«Lutas extremamente avançadas»
Eu não me revejo em nenhuma destas posições. E lamento que as gerações que viveram a revolução durante a infância, ou nasceram depois dela, continuem a reproduzir os estereópitos criados, muitas vezes em auto-justificação ou auto-expiação dos intervenientes, praticando aquilo a que o bispo do Porto chamava «fazer a penitência batendo no peito dos outros».
O que eu vi no filme foi um povo ignorante, desajeitado, tosco, mas generoso, pacífico, movido antes de mais pela vontade de trabalhar para satisfazer as suas necessidades básicas, a ser duplamente atraiçoado pelos senhores locais e pelos militares revolucionários. O proprietário, Duque de Lafões, mostra-se indiferente ao ethos quer da aristocracia quer do catolicismo conservador que impõe deveres de responsabilidade perante os outros e legitima a propriedade pela sua função social. Só perante a pressão dos revolucionários é que manda algumas pessoas às aldeias vizinhas «perguntar se há problemas de desemprego no povo». Os polícias militares empurram os populares para uma ocupação ilegal condenada ao fracasso: «primeiro ocupam a terra, a lei vem depois». O resultado, que só sabemos por legenda, é a prisão dos ocupantes logo após o 25 de Novembro, no início de Dezembro de 1975.
Há várias tiradas célebres. Não costumo ver citada uma das mais surrealistas: um oficial do MFA chega de helicóptero para visitar a herdade ocupada e informar-se da situação. Um dos ocupantes diz-lhe: «estamos dispostos a trabalhar sem receber». Resposta do militar: «isso parece-me uma forma de luta extremamente avançada». É uma frase que me dá que pensar. Quer os saudosistas da revolução quer os seus detractores tendem a ver o filme como o documento de uma fase, para o bem ou para o mal, definitivamente ultrapassada. Eu recordo que vivemos num tempo em que se abusa dos estágios não remunerados. Hoje o capitalismo avançado, como ontem o socialismo revolucionário, maravilha-se com o estado de espírito de quem está disposto a trabalhar sem receber. Os portugueses continuam a ser mestres na arte da negação, em passar «de 8 a 80», em optar por viver utopias em becos sem saída ou em seguir o rebanho na estrada principal. Como dizia uma popular, «assim Portugal não s´alevanta».
Etiquetas: filmes, PREC, Torre Bela
1 Comments:
Concordo com muito do que aqui dizes. Mas apenas um comentário: na tua crítica à radicalidade do "8 ou 80" dos modelos de sociedade ("capitialista" ou socialista), não te esqueças que Portugal foi sempre uma pátria de meios termos e terceiras vias. O próprio Estado Novo, o regime que terminou com o "povo" naquela "ignorância" que referes, foi um edifício de "terceira via", que pretendia prevenir tanto os males do "capitalismo" quanto os do socialismo. Ou seja, a realidade é ainda mais complicada...
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