sexta-feira, julho 27, 2007

D. H. Lawrence



«Connie dirigiu-se lentamente para Wragby. Para "casa"! Casa era uma palavra calorosa para aquela enorme barraca triste. Outrora tivera significado, mas perdera-se. Todas as palavras grandiosas tinham perdido o significado para a geração de Connie: amor, alegria, felicidade, casa, mãe, pai, marido – numa agonia prolongada. A casa era o lugar onde se vivia, o amor uma coisa sobre que não havia ilusões, alegria a palavra que se aplicava a um bom charleston, felicidade o termo hipócrita para enganar os outros, o pai um indivíduo que gostava da vida, o marido aquele com quem se vivia e compartilhava o bom humor. O sexo, a última das palavras grandiosas, não passava de um termo de cocktail para traduzir uma excitação que animava por uns escassos momentos, mas que depois deixava a pessoa mais desprotegida do que nunca. Um desgaste como se as pessoas fossem feitas de matéria de má qualidade que se ia desfazendo até ficar em nada.
Tudo o que realmente subsistiu foi um estoicismo obstinado, de que era possível extrair prazer. A própria experiência do vazio da vida, fase por fase, etapa por etapa, trazia uma forma tristonha de satisfação. É assim! – era sempre a última palavra: casa, amor, casamento, Michaelis: é assim! E à hora da morte as últimas palavras seriam: é assim!
E o dinheiro? Com o dinheiro não se pode dizer o mesmo, as pessoas sempre quiseram o dinheiro. O dinheiro, o êxito, a deusa-cadela – como Tommy Dukes dizia sempre parafraseando Henry James -, eram uma necessidade permanente. Não se pode gastar o último tostão e depois dizer: é assim! Não, porque é preciso dinheiro para isto ou para aquilo, mesmo que seja para mais dez minutos de vida. Num desenrolar mecânico, para tudo é preciso dinheiro. É preciso tê-lo, tem de se ter dinheiro. Nada mais interessa. É assim

D. H. Lawrence, O Amante de Lady Chaterley, Porto, Publicações Europa-América, 2002, pág. 72

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quinta-feira, julho 26, 2007

O amante de Lady Chatterley



Num mês de filmes fraquinhos em cartaz, O Amante de Lady Chatterley, de Pascale Ferran, destaca-se. É dos melhores filmes que se podem ver neste momento em Lisboa, embora não mereça o pedestal em que o colocou a crítica, embalada pelos prémios atribuídos à película em França. A actriz Marina Hands é razão mais do que suficiente para ver o filme. Apesar do seu charme muito francês destoar na personagem muito britânica de Connie. Mas essa é uma crítica que se podia estender à obra no seu todo. É esquisito ouvir personagens inglesas, num ambiente muito inglês, a falar francês. Alguém consegue imaginar o que seria uma adaptação do mesmo género em português, com ladies e um sir a falar com pronúncia do Porto? O que agradou muito aos críticos foi a realizadora ter enveredado por uma via especificamente cinematográfica na adaptação de um romance. Ela dá-nos o que um texto não nos pode dar: a visão dos corpos, dos rostos, dos gestos que preenchem pausas, silêncios. No final, fica-nos a impressão de que o filme é longo demais para a história que conta.
Depois de ver o filme li o romance e a versão de Pascale Ferran desceu alguns pontos na minha escala. É claro que o livro possui uma envergadura que obriga uma transposição cinematográfica a fazer selecções. D.H. Lawrence critica toda uma geração pós-I Grande Guerra, a sociedade industrial, os costumes, a mentalidade e a cultura dominante. A obra tem um fôlego ao nível de alguns títulos de grossas lombadas de Thomas Mann. Ferran optou por concentrar-se na história de amor, na construção de intimidade num casal, mas fê-lo de forma redutora.
A própria caracterização física de Oliver Mellors contrasta com a do actor escolhido por Pascale Ferran: o couteiro é um homem magro, de mãos pequenas. Ao contrário do que sugere o filme, ele não passou directamente de uma família de mineiros para o trabalho de couteiro. Foi um excelente aluno de liceu. Durante a Grande Guerra serviu na Índia como oficial, no posto de tenente e privando com um coronel. Teve oportunidades de «subir na vida», mas não as quis aproveitar. Prefere é o trabalho solitário de couteiro a um trabalho com exigências sociais mais pesadas. Connie teve um namorado antes do marido, Clifford, e um amante antes de Oliver. Clifford não é apenas um proprietário e dono de minas, mas também um literato, admirador de Proust, com obra publicada e, dentro de certos limites, reconhecida. A senhora Bolton, que cuida de Clifford, mantém com este uma complexa relação de amor-ódio e torna-se cúmplice de Connie. Os exemplos de simplificação da complexidade das personagens e das relações que estabelecem entre si podiam multiplicar-se.
O filme francês parece glosar uma variante do mito da «Bela e o Monstro» que é «a bela delicada e o homem bruto de bons sentimentos». A nota crítica que hoje sai no Público ecoa este ponto de vista ao ver na narrativa «uma domesticação difícil».
D. H. Lawrence ter-se-ia arrepiado com a visão do seu Oliver Mellors como homem em vias de domesticação. Pelo contrário, a força da personagem está na sua resistência à domesticação. Ele recusa a negação do corpo e da natureza sexual de cada um pela «espiritualidade» e «racionalidade» dominantes. Não para, à maneira de alguns surrealistas, proclamar que nos instintos se encontra a única verdade e o único valor, mas para afirmar, juntamente com o valor do corpo e do sexo, uma outra espiritualidade e uma outra racionalidade.

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