sexta-feira, março 14, 2008

No centenário de Vieira

A maior graça da natureza, e o maior perigo da graça, são os olhos. São duas luzes do corpo, são dous laços da alma. Mas como os mesmos olhos ou são os próprios, com que vemos, ou os alheios, com que somos vistos; questão pode ser não vulgar, e útil curiosidade, saber quais deles sejam o maior laço, e o maior perigo. Eu em tanta estreiteza de tempo não o tenho para disputar: e assim digo resolutamente, que o maior perigo, e o maior laço são os olhos alheios. E porquê? Porque sento tão natural no homem o desejo de ver, o apetite de ser visto é muito maior. Considerava Job a sua morte, e vede a espinha que mais lhe picava o coração: Nec aspiciet me visus hominis. Morrerei, e não me verão mais os olhos dos homens. O uso de ver tem fim com a vida, o apetite de ser visto não acaba com a morte. Esta foi a origem das estátuas romanas sepulcrais. Punha-se a estátua e imagem do defunto sobre o sepulcro, para que o homem que dentro dele não podia ver, sobre ele fosse visto. Já que me falta a vida própria, ao menos não me falte a vista alheia. De maneira que devendo os mármores da sepultura ser uns espelhos em que se vissem os vivos, são uma antecipada ressurreição da arte, em que se vêem os defuntos. Tão imortal é nos mortais o desejo de ser vistos! E se esta ambição vive nos mortos, nos vivos que será? Será o que diz o Texto que propus, com maior erro ainda, e indignidade na vida, que ambição e vaidade depois da morte: Nemo in occulto quid facit: Ninguém faz ocultamente cousa digna de louvor, porque oculta não pode ser vista. Tirai do mundo (diz Séneca) os olhos alheios, e nada se fará do que o mesmo mundo admira, e preza: Nemo oculis suis lautus est: ubi testis, ac spectator abscessit, omnia, quorum fructus monstrari, et conspici. Este era o uso de Roma no tempo do estóico. Mas porque então, e depois, e ainda hoje se usa o mesmo em tempo de Cristo, que faremos? Para desterrar de Roma o nemo, e ajuntar nela o facit com o occulto, isto é, para que as boas obras se façam, e juntamente se ocultem, vos oferecerei brevemente neste discurso três documentos: um seguro, outro perfeito, e o terceiro heróico. O seguro, não obrar para os olhos dos homens: o perfeito, obrar só para os olhos de Deus: e o heróico? Obrar por Deus como se Deus não tivera olhos. Este é o meu argumento. Bem vejo quanta dissonância vos fará nos ouvidos a rudeza de uma v tão pouco romana, como a minha, no meio da harmonia destes coros reais, pouco menos que celestes. Mas o mesmo autor do nosso Evangelho, S. João, diz que no tempo em que os anjos do Céu estavam cantando os louvores de Deus, se fez lá pausa e silêncio por espaço de meia hora, para se ouvirem as vozes da Terra: Factum est silentium in coelo quasi media hora. Eu farei por não exceder a meia, nem ainda o quase.

«Sermão da Quinta terça-feira da Quaresma pregado pelo Padre António Vieira, em italiano, à Rainha da Suécia» in Padre António Vieira, Sermões, vol. II, Porto, Lello & Irmão, Porto, pp. 75-76.

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domingo, fevereiro 10, 2008

Sermão da Quaresma

«Ora, senhores, o tempo em que se faz esta lavoura, é este da Quaresma. Este é o tempo de semear. Não faltam pobres. Para que cuidais que se faz a Quaresma? Para duas cousas: para jejuar e para dar esmola. O que agora direi é de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, e de todos os Doutores. Nos dias que não são de jejum comemos duas vezes: jantamos e ceamos; nos dias que são de jejum comemos uma só vez: jantamos e não ceamos. E para quê? Para que dêmos aos pobres o que havíamos de cear. Jejuar e guardar pão, não é abstinência, é avareza. Pois assim como a avareza tira o merecimento ao jejum, a esmola lho acrescenta. Dêmos esmola, e todos, que todos a podem dar. Os que têm muito dêem do muito, os que têm pouco, do pouco, e os que não têm que dar, tenham paciência de não ter, e desejo de poder dar por amor de Deus.
Bem sei que há muita caridade nesta terra, mas não posso deixar de estranhar uma muito grande falta que aqui há. É possível que numa cidade tão nobre, e cabeça de um estado, não haja um hospital, e que a Misericórdia não sirva mais que de enterrar os mortos? Vede o que há-de dizer Cristo no Dia do Juízo: Venite benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum: esurivi enim, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere: hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Notai, primeiro: que não fez menção do enterro dos mortos, porque a principal misericórdia é com os corpos vivos: Esurivi, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere. Segundo: que fez menção da casa de hospitalidade para os peregrinos e enfermos: Hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Terceiro: que eu não disse foram enfermos os outros, senão fui enfermo eu, não disse foram peregrinos os outros, senão fui peregrino eu, e hospedaste-me e visitaste-me: «Hospes eram, infirmus: et collegistis me, et visitatis me. Pois seria bem que viesse Cristo a esta cidade com fome, com sede, despido, peregrino, enfermo, e não haver uma casa onde o hospedar? Melhor fora não haver na Misericórdia igreja, que não haver hospital, porque a imagem de Cristo que está na igreja, é imagem morta, que não padece: as imagens de Cristo, que são os pobres, são imagens vivas que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a igreja em hospital, que Cristo será mui contente disso. Fazei casa aos pobres, que Deus vos fará casa a vós: tirai de vossas casas com que a fazer, que Deus vos lançará sobre elas uma bênção, como a que hoje lançou sobre o pão dos Apóstolos, com que tudo se acrescente e se multiplique com grandes aumentos de bens temporais e da graça, penhor da Glória: Ad quam, etc.»
Padre António Veira, Sermões, Vol. II, Porto, Lello & Irmão Editores, 1959, pp. 72-73.

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