sexta-feira, março 21, 2008

A poesia de Ruy Belo

PORTUGAL SACRO-PROFANO
LUGAR ONDE

Neste país sem olhos e sem boca
hábito dos rios castanheiros costumados
país palavra húmida e translúcida
palavra tensa e densa com certa espessura
(pátria de palavra apenas tem a superfície)
os comboios são mansos têm dorsos alvos
engolem povoados limpamente
tiram gente de aqui põem-na ali
retalham os campos congregam-se
dividem-se nas várias direcções
e os homens dão-lhes boas digestões:
cordeiros de metal ou talvez grilos
que mãe aperta ao peito os filhos ao ouvi-los?
Neste país do espaço raso do silêncio e solidão
solidão da vidraça solidão da chuva
país natal dos barcos e do mar
do preto como cor profissional
dos templos onde a devoção se multiplica em luzes
do natal que há no mar da póvoa de Varzim
país do sino objecto inútil
única coisa a mais sobre estes dias
Aqui é que eu coisa feita de dias única razão
vou polindo o poema sensação de segurança
com a saúde de um grito ao sol
combalido tirito imito a dor
de se poder estar só e haver casas
cuidados mastigados coisas sérias
o bafo sobre o caço como o vento na água
País poema homem
matéria para mais esquecimento
do fundo deste dia solitário e triste
após as sucessivas quebras de calor
antes da morte pequenina celular e muito pessoal
natural como descer da camioneta ao fim da rua
neste país sem olhos e sem boca

ANDRADE, Eugénio, Antologia da Poesia Portuguesa, Porto, Campo das Letras, 1999, pp. 527-528

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sexta-feira, março 07, 2008

Elegia

Oh, destino, o de Borges,
ter navegado pelos diversos mares do mundo
ou pelo único e solitário mar de nomes diversos,
ter sido uma parte de Edimburgo, de Zurique, das suas Córdovas,
da Colômbia e do Texas,
ter regressado, após mutáveis gerações,
às antigas terras da sua estirpe,
à Andaluzia, a Portugal e àqueles condados
onde o saxão lutou com o dinarmarquês e misturaram os sangues,
ter envelhecido em tantos espelhos,
ter procurado em vão o olhar de mármore das estátuas,
ter visto as coisas que os homens vêem,
a morte, o inerte amanhecer, a planície
e as delicadas estrelas,
e não ter visto nada ou quase nada
senão o rosto de uma rapariga de Buenos Aires,
um rosto que não quer que eu o recorde.
Ah, destino de Borges, talvez não mais estranho do que o teu.

BORGES, Jorge Luís, Obras Completas, Vol. II, Lisboa, Editorial Teorema, 1998, p. 311

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terça-feira, setembro 11, 2007

W. H. Auden (1907-1973)






PAREM JÁ OS RELÓGIOS, CORTE-SE O TELEFONE





Parem já os relógios, corte-se o telefone,
dê-se um bom osso ao cão para que ele não rosne,
emudeçam pianos, com rufos abafados
transportem o caixão, venham enlutados.

Descrevam aviões em círculos no céu
a garatuja de um lamento: Ele Morreu.
no alvo colo das pombas ponham crepes de viúvas,
polícias-sinaleiros tinjam de preto as luvas.

Era-me Norte e Sul, Leste e Oeste, o emprego
dos dias da semana, Domingo de sossego,
meio-dia, meia-noite, era-me voz, canção;
julguei o amor pra sempre: mas não tinha razão.

Não quero agora estrelas: vão todos lá para fora;
enevoe-se a lua e vá-se o sol agora;
esvaziem-se os mares e varra-se a floresta.
Nada mais vale a pena agora do que resta.

Vasco Graça Moura (organização da antologia), 366 poemas que falam de amor, Lisboa, Quetzal Editores, 2004, p. 80.

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