sábado, junho 16, 2007

Olivares e Alatriste

O filme do Capitão Alatriste pouco acrescenta e muito retira às aventuras narradas em livro. Só li o primeiro volume dos seis já publicados. Das páginas para a película perde-se um dos trunfos narrativos de Pérez-Reverte, a capacidade de criar suspense, agarrando o leitor. Além de eliminar acontecimentos, o guionista alterou, não se percebe porquê, algumas peripécias fundamentais para compreender a relação entre as personagens. Por exemplo, logo no primeiro livro, o adolescente Iñigo Balboa salva a vida do seu mentor, Diego Alatriste.
A condensação da história reduz a espessura das personagens, que tendem a ser pálidos reflexos das figuras em papel, criando dificuldades aos actores. O inquisidor Emílio Bocanegra, tão marcante na primeira «aventura», quase se esvai na tela. O Conde Duque de Olivares goza da sorte contrária, graças ao desempenho de Javier Cámara. Quem o viu a fazer de enfermeiro em Hable com ella pode apreciar aqui um raro talento de metamorfose. Javier Câmara faz muito de muito pouco, encarnando uma figura que, desde cedo e desde os compêndios de História, desafiou a minha imaginação. É interessante ver como é que os espanhóis vêem e representam talvez o símbolo maior da «tirania» filipina sobre Portugal. Vigo Mortensen, no papel do desenvolto «capitão», parece-me um erro de casting. Em primeiro lugar, porque o seu típico físico está muito mais próximo dos «holandeses heréticos» do que de um aventureiro espanhol. Em segundo, porque o seu registo de underacting é pouco credível naquele contexto. Parece um lonesome cowboy de capa e espada.
Troquei algumas impressões sobre o filme com um amigo espanhol especialista em História Moderna. Ele detesta Reverte, Alatriste e aquele retrato do século XVII que «parece saído das páginas da Hola.» Não sou tão severo. Apesar da série de Alatriste ser usada em Espanha como material didáctico para o ensino de História, o que é discutível, terá de ser julgada mais como obra literária do que como livro de História. É uma ficção que envereda por um caminho pouco trilhado, confluência da recuperação do romance de aventuras com o jornalismo temperado em ambiente de guerra. O primeiro filão deverá ter beneficiado da caução intelectual de Fernando Savater em «A Infância Recuperada». O segundo foi explorado pelo próprio Arturo Pérez-Reverte como repórter de guerra.
Talvez a personagem de Alatriste seja maior do que o filme e os livros por causa da relação que mantém com esse arquétipo literário espanhol que é D. Quixote. Aparentemente, é o oposto. Alatriste nunca combate moinhos de vento, mas pessoas de carne e osso e muitas vezes levado pela dura necessidade do vil metal. Mas este sobrevivente testado no sangue e lama da Flandres também é capaz de se arriscar por um inato sentido da dignidade humana, amizade, amor, lealdade ou galhardia.

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