A historian must not hesitate if his books lend aid and comfort to the Queen's enemies [...] or even the common enemies of mankind. For my part I would even record facts which told in favour of the British government if I had find any to record (goak again).
AJP Taylor, The Origins of the Second World War. (London : Penguin, 1991 [1963]).*
O livro do Manuel Loff que resultou
nesta entrevista ao DN que o Carlos Leone me desafiou a comentar terá certamente (até pelo tamanho) alguns pontos de valor. Na entrevista ao DN, no entanto, Loff cai numa série de equívocos que se podem resumir no tipo de abordagem nacionalista ou progressista à história que Taylor critica.
O primeiro equívoco de Loff é o de que o historiador não deve branquear o regime fascista de Salazar. Ora, essa não é uma questão que se deva sequer colocar.
Se o conceito de fascismo é para ser usado como insulto político então, nesse sentido pejorativo, não tem lugar na história. Se é para ter alguma utilidade analítico, então os historiadores, politólogos, e cientistas sociais vários, devem ter toda a liberdade para discutir que sentido dão ao conceito de fascismo, e se é operacional a sua aplicação ao regime de Salazar (no todo ou em parte).
Loff cita na entrevista autores que são activistas políticos (e não historiadores) e que dizem que Salazar não é fascista, mas não para o branquear ou absolver (como o próprio Loff diz adiante) e sim para criticar Salazar. Ou seja, consideram que Salazar devia ser/ter sido fascista! Portanto, não vejo o que esta referência adiante ao argumento.
Salazar é, aparentemente, um fascista que nunca (como Loff acaba por deixar claro) afirmou sê-lo. Um fascista que não só prende fascistas, mas, sobretudo, acaba com o partido fascista (Nacional-Sindicalista) que existia em Portugal. É, no mínimo, um fascista problemático. Mas aparentemente não se pode problematizar. Não se pode chegar a outra conclusão que não seja que Salazar é fascista, se não branqueamos o ditador!
Finalmente, Loff refere como umas das grandes provas esquecidas de que Salazar era mesmo fascista um ofício de 1941 do Conde de Tovar (representante diplomático portugês na Berlim de Hitler), que a dada altura afirma que não há dois regimes mais semelhantes na Europa do que o Estado Novo e o III Reich!
Esta "prova" parece-me, pelo contrário, evidência dos problemas que a que este tipo de lógica de branqueamento e anti-branqueamento leva: a do historiador transformado em advogado de acusação, a quem apenas interessa arranjar declarações incriminatórias. Tovar diz isso? E então? Isso só mostra que trabalhava para aproximar Portugal e a Alemanha. Pode um historiador simplesmente tomar à letra um tal ofício, quando ele é tão manifestamente falso? Algum historiador pode afirmar seriamente que o Estado Novo era, em 1941, o regime mais próximo que havia na Europa ao III Reich?
Mais uma vez a implicação da entrevista de Manuel Loff parece ser que quem se atreva a levantar estas pequenas questões está a branquear o Estado Novo.
Toda esta discussão me parece deslocada. Não creio que haja algum historiador do Estado Novo que rejeite a ideia de que Salazar foi um ditador, fundador e líder de um regime autoritário e repressivo. Está-se a criar uma falsa questão.
Até admito que haja aqui boas intenções. No entanto, a ser assim, elas confundem duas coisas fundamentalmente distintas. O trabalho político de formação de cidadãos, que incluirá uma certa memória valorativa do passado, selectiva e até militante. E o trabalho da história, que no campo da memória deve apenas preocupar-se com a divulgação científica de qualidade.
O contributo da história para a democracia – e apenas por arrastamento feliz - será o de formar pessoas com uma boa consciência crítica, bem informados, habituados a conviver com a complexidade. A história não deve estar ao serviço de nada, nem de ninguém, nem sequer das boas causas (isso fica para a doutrinação ou a hagiografia ou a propaganda, todas elas perfeitamente legítimas no seu campo.) O historiador não deve branquear, nem escurecer.
* Claro que o próprio Taylor pode ser criticado por ter violado princípios do rigor crítico em nome de teses preconcebidas e de frases bem esgalhadas (nomeadamente no próprio Origins). Mas essas são críticas justificadas: a par de análise arrojadas Taylor embarca em contradições insanáveis e omissões inexplicáveis. As críticas que lhe foram feitas e a que ele aqui responde - de querer branquear Hitler -, essas não faziam nenhum sentido. (Aliás, é sempre mais fácil dar um bom conselho do que segui-lo.)
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