E Max Brod
A polémica acerca das (in)conveniências da amizade para a crítica e promoção literária continua a dar frutos. Eduardo Pitta faz aqui uma introdução à nata de escritores que escreveram bem uns dos outros. Até não se perceber se escreviam críticas por causa da amizade ou se eram amigos por causa da alta consideração em que se tinham.
Aproveito para fazer a minha declaração de princípios: teria muito gosto em elogiar a obra de um amigo que merecesse uma boa crítica. A amizade impedia-me era de escrever sobre uma má obra de um bom amigo, embora não de o criticar em privado.
Para mim, o mais belo exemplo de amizade literária é o de Max Brod (1884-1968), crítico, novelista e ensaísta. Antes do seu amigo Franz Kafka ter publicado qualquer livro já o tinha descrito como «o maior poeta do nosso tempo». Depois da morte do amigo não descansou enquanto não lhe publicou os inéditos e lhe dedicou uma biografia. O que seria de Kafka sem Max Brod? Nem sequer uma sombra.
6 Comments:
O exemplo que dá (Max Brod) é perfeito. Há muito disso. O Cesário deve ao seu amigo Silva Pinto a edição da obra. Quanto a saber «se escreviam críticas por causa da amizade ou se eram amigos por causa da alta consideração em que se tinham», sempre se verificaram as duas situações, embora a segunda hipótese (amizade forjada na admiração mútua) seja a que nos merece maior consideração. Mas sempre houve de tudo, e pretender uma crítica "quimicamente pura" é uma idiotice. E depois há que distinguir entre o redactor do jornal ou da revista, que tem de escrever de acordo com orientações editoriais, e o crítico profissional, que é convidado a escrever em determinada publicação, e é pago nessa qualidade, o mesmo acontecendo com o escritor que, com maior ou menor regularidade, faz crítica literária a partir de escolhas pessoais. Quando fui convidado a fazer crítica na Colóquio-Letras, em 1987 (foi aí que comecei), disse que só me interessava escrever sobre autores «novos» (Adília Lopes, etc.) e, de facto, durante sete anos, só escrevi sobre autores que, de outro modo, nunca apareceriam na revista da Gulbenkian. A partir de 1994, com a criação da minha coluna de crítica na LER, é que abri o leque a outras gerações. E durante dezanove anos só escrevi sobre poesia, e agora estou a escrever também sobre ficção no Mil Folhas. São escolhas pessoais. O resto, amizades, conhecimentos, são consequência do «meio», que tem a desvantagem de ser pequeno e paroquial. É preciso fair play... Conhecer a realidade ajuda. As coisas são o que são. Olhe: toda a gente conhece o ensaio do Pessoa a elogiar o Botto, só falta chamar-lhe génio. O mesmo Pessoa, na correspondência, trata a poesia do Botto de «inepta» para baixo. Portanto... No limite, se o livro de um amigo é mau, podemos fazer-nos de esquecidos e não escrever nada. Por outro lado, já elogiei livros de sacanas (é simples: são livros de qualidade indiscutível). Não tenho pejo em admirar um estupor se ele for um bom escritor.
Mais um Blogue de bom nível, a dizer umas verdades inconvenientes.
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Abraço.
Acho bem que o Eduardo Pitta e o amigo João venham lembrar que essa coisa da crítica de proximidade é frequente fora de Portugal. Claro que concordo inteiramente que a crítica vale por si.
Mas parece-me legítima a distinção que João Pedro George faz entre a crítica ensaística e académica, por um lado, e crítica jornalística, por outro. A primeira é publicada em revistas que mal se vendem, lidas por aficcionados que conhecem o meio, e em que existe espaço para desenvolver uma análise argumentada duma obra. A crítica jornalística, com algumas excepções, tem espaço muito limitado (e portanto vale menos por si) e pode argumentar-se que tem algum impacto na recepção das obras por um público mais amplo e inocente.
Os jornais têm livros de estilo, têm regras. Uma moda importada dos EUA e da Grã-Bretanha, onde é frequente a norma de que pessoas com relações de grande proximidade, ou não podem fazer crítica uns dos outros, ou têm que deixar expressa essa relação (prefiro esta modalidade). Pode ser um pouco ridículo às vezes, mas não creio que isso tenha tido um efeito negativo na crítica ou na vivacidade dos debates nesses dois países. E, como tudo, pode ser feito com mais ou menos piada.
Isto não tem nada que ser visto como um ataque genérico a toda a crítica jornalística feita em Portugal. Mas pode-se discutir se fará ou não sentido adoptar mais esta moda externa; se esta forma mais transparente de fazer as coisas não evitará o ruído de fundo sobre quem é amicíssimo de quem. Se bem me lembro o Eduardo Pitta falava há tempos de um casal que trocava críticas no Expresso. Divertido, reconheço, mas não muito ético para os leitores que ignoravam a piada.
A piada de um casal a trocar críticas entre si no Expresso podia ser explicada aos leitores pelo famoso asterisco com nota-de-rodapé. Tal como se faz para um político convidado a escrever um comentário sobre o seu partido ou o seu candidato. Mas é um exemplo limite. A maior parte das relações pessoais são mais indefinidas. Não vejo a necessidade de escrever num texto crítico qualquer coisa como «o livro do irmão da namorada do amigo». E nada nos garante ser mais fácil escrever com isenção sobre «o livro do irmão da namorada do amigo» do que sobre o livro do marido ou mulher.
Já considero pertinente que as pessoas que assistiram ao debate em que Rui Lagartinho defendeu Margarida Rebelo Pinto soubessem que ele reviu pelo menos um livro de MRP. E portanto era um «alvo invisível» de João Pedro George.
A distinção que Eduardo Pitta faz entre redactores de jornais e revistas sujeitos a orientações editoriais e críticos profissionais é fundamental. Parece-me absurdo que um crítico profissional mude de estilo conforme o periódico em que escreve. Tem o direito de criar o seu estilo e todo o interesse em que os diversos públicos consideram as suas críticas justas sejam ou não sobre livros de amigos.
Pois, João, ou alguém falar prima da tia do enteado da sobrinha. Realmente só devem ser assinaladas relações de grande proximidade ou que sejam claramente relevantes por outra razão qualquer. Como em todos os negócios humanos é preciso bom senso a estabelecer o que isso é.
Isto não desvaloriza uma crítica com base em argumentos, pelo contrário limpa o campo precisamente para isso. Se achas que a preocupação com a transparência não faz sentido, por que é que referes o caso do Rui Lagartinho? Se calhar os argumentos dele eram excelentes, mas ao não deixar clara a sua implicação na polémica, ele dá azo a dúvidas.
Para te dar dois exemplos da aplicação dessa regra em sítios onde ela existe. Há tempos o John Updike queixou-se de um textono New York Times pela ex-parceira de um amigo dele, a separação aparentemente tinha sido acrimonioso e a pessoa em causa não achou pertinente divulgar essa anterior proximidade com o escritor. Se os argumentos dela valiam por si, porque não o fez? Não queria divulgar a sua vida privada? Podia simplesmente dizer que tinha tido um contacto próximo com Updike e que isso tinha acabado. Ou podia não ter escrito a crítica. Os editores do NY Times deixaram claro que ela tinha violado as regras do jornal.
Mais recentemente na polémica em torno do livro do Bernard-Henry Lévy sobre os EUA, o Christopher Hitchens veio a terreiro defender o seu compincha BHL e deixou claro no texto a sua simpatia por ele (que aliás é clara na reportagem/livro, numa cena infantil em que os dois perseguem o Kissinger numa conferência). Os argumentos dele valem menos por isso? Acho que é o contrário.
Portanto a questão é saber se, nos jornais, onde já importámos os livros de estilo, faz sentido incluir regras deste tipo ou não. Eu acho que sim, não por suspeitar de toda a gente ou achar que amigos não podem criticar interessantemente amigos, mas exactamente pelo contrário.
Bruno, percebo o teu ponto de vista. Acho que essas questões de estilo se devem discutir, mas encaro-as com algum cepticismo. O caso do Rui Lagartinho não é a sua amizade com MRP, mas ter revisto pelo menos um livro da autora. E portanto pode ter-se sentido atingido pelo JPG por não ter detectado algum «deslize» de MRP. Esse papel é que devia ser assumido.
Quanto aos exemplos que dás, o do Christopher Hitchens é uma boa opção de estilo, de personalizar a relação de um crítico com a obra e o autor, uma opção que se pode reivindicar também de alguns ensaios do Orwell. Já o exemplo do Updike, que tem a ver com regras adoptadas por jornais, não nos leva muito longe. A questão é que ela embirrava com o Updike. Podia ser ex-mulher de um amigo e gostar dele. Podia não o conhecer de lado nenhum e odiá-lo porque um dia o viu a dar um pontapé no cão do vizinho.
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