Sermão da Quaresma
Bem sei que há muita caridade nesta terra, mas não posso deixar de estranhar uma muito grande falta que aqui há. É possível que numa cidade tão nobre, e cabeça de um estado, não haja um hospital, e que a Misericórdia não sirva mais que de enterrar os mortos? Vede o que há-de dizer Cristo no Dia do Juízo: Venite benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum: esurivi enim, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere: hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Notai, primeiro: que não fez menção do enterro dos mortos, porque a principal misericórdia é com os corpos vivos: Esurivi, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere. Segundo: que fez menção da casa de hospitalidade para os peregrinos e enfermos: Hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Terceiro: que eu não disse foram enfermos os outros, senão fui enfermo eu, não disse foram peregrinos os outros, senão fui peregrino eu, e hospedaste-me e visitaste-me: «Hospes eram, infirmus: et collegistis me, et visitatis me. Pois seria bem que viesse Cristo a esta cidade com fome, com sede, despido, peregrino, enfermo, e não haver uma casa onde o hospedar? Melhor fora não haver na Misericórdia igreja, que não haver hospital, porque a imagem de Cristo que está na igreja, é imagem morta, que não padece: as imagens de Cristo, que são os pobres, são imagens vivas que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a igreja em hospital, que Cristo será mui contente disso. Fazei casa aos pobres, que Deus vos fará casa a vós: tirai de vossas casas com que a fazer, que Deus vos lançará sobre elas uma bênção, como a que hoje lançou sobre o pão dos Apóstolos, com que tudo se acrescente e se multiplique com grandes aumentos de bens temporais e da graça, penhor da Glória: Ad quam, etc.»
Etiquetas: Clássicos para o povo, hospital, Padre António Vieira, Quaresma
2 Comments:
No tempo do Vieira, claro, não havia nem ambulâncias, nem paramédicos, nem autoestradas.
Mas o moral da história mantém-se válida e o texto toca realmente numa questão central. De nada vale a RETÓRICA DA CARIDADE quando falta a SUBSTÂNCIA da mesma. De nada vale a RETÓRICA DOS CUIDADOS DE SAÚDE à província esquecida, coitadinha, quando falta a SUBSTÂNCIA dos mesmos.
Esperemos, em todo o caso, calmamente, por um milagre.
As casas do Socrates
http://www.youtube.com/watch?v=QhLlNZKpjlo
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