-ícone do PREC, um documentário sobre a ocupação selvagem de uma herdade de mais de mil hectares, iniciada em Abril de 1975, no Ribatejo está em exibição no King, em cópia restaurada, no verão morno de 2007. Nunca o tinha visto e aconselho a todos a experiência. Sendo o filme de um realizador empenhado, Thomas Harlan, que o dedica a Otelo Saraiva de Carvalho, resiste a qualquer apropriação ideológica, sinal que estamos, antes e além do mais, perante arte e cinema. Não por acaso o filme é citado quer por «saudosistas» quer por «detractores» da revolução. Os primeiros revêem(-se) (n)o entusiasmo revolucionário. Os segundos comprazem-se na denúncia da «irresponsabilidade», da «boçalidade» e até dos atropelos morfológicos e sintácticos dos populares.
Eu não me revejo em nenhuma destas posições. E lamento que as gerações que viveram a revolução durante a infância, ou nasceram depois dela, continuem a reproduzir os estereópitos criados, muitas vezes em auto-justificação ou auto-expiação dos intervenientes, praticando aquilo a que o bispo do Porto chamava «fazer a penitência batendo no peito dos outros».
O que eu vi no filme foi um povo ignorante, desajeitado, tosco, mas generoso, pacífico, movido antes de mais pela vontade de trabalhar para satisfazer as suas necessidades básicas, a ser duplamente atraiçoado pelos senhores locais e pelos militares revolucionários. O proprietário, Duque de Lafões, mostra-se indiferente ao ethos quer da aristocracia quer do catolicismo conservador que impõe deveres de responsabilidade perante os outros e legitima a propriedade pela sua função social. Só perante a pressão dos revolucionários é que manda algumas pessoas às aldeias vizinhas «perguntar se há problemas de desemprego no povo». Os polícias militares empurram os populares para uma ocupação ilegal condenada ao fracasso: «primeiro ocupam a terra, a lei vem depois». O resultado, que só sabemos por legenda, é a prisão dos ocupantes logo após o 25 de Novembro, no início de Dezembro de 1975.
Há várias tiradas célebres. Não costumo ver citada uma das mais surrealistas: um oficial do MFA chega de helicóptero para visitar a herdade ocupada e informar-se da situação. Um dos ocupantes diz-lhe: «estamos dispostos a trabalhar sem receber». Resposta do militar: «isso parece-me uma forma de luta extremamente avançada». É uma frase que me dá que pensar. Quer os saudosistas da revolução quer os seus detractores tendem a ver o filme como o documento de uma fase, para o bem ou para o mal, definitivamente ultrapassada. Eu recordo que vivemos num tempo em que se abusa dos estágios não remunerados. Hoje o capitalismo avançado, como ontem o socialismo revolucionário, maravilha-se com o estado de espírito de quem está disposto a trabalhar sem receber. Os portugueses continuam a ser mestres na arte da negação, em passar «de 8 a 80», em optar por viver utopias em becos sem saída ou em seguir o rebanho na estrada principal. Como dizia uma popular, «assim Portugal não s´alevanta».

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terça-feira, julho 31, 2007

O fim de uma extraordinária aventura



O dia de ontem levou dois grandes realizadores: Ingmar Bergman (1918-2007) e Michelangelo Antonioni (1912-2007). Um génio nórdico e um génio latino que fizeram da sétima arte uma forma de prestar culto às mulheres, de reflectir as crises de identidade do homem moderno, e de sondar o silêncio de Deus. Um dos filmes de Antonioni - The Passenger (1975) - esteve em reposição em Lisboa no Verão passado e sobre ele escrevi aqui.

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O que fica do que passa

Ontem morreu Ingmar Bergman (1918-2007). Assisti apenas à estreia do último dos seus filmes, Saraband, sobre o qual escrevi aqui e aqui. Vi a maior parte dos seus outros filmes em peregrinações solitárias à Cinemateca, como adolescente e jovem adulto. Pertenço a uma geração intermédia, entre as dos anos 60 e 70, que discutiu Bergman nos cineclubes e após as estreias comerciais, e as gerações do século XXI que o descobrirão em DVD. Para algumas pessoas Ingmar Bergman terá sido moda e autor de referência. O meu professor de jornalismo no 10.º e 11.º anos, avesso a todas as espécies de moda, não deixava de sublinhar as afinidades entre algumas obras do grande autor e algumas telenovelas. Ou de denunciar o snobismo pseudo-intelectual de algumas pessoas que se sentiam na obrigação de ver e de dizer que tinham visto Bergman. Era de outro mundo que nos falava. Um mundo que a minha geração nunca conheceria em que a cultura era vista mais como uma variação do sagrado do que uma opção de consumo; uma via para obter status mais prestigiada do que a do dinheiro; um assunto mais sério do que a escolha do lugar onde passar férias. Para mim, Bergman era contra-cultura pura e dura, no contexto da geração yuppie que era o meu. Era também já o que continua a ser e será, um expoente do cinema e da arte.
Muitos dos blockbusters dos anos 80 e 90 já estão esquecidos. Mas Bergman hoje enche as primeiras páginas dos jornais de todo o mundo e continuará, enquanto houver espécie humana, presente nos museus de Cinema, nas colecções privadas de DVD´s ou em qualquer outro suporte por inventar. Aquilo que aproximava o grande cineasta da arte menor da televisão - os ambientes intimistas e familiares, os grandes planos dos rostos - poderá ser um dos seus trunfos numa era em que o cinema aposta no espectáculo fácil, ou se enreda na auto-citação, ao mesmo tempo que algumas séries televisivas apostam na qualidade dos guiões, tornando-se objecto de culto de um público exigente. Bergman ficará porque conseguiu revelar o essencial da condição humana usando a matéria-prima mais frágil: o rosto.

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quinta-feira, julho 26, 2007

O amante de Lady Chatterley



Num mês de filmes fraquinhos em cartaz, O Amante de Lady Chatterley, de Pascale Ferran, destaca-se. É dos melhores filmes que se podem ver neste momento em Lisboa, embora não mereça o pedestal em que o colocou a crítica, embalada pelos prémios atribuídos à película em França. A actriz Marina Hands é razão mais do que suficiente para ver o filme. Apesar do seu charme muito francês destoar na personagem muito britânica de Connie. Mas essa é uma crítica que se podia estender à obra no seu todo. É esquisito ouvir personagens inglesas, num ambiente muito inglês, a falar francês. Alguém consegue imaginar o que seria uma adaptação do mesmo género em português, com ladies e um sir a falar com pronúncia do Porto? O que agradou muito aos críticos foi a realizadora ter enveredado por uma via especificamente cinematográfica na adaptação de um romance. Ela dá-nos o que um texto não nos pode dar: a visão dos corpos, dos rostos, dos gestos que preenchem pausas, silêncios. No final, fica-nos a impressão de que o filme é longo demais para a história que conta.
Depois de ver o filme li o romance e a versão de Pascale Ferran desceu alguns pontos na minha escala. É claro que o livro possui uma envergadura que obriga uma transposição cinematográfica a fazer selecções. D.H. Lawrence critica toda uma geração pós-I Grande Guerra, a sociedade industrial, os costumes, a mentalidade e a cultura dominante. A obra tem um fôlego ao nível de alguns títulos de grossas lombadas de Thomas Mann. Ferran optou por concentrar-se na história de amor, na construção de intimidade num casal, mas fê-lo de forma redutora.
A própria caracterização física de Oliver Mellors contrasta com a do actor escolhido por Pascale Ferran: o couteiro é um homem magro, de mãos pequenas. Ao contrário do que sugere o filme, ele não passou directamente de uma família de mineiros para o trabalho de couteiro. Foi um excelente aluno de liceu. Durante a Grande Guerra serviu na Índia como oficial, no posto de tenente e privando com um coronel. Teve oportunidades de «subir na vida», mas não as quis aproveitar. Prefere é o trabalho solitário de couteiro a um trabalho com exigências sociais mais pesadas. Connie teve um namorado antes do marido, Clifford, e um amante antes de Oliver. Clifford não é apenas um proprietário e dono de minas, mas também um literato, admirador de Proust, com obra publicada e, dentro de certos limites, reconhecida. A senhora Bolton, que cuida de Clifford, mantém com este uma complexa relação de amor-ódio e torna-se cúmplice de Connie. Os exemplos de simplificação da complexidade das personagens e das relações que estabelecem entre si podiam multiplicar-se.
O filme francês parece glosar uma variante do mito da «Bela e o Monstro» que é «a bela delicada e o homem bruto de bons sentimentos». A nota crítica que hoje sai no Público ecoa este ponto de vista ao ver na narrativa «uma domesticação difícil».
D. H. Lawrence ter-se-ia arrepiado com a visão do seu Oliver Mellors como homem em vias de domesticação. Pelo contrário, a força da personagem está na sua resistência à domesticação. Ele recusa a negação do corpo e da natureza sexual de cada um pela «espiritualidade» e «racionalidade» dominantes. Não para, à maneira de alguns surrealistas, proclamar que nos instintos se encontra a única verdade e o único valor, mas para afirmar, juntamente com o valor do corpo e do sexo, uma outra espiritualidade e uma outra racionalidade.

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quarta-feira, julho 25, 2007

A Bela Calada

O último filme de Manoel Oliveira retoma algumas personagens de «Belle de Jour» de Buñuel e pretende homenagear o realizador espanhol. O resultado é um filme palavroso, sem que o francês de Oliveira tenha o mesmo vigor do português de Agustina. As melhores sequências são alguns raros momentos em que as personagens não falam, apenas agem. Quase a completar cem anos de idade, Oliveira já domina a técnica do cinema mudo. Dêem-lhe mais cinquenta anos e torna-se um mestre do cinema sonoro.

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sábado, junho 16, 2007

Olivares e Alatriste

O filme do Capitão Alatriste pouco acrescenta e muito retira às aventuras narradas em livro. Só li o primeiro volume dos seis já publicados. Das páginas para a película perde-se um dos trunfos narrativos de Pérez-Reverte, a capacidade de criar suspense, agarrando o leitor. Além de eliminar acontecimentos, o guionista alterou, não se percebe porquê, algumas peripécias fundamentais para compreender a relação entre as personagens. Por exemplo, logo no primeiro livro, o adolescente Iñigo Balboa salva a vida do seu mentor, Diego Alatriste.
A condensação da história reduz a espessura das personagens, que tendem a ser pálidos reflexos das figuras em papel, criando dificuldades aos actores. O inquisidor Emílio Bocanegra, tão marcante na primeira «aventura», quase se esvai na tela. O Conde Duque de Olivares goza da sorte contrária, graças ao desempenho de Javier Cámara. Quem o viu a fazer de enfermeiro em Hable com ella pode apreciar aqui um raro talento de metamorfose. Javier Câmara faz muito de muito pouco, encarnando uma figura que, desde cedo e desde os compêndios de História, desafiou a minha imaginação. É interessante ver como é que os espanhóis vêem e representam talvez o símbolo maior da «tirania» filipina sobre Portugal. Vigo Mortensen, no papel do desenvolto «capitão», parece-me um erro de casting. Em primeiro lugar, porque o seu típico físico está muito mais próximo dos «holandeses heréticos» do que de um aventureiro espanhol. Em segundo, porque o seu registo de underacting é pouco credível naquele contexto. Parece um lonesome cowboy de capa e espada.
Troquei algumas impressões sobre o filme com um amigo espanhol especialista em História Moderna. Ele detesta Reverte, Alatriste e aquele retrato do século XVII que «parece saído das páginas da Hola.» Não sou tão severo. Apesar da série de Alatriste ser usada em Espanha como material didáctico para o ensino de História, o que é discutível, terá de ser julgada mais como obra literária do que como livro de História. É uma ficção que envereda por um caminho pouco trilhado, confluência da recuperação do romance de aventuras com o jornalismo temperado em ambiente de guerra. O primeiro filão deverá ter beneficiado da caução intelectual de Fernando Savater em «A Infância Recuperada». O segundo foi explorado pelo próprio Arturo Pérez-Reverte como repórter de guerra.
Talvez a personagem de Alatriste seja maior do que o filme e os livros por causa da relação que mantém com esse arquétipo literário espanhol que é D. Quixote. Aparentemente, é o oposto. Alatriste nunca combate moinhos de vento, mas pessoas de carne e osso e muitas vezes levado pela dura necessidade do vil metal. Mas este sobrevivente testado no sangue e lama da Flandres também é capaz de se arriscar por um inato sentido da dignidade humana, amizade, amor, lealdade ou galhardia.

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segunda-feira, maio 28, 2007

Cenas de Natureza Sexual

Descobri Cenas de Natureza Sexual apenas porque o filme estava em exibição próximo de minha casa. Ainda bem que às vezes vou ao cinema só como um pretexto para desentorpecer as pernas. Esta primeira obra de Edward Blum parece ter passado despercebida à crítica portuguesa. Mas é refrescante face à avalanche de blockbusters de Hollywood e à pesada artilharia do cinema europeu de pretensões intelectuais.
É uma comédia dramática de baixo orçamento. Em apenas seis semanas escreveu-se o guião, arranjaram-se os capitais e os actores, alguns grandes vedetas que trocaram um salário chorudo por uma percentagem nas receitas. Toda a acção se passa numa tarde, num parque de Londres, o Hampstead Heath. Sete casais encontram-se, reencontram-se, discutem, reconciliam-se ou nem por isso. As forças que os separam são, regra geral, mais fortes do que aquelas que os unem. Isto do ponto de vista deles, porque para o espectador todas as histórias parecem ligadas por fios invisíveis e o parque ou o sol também podem ser encarados como personagens puxando os fios ou entretendo-se com as reacções dos seres humanos.
O resultado é um filme leve sem ligeireza, minimalista sem abstracções, servido por excelentes diálogos, cujas deixas aproveitam quer a grandes actores, quer ao espectador para compreender outras histórias do mesmo mosaico. O célebre humor britânico é aqui manejado em todas as suas gradações, desde a mais subtil ironia até ao mais feroz sarcasmo.

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