domingo, maio 11, 2008

Doutrina sobre a laicidade

«A fé cristã – seguindo o caminho aberto por Jesus – baniu a ideia da teocracia política. Dito em termos modernos, ela promoveu a laicidade do Estado, em que muitos cristãos convivem em liberdade com aqueles que têm outras convicções, unidos pela comum responsabilidade moral fundada na natureza humana, sobre a natureza da justiça. (…) o Estado laico é resultado da opção cristã original, embora tenha precisado de longos esforços para se compreenderem todas as suas consequências. Pela sua natureza, este carácter secular, “laico”, do Estado inclui aquele equilíbrio entre razão e religião que, antes, procurei ilustrar. Aliás, ele opõe-se ao laicismo como ideologia que, por assim dizer, gostaria de edificar um Estado da razão pura, separado de toda a raiz histórica e que, portanto, só poderá reconhecer os fundamentos morais evidentes para toda a razão. E de tal maneira que, no fim, só lhe resta o critério positivista do princípio maioritário, cuja consequência é o declínio de um direito governado pela estatística. Se os Estados do Ocidente percorressem esta única via, a longo prazo, não poderiam resistir à pressão exercida pelas ideologias e pelas teocracias políticas. Um Estado laico pode e, até, deve apoiar-se nas raízes morais inspiradoras que o constituíram; pode e deve reconhecer os valores fundamentais sem os quais não teria nascido nem poderia sobreviver. Não pode existir um estado da razão abstracta e a-histórica.»
Joseph Ratzinger, Europa. Os seus fundamentos hoje e amanhã, Apelação, Paulus Editora, 2005, p. 108-109

«A neutralidade ideológica do poder do Estado que garante idênticas liberdades éticas a todos os cidadãos, é incompatível com a generalização política de uma mundividência laica. Os cidadãos laicos, na assunção do seu papel de membros da sociedade, não devem negar liminarmente o potencial de verdade das concepções religiosas do mundo, nem tão pouco contestar o direito dos seus concidadãos crentes a intervir, numa perspectiva religiosa, em discussões públicas. Uma cultura política liberal pode, inclusivamente, esperar que os seus cidadãos laicos colaborem no esforço de traduzir contributos relevantes da área religiosa numa linguagem que seja acessível a todos.»
Jürgen Habermas, «Diálogo de Jürgen Habermas e Cardeal Joseph Ratzinger em torno dos fundamentos morais pré-políticos do Estado constitucional», in Estudos. Revista do Centro Académico de Democracia Cristã, Coimbra, Nova Série N.º 3 – Tomo I, Dezembro 2004, p. 55.

«VI – A separação das Igrejas e comunidades religiosas do Estado – ou seja, a independência recíproca entre elas – aparece, simultaneamente, como exigência de liberdade de religião e como corolário da laicidade do Estado moderno.
(…)
VII – Laicidade e separação não equivalem, contudo, a laicismo ou a irrelevância, menosprezo ou desconhecimento da religião.
Uma coisa é o Estado, enquanto tal, não assumir fins religiosos, não professar nenhuma religião, nem submeter qualquer Igreja a um regime administrativo; outra coisa seria o Estado ignorar as vivências religiosas que se encontram na sociedade ou a função social que, para além delas, as confissões exercem nos campos do ensino, da solidariedade social ou da inclusão comunitária.»
Jorge Miranda; Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, Tomo I, Coimbra Editora, 2005, p. 448.

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sábado, maio 03, 2008

A teima do Estado laico

Regressado a Portugal após uma semana fora, tento pôr em dia as leituras de periódicos, aproveito para arrumar velhos jornais deixados «à solta», dou uma vista de olhos em O Amigo do Povo e deparo com este poste do Bruno Cardoso Reis a propósito de uma discussão em torno do Estado Laico em Portugal. Algo não bate certo. É que o Bruno considera que «Estado Laico» é a expressão favorita de puristas dos modelos francês, turco e mexicano. Mas eu tropeço em defesas do «Estado Laico» em notícias e artigos de opinião de figuras religiosas portuguesas. Vejamos de perto uma amostra colhida ao acaso de O Público: Esther Mucznik, judia praticante, escreveu em 24 de Abril: «É por isso também de salientar o facto deste memorial hoje inaugurado [às vítimas do massacre de judeus/cristãos novos de 1506], produto da colaboração de duas entidades religiosas, se encontrar em espaço público e com o apoio e contributo da Câmara Municipal de Lisboa, entidade oficial do Estado laico, que assim entendeu que a Lisboa de hoje, para além da sua diversidade cultural e étnica, é também um espaço de liberdade religiosa onde a livre expressão das confissões religiosas em nada contraria o carácter laico da autarquiaFaranaz Keshavjee, uma islâmica investigadora e colunista, escreveu em 27 de Abril: «Considero a laicidade, ou a separação entre Estado e Igreja, um passo importante e “irrenunciável”». E a 1 de Maio é publicada uma pequena notícia afirmando que Bento XVI elogiou a «sã laicidade dos Estados Unidos». Bem sei que a tradição de laicidade norte-americana é diferente da tradição da Europa continental, mas a declaração mostra que o Papa não tem engulhos com a palavra.
É certo que «um Estado laico não é a única via para a liberdade», mas é uma via possível, bem mais praticável em Portugal do que a do Reino Unido em que a Rainha de Inglaterra é simultaneamente chefe do Estado e da Igreja Anglicana. Resta saber se as relações Estado-Igrejas não mudarão na Grã-Bretanha se se mantiver a tendência de diminuição da prática anglicana associada ao crescimento da confissão católica e no caso dessa instituição tão peculiar que é a monarquia britânica entrar em colapso…Também é verdade que a caracterização do Estado português como laico é mais uma interpretação do que está implícito no texto constitucional do que uma fidelidade à letra. Não vejo qual é a vantagem em anatemizar essa interpretação, quando ela é adoptada e usada por representantes de minorias religiosas em Portugal.

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segunda-feira, abril 28, 2008

Da não Unicidade Laical


Este poste é (ainda) menos de resposta ao meu caro amigo João Almeida do que o anterior. Mas queria deixar claro que quando me referia a unicidade laical estava a fazê-lo, não por via do texto dele, mas sim apontando para uma tendência dominante quando se fala de Estado Laico em Portugal para o definir em termos restritivos de um modelo único e à francesa, justificando medidas que considero restritivas da liberdade religiosa, quando não simplesmente e ridiculamente insensatas.

Essa tendência mais uma vez aflora nos comentários feitos a estes postes em que surgem livres pensadores a defender que os católicos (porque as outras minorias não interessam) podem fazer o que quiserem desde que não os chateiem, nem procurem influenciar o Estado. É uma noção muito vulgarizada mas curta do que seja uma sociedade livre. Numa sociedade plural e num Estado liberal, "os católicos" ou "os outra coisa qualquer" podem defender as ideias que entenderem pelas razões que entenderem - religiosas ou outras - e naturalmente procuram influenciar o Estado, como outro grupo qualquer, no sentido que entendem mais conveniente para o conjunto da sociedade. Isto, claro, independentemente de se concordar, em concreto, com essas ideias ou com o que é pedido ao Estado. Uma nova constituição para cada português talvez resolvesse estre problema, mas parece-me uma ideia um pouco utópica.
A tendência de unicidade laical vem de par com a propensão para fazer de quem se atreva a questionar o sacrossanto princípio do Estado Laico - seja lá de que forma atabalhoada isso se define - como um perigoso clerical, inimigo do povo, e indigno do convívio de pessoas civilizadas. Até já houve blogues feridos por causa desse obscurantismo e fanatismo iluminado anti-católico que não admite contradição.
Ora, no meu entendimento, o direito de influenciar o Estado e de participar no debate público e político é inseparável das liberdades de crença, expressão, e organização. Claro que tal coloca problemas de conciliação de liberdade indidividual e livre organização colectiva, mas que são os problemas típicos de uma democracia liberal. Aliás, surgem bem mais conflitos de direitos nos Estados oficialmente laicos do que nos Estados não-confessionais que são a regra na Europa, ou mesmo nos Estados confessionais que por aqui ainda restam.

Tentar redefinir o Estado laico parece-me uma luta perdida e desnecessária. Embora, repito, seja claro que há realmente vários entendimentos de Estado Laico - desde o do nosso Arcebispo Primaz ao do Caudillo Mexicano. Porém, os Estados que se auto-definiram tradicionalmente como laicos: França, Turquia e México - portanto a minha escolha de exemplos não tem nada de arbitrário - realmente lutaram (violentemente, por vezes) para excluir a religião do campo público. É esse exemplo, esse purismo supostamente normal, mas que é realmente uma excepção nas democracias liberais, que é evocado pelos defensores mais vocais do Estado Laico em Portugal. Por tudo isso continuo a achar que o conceito deve ser distinguido do de Estado não-confessional ou de separação de que existem vários modelos.

Não me passaria pela cabeça que o João Almeida com o seu bom humor e interesse pela discussão aprofundada destas questões se incluísse nessas tendências. Mas, afastado esse fantasma, sempre gostaria de saber porque é ele acha tão má ideia insistir que Portugal não é, hoje em rigor e de facto, um Estado Laico, mas sim um Estado Não-Confessional. Se calhar até estamos menos em desacordo do que parece.

Sermos um Estado não-confessional até me parece bem. Mas, rigorosamente, nem quis propriamente propor nenhum modelo fechado. Limitei-me a apontar para o facto de o Estado Laico ser excepção e não regra. E ser até possível encontrar Estados confessionais - como a Inglaterra anglicana, ou a Suécia luterana até 2000 - entre os melhores exemplos de democracia liberal. Portanto a ideia de que um Estado Laico é a única via para a liberdade está longe de ser verdadeira. Claro que se pode e deve falar do Irão ou da Arábia Saudita. Como se deve falar da China (e não estou só a falar dos budistas tibetanos que ficam muito bem em qualquer conversa de sala), Coreia do Norte, Vietname, Cuba. Estranhamente os amigos (laicos) da liberdade nunca parecem ter tempo para se ocupar do assunto das perseguições a católicos, hoje, por essa bandas.

Portugal deve seguir o seu caminho com bom senso e seguindo os melhores exemplos em termos de defender o mais possível os direitos de liberdade de expressão e organização dos seus cidadãos. Não tenho nada contra um coro de comunistas numa cerimónia pública no Alentejo, como não tenho nada contra um coro de igreja no Minho (e vice-versa, para variar). Isto implica não discriminar ninguém pela sua fé religiosa (ou ausência da mesma) e celebrar, em vez de esconder a riqueza e a diversidade da sociedade portuguesa, a inovação e a tradição, evidentemente sem excluir as religiões.
O lado negativo do laicismo português é precisamente o que tem de destrutivo, de polícia de costumes e de guardião de uma ortodoxia (virtual ainda por cima, sem qualquer base na lei), bem mais próximo das piores tradições nacionais que tanto se gaba de combater (a posteriori) mas de que encontramos ecos na alegre caça às cruzes.
FOTO: Juramento de posse do Governo Zapatero diante de S.M. el-Rei de Espanha perante um.... crucifixo.

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quinta-feira, abril 24, 2008

Estado laico e liberdade religiosa

Caro Bruno,

Eu é que fico perplexo por escreveres que não quero discutir os factos em torno das questões da laicidade. Não fui eu que abri a discussão neste blogue? E não teria aberto a discussão se, além de te reconhecer legitimidade para te pronunciares, também te reconhecesse responsabilidade e soubesse que os teus textos têm impacto e devem ser lidos com exigência. E já que colocaste a questão da legitimidade: o título do teu poste – a «unicidade laical» – não será uma insinuação torpe acerca da minha legitimidade? Ou será antes o estabelecimento de uma ligação entre D. Jorge Ortiga e o PCP? A ironia do título acaba por ser reveladora – em democracia pode-se combater e vencer um projecto de unicidade sindical. Os comunistas podem ter um sindicato «deles». Mas será legítimo em democracia que o Estado português não seja também o Estado «deles»?
Modelos de Estado laico e Estado não confessional há muitos. Eu acho que o Estado laico não implica um projecto de laicização da sociedade e é compatível com o reconhecimento do papel social e cultural das diversas confissões religiosas, sendo que o papel da Igreja Católica em Portugal tem um maior peso. E isto não é por causa da diferença entre a teoria e a prática. É porque a teoria é outra.
Tu achas que o modelo de Estado não-confessional é melhor e gostarias de seguir o exemplo do Reino Unido. Será que os comentadores que reagem tão violentamente aos teus pontos de vista são culpados de ignorância ou são culpados de não serem ingleses? O modelo do Reino Unido deve-se à enorme sapiência e clarividência britânica ou à peculiar relação entre um Estado e uma Igreja maioritária com características diferentes do Estado português e da Igreja Católica? Será por acaso que as ideologias laicas se desenvolveram na Europa do Sul e na América Latina católicas e não na Europa do Norte onde as Igrejas maioritárias são protestantes? Será irrelevante que a Igreja Anglicana não tenha ordens religiosas e portanto a questão congreganista que atravessou a política portuguesa desde o século XVIII ao primeiro quartel do século XX não se tenha colocado no Reino Unido? Porque será que os portugueses laicos e ateus do início do século XX retomaram políticas do Marquês de Pombal e dos liberais do século XIX? Será que os liberais do século XIX, mesmo católicos e querendo uma religião do Estado católica, não tiveram de afirmar o seu projecto de Estado liberal contra determinadas concepções e práticas da Igreja Católica que não tinham a ver com a teologia e a prática religiosa, mas com o regime de propriedade, a concepção das funções do Estado, da organização económica, etc, tudo questões que não se colocavam no Reino Unido?
Há Estados liberais em que uma religião oficial é compatível com a liberdade religiosa. Mas também há Estados, como o Irão, em que a existência de uma religião oficial implica a descriminação das religiões minoritárias e a codificação da pena de morte para os ateus. Antes o Estado laico francês ou turco (apesar de não concordar com alguns aspectos) do que o Estado anti-laico iraniano.
Caro Bruno,
Queres enxertar em Portugal um modelo de Estado não-confessional inspirado nos modelos nórdicos, mas facilmente despertas os fantasmas um catolicismo se não anti-liberal, pelo menos com uma concepção redutora da liberdade.
Eu quero partir do Estado laico como um dado civilizacional adquirido e construído no sentido de garantir a liberdade religiosa, incluindo a liberdade do ateísmo. Essa é, em minha opinião, a melhor forma de garantir que o Estado seja de todos, e a dignidade de todos seja reconhecida, o que implica a liberdade de praticar uma religião.
PS A forma heterodoxa deste poste deve-se ao facto de ter sido primeiro pensado como comentário, tendo desistido de o meter numa «caixa de comentários» devido à sua extensão.

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segunda-feira, abril 21, 2008

A Unicidade Laical

O João Almeida fez-me a honra imerecida de me dedicar um poste. Não tenho, de momento, nada de fundamental a acrescentar aos argumentos que sobre o tema escrevi. Até porque as dificuldes que o João parecer ter em perceber-me (ou até em aceitar sequer a legitimidade como ponto de discussão do que tenho para dizer?) parecem ter algo a ver com o facto de que não parece ter lido o que escrevi, pois repete objecções a que respondi (portanto não vale a pena repetir-me). Mas sempre me oferece o pretexto para desenvolver um pouco mais o assunto.

O João oferece-nos a sua definição de um estado laico que nunca existiu. Uma coisa muito útil e que tomarei em boa nota. Será certamente uma novidade para a França, México e a Turquia. Talvez convenha avisar os tribunais turcos para evitar o risco de que em nome desse princípio constitucional afinal inexistente o partido actualmente no governo turco seja proibido por violar o sacro Estado laico.


Até admito haver várias definições de Estado laico - desconfio que a de D. Jorge Ortiga não será a de Emiliano Zapata. Até por isso eu prefiro o termo menos confuso de Estado não-confessional ou de separação. Desde logo porque quem usa o termo Estado laico geralmente quer aproximá-lo do modelo (mal conhecido, admito) francês (ou será turco ou mexicano?)

Claro que o modelo de Estado laico puro - de um espaço público totalmente monopolizado pelo Estado e totalmente estranho à religião nunca foi completamente concretizado (com a possível excepção de Estados violentamente ateus como a Albânia, a URSS ou a China, Coreia do Norte.) Mas isso só mostra que nem sempre é clara a fronteira entre público e privado, estatal e não-estal (um problema de base do laicismo). Reflecte também o problema mais geral de que entre o ideal e a prática geralmente (graças a Deus) vai alguma distância.
Afinal até De Gaulle e Mitterand tiveram missas de Estado em Notre Dame.
Afinal, até o governo de Zapatero, com os seus laivos laicistas, foi há dias jurado diante deS.M. el-Rei de Espanha e um belo crucifixo (Algum comentário a fazer pessoal laicista radical português? Estou desiludido convosco! Nenhuma lição a tirar?! Nenhum exemplo para Portugal?!)

Que a discriminação religiosa foi de regra até (pelo menos) à década de 1950 por todo o mundo, inclusive no Ocidente democrático, não contesto, do Sul baptista dos EUA até ao norte protestante da Irlanda. Mas não vejo é o que é isso tenha a ver com o assunto. Ou no que é nisso o Estado Novo ou a nossa Monarquia Constitucional se notabilizem, excepto pelas limitações no apoio efectivo à Igreja Católica se comparadas com a maioria (se não todos) os Estados europeus dessa altura e até - volto a sublinhar - a própria França laica, que paga padres na tropa e nas prisões e nos hospitais (antes e depois de 1905) e que pagou uma volumosa indemnização à Igreja Católica pelas expropriações que lhe foi, coisa que o Estado Português (Novo ou velho) nunca fez.
Que isso seja desconhecido militantemente pela maioria católica e sem ser católica é possível, mas que não me parece argumento de grande valia. A ignorância sempre foi afoita e o preconceito persistente. Que alguém como o João continue a recusar pelo menos discutir alguns destes factos já me deixa mais perplexo, mas é algo com que conseguirei viver graças às suas muitas outras qualidades.

Nem vejo que certo tipo de estatuto especial para a Igreja tradicionalmente dominante num país seja necessariamente uma discriminação inaceitável das outras. Por enquanto, ainda ninguém levantou a questão - creio - de se expropriar a igreja anglicana de Westminster por ter uma localização tão discriminatoriamente central em Londres, ou passou pela cabeça de muita gente dizer que a Inglaterra não é uma democracia liberal porque tem uma Igreja de Estado.

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sexta-feira, abril 18, 2008

Em louvor do Estado laico

Nunca pensei citar o Presidente da Conferência Episcopal numa discussão com um amigo do Povo. Mas Deus, além de escrever direito por linhas tortas, inspirou D. Jorge Ortiga a dizer, em entrevista ao Público de 6 de Abril passado: «Reconhecemos, e afirmei-o categoricamente, a laicidade do Estado». O que significa que para um bispo identificado com a linha mais conservadora da Igreja o Estado laico é um adquirido civilizacional. Congratulo-mo que assim seja. Não percebo a indignação de Bruno Cardoso Reis ao proclamar, no blogue Atlântico, que «Portugal não é um país laico». Nem Portugal, nem o México, nem a Turquia. Um país laico seria um país sem qualquer vestígio de vida religiosa. O que já foi a intenção assumida de vários projectos políticos que tomaram o poder do Estado, mas nunca uma prática totalmente realizada. Um Estado laico não é necessariamente um Estado laicista, ou seja, um Estado que quer «limpar» a sociedade do fenómeno religioso. Pelo contrário, um Estado laico pode ser a condição necessária para permitir o convívio pacífico entre diversas confissões religiosas.
No seu ataque ao quimérico «país laico», Bruno Cardoso Reis afirma que a Igreja Católica em Portugal não foi favorecida pelo Estado em Portugal nos últimos duzentos anos. É a vitória do bloguista sobre o historiador. A Igreja Católica foi favorecida pelo Estado em relação a outras confissões religiosas. As Testemunhas de Geová, por exemplo, foram particularmente perseguidas durante o período da guerra colonial, pois a sua fé implicava a objecção de consciência e impedia-as de prestar serviço militar. Num segundo post, Bruno Cardoso Reis, admite a vantagem do catolicismo em relação a minorias religiosas, mas volta a insistir na ideia de que a Igreja Católica nunca foi favorecida sistematicamente pelo Estado. Francamente, não percebo. Durante a monarquia constitucional a Igreja Católica era a religião oficial portuguesa e os padres funcionários públicos sustentados pelo Estado. Durante o Estado Novo, a Igreja Católica possuía o monopólio do ensino religioso no sector público e tinha um lugar privilegiado no protocolo do Estado.
Respondendo a críticas, no segundo post, Bruno Cardoso Reis, avança com uma definição de Estado laico: seria aquele «em que o acesso das religiões ao espaço público é inteiramente ou substancialmente limitado, como sucede tradicionalmente em França, no México, na Turquia». Convém distinguir entre espaço público e Estado, como D. Jorge Ortiga distingue entre Estado e Governo. Mesmo os países com um laicismo mais forte, como a França, proíbem os véus muçulmanos nas escolas públicas (e por acaso não concordo com isso), mas não as manifestações religiosas em Lourdes. Ou seja, não admitem manifestações religiosas num espaço público que é do Estado, mas o Estado não monopoliza todos os espaços públicos. Em Portugal, no século XXI, o Estado laico será mais favorável à convivência entre diversas correntes religiosas, espirituais e filosóficas do que qualquer outro Estado decalcado de países com uma História e tradições religiosas maioritárias diferentes da portuguesa.

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