domingo, outubro 28, 2007

O caso Litvinenko


The Litvinenko Case foi um dos três filmes que mais apreciei no DocLisboa – os outros foram o pouco falado Calle Santa Fé e Elle s´apelle Sabine - e o mais estimulante do ponto de vista da reflexão. Vou cingir-me a três pontos que não vi focados nos textos que li sobre o documentário acerca do ex-agente do FSB que entrando em rota de colisão com o regime de Putin por denunciar a corrupção e o carácter criminoso do regime russo, acaba por se exilar em Londres, onde é morto por envenenamento.
O primeiro é a dimensão dostoeiveskiana da personalidade de Litvinenko, um desses homens que, mesmo nas piores circunstâncias e sob as maiores ameaças, não se resignam à injustiça e por isso justificam o projecto de uma vida humana decente, apesar de todas as misérias e defeitos da nossa espécie. Um aspecto apenas aflorado no filme é o da sua conversão religiosa do cristianismo ortodoxo ao islamismo. A partir da informação fragmentada surgiu-me a hipótese de essa conversão ser motivada pela exigência de fundamentar a moral numa fé transcendente e absoluta, dando sentido à dissidência ética no contexto da indiferença geral e de uma eminente ameaça de morte. A conversão ao islamismo é a conversão à religião do inimigo tchecheno. A sua participação na guerra levou-o a tomar consciência da corrupção no exército russo – há oficiais que vendem armas ou alugam soldados ao inimigo, há violências injustificadas, há a suspeita de que os incidentes que justificaram a guerra, os atentados a civis moscovitas em 1999 podem ter sido manipulados pelo FSB, o serviço secreto russo. E o inimigo, mais fraco do ponto de vista militar, mostra uma moral mais sólida. Litvinenko mostra como ficou impressionado ao interrogar um guerrilheiro tchecheno, de 17 anos, a quem perguntou por que é que combatia e respondeu: «Odeio esta guerra. Mas todos os colegas da minha turma combatem». E Litvinenko encontra um paralelismo entre esta situação e as histórias que ouviu da resistência russa aos alemães nazis durante a II Grande Guerra.
Outro ponto que não vi comentado é a entrevista de Andrei Nekrasov a André Gluksmann. O filósofo francês compara a complacência europeia face a Putin com a reacção europeia face a Hitler. O Führer foi o produto de uma minoria militante – os nazis – e a indiferença não só dos alemães, mas de todos os europeus. Eu penso que a comparação podia ir mais longe. A complacência europeia face à emergência do nazismo pode explicar-se em parte pela sua má consciência em relação às injustas condições impostas pelo Tratado de Versalhes ao povo alemão. O fim da Guerra Fria e o desmantelamento da URSS foi visto com uma satisfação mesquinha por europeus e norte-americanos. Muito do dinheiro canalizado para gastos militares que deixaram de fazer sentido após o fim do Bloco de Leste podia ter sido empregue na recuperação económica dos países ex-soviéticos, um pouco à semelhança do Plano Marshall para a Europa Ocidental após o fim da II Grande Guerra. Em vez disso, proclamou-se arrogantemente o «fim da História» e gozou-se o espectáculo, com alguma curiosidade mórbida, da implosão das estruturas de poder da URSS, das ascensão do crime organizado, dos delírios etílicos de Yeltsin, do embaraço russo com o afundamento do submarino Kursk. A má consciência norte-americana e europeia, combinada com o ressentimento russo em relação ao período pós-soviético, criaram um clima de condescendência face a um Putin que, atropelando liberdades fundamentais, devolvia prestígio às instituições russas e poder de compra aos cidadãos russos. Estamos agora na fase em que a condescendência é substituída pela inquietação alimentada pelo temor. Ou pela indignação impotente senão hipócrita quando vinda dos apoiantes de uma administração norte-americana com uma política externa devastadora para os direitos humanos, sem sequer ter a atenuante, como a Rússia, de um passado autocrático.
O último ponto, o mais apaixonante de um ponto de vista da ciência política e da História, é a continuidade que o documentário estabelece entre o KGB e o FSB. Entre as duas instituições dos serviços secretos a continuidade reside na ideologia nacionalista e nos métodos. Mas também sugere-se, na formação e recrutamento das elites que governam a Rússia. Putin formou-se no FSB, como Andropov no KGB. Mesmo Gorbatchov, que pretendia reformar o socialismo soviético, surge na vida pública pela mão de Andropov. Estas hipóteses, a serem verificadas e fundamentadas, desafiam radicalmente as teses marxistas que serviram de fundamento ao Estado soviético e segundo as quais as relações de produção determinam, «em última instância», as superstruturas. Pelo contrário, no contexto de uma profunda transformação económica e social, é o KGB continuando sob um novo nome, o FSB, a fomentar uma reestruturação de toda a sociedade a partir de cima. É a nomenklatura, com todos os seus pseudónimos, e as suas armas, o medo e a intimidação, que determinam, «em última instância», o que acontece na Rússia.



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1 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

No país do burro Está um bom filme sobre Litvinenko. Não sei se é o mesmo do doc porque não vi,

8:12 da manhã  

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