domingo, fevereiro 10, 2008

Sermão da Quaresma

«Ora, senhores, o tempo em que se faz esta lavoura, é este da Quaresma. Este é o tempo de semear. Não faltam pobres. Para que cuidais que se faz a Quaresma? Para duas cousas: para jejuar e para dar esmola. O que agora direi é de Santo Agostinho, de Santo Ambrósio, e de todos os Doutores. Nos dias que não são de jejum comemos duas vezes: jantamos e ceamos; nos dias que são de jejum comemos uma só vez: jantamos e não ceamos. E para quê? Para que dêmos aos pobres o que havíamos de cear. Jejuar e guardar pão, não é abstinência, é avareza. Pois assim como a avareza tira o merecimento ao jejum, a esmola lho acrescenta. Dêmos esmola, e todos, que todos a podem dar. Os que têm muito dêem do muito, os que têm pouco, do pouco, e os que não têm que dar, tenham paciência de não ter, e desejo de poder dar por amor de Deus.
Bem sei que há muita caridade nesta terra, mas não posso deixar de estranhar uma muito grande falta que aqui há. É possível que numa cidade tão nobre, e cabeça de um estado, não haja um hospital, e que a Misericórdia não sirva mais que de enterrar os mortos? Vede o que há-de dizer Cristo no Dia do Juízo: Venite benedicti Patris mei, possidete paratum vobis regnum: esurivi enim, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere: hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Notai, primeiro: que não fez menção do enterro dos mortos, porque a principal misericórdia é com os corpos vivos: Esurivi, et dedistis mihi manducare: sitivi, et dedistis mihi bibere. Segundo: que fez menção da casa de hospitalidade para os peregrinos e enfermos: Hospes eram, et collegistis me: infirmus, et visitastis me. Terceiro: que eu não disse foram enfermos os outros, senão fui enfermo eu, não disse foram peregrinos os outros, senão fui peregrino eu, e hospedaste-me e visitaste-me: «Hospes eram, infirmus: et collegistis me, et visitatis me. Pois seria bem que viesse Cristo a esta cidade com fome, com sede, despido, peregrino, enfermo, e não haver uma casa onde o hospedar? Melhor fora não haver na Misericórdia igreja, que não haver hospital, porque a imagem de Cristo que está na igreja, é imagem morta, que não padece: as imagens de Cristo, que são os pobres, são imagens vivas que padecem. Se não houver outro modo, converta-se a igreja em hospital, que Cristo será mui contente disso. Fazei casa aos pobres, que Deus vos fará casa a vós: tirai de vossas casas com que a fazer, que Deus vos lançará sobre elas uma bênção, como a que hoje lançou sobre o pão dos Apóstolos, com que tudo se acrescente e se multiplique com grandes aumentos de bens temporais e da graça, penhor da Glória: Ad quam, etc.»
Padre António Veira, Sermões, Vol. II, Porto, Lello & Irmão Editores, 1959, pp. 72-73.

Etiquetas: , , ,

2 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

No tempo do Vieira, claro, não havia nem ambulâncias, nem paramédicos, nem autoestradas.

Mas o moral da história mantém-se válida e o texto toca realmente numa questão central. De nada vale a RETÓRICA DA CARIDADE quando falta a SUBSTÂNCIA da mesma. De nada vale a RETÓRICA DOS CUIDADOS DE SAÚDE à província esquecida, coitadinha, quando falta a SUBSTÂNCIA dos mesmos.

Esperemos, em todo o caso, calmamente, por um milagre.

11:52 da manhã  
Anonymous Anónimo disse...

As casas do Socrates
http://www.youtube.com/watch?v=QhLlNZKpjlo

5:37 da tarde  

Enviar um comentário

<< Home