Sousa Mendes, Salazar, Franco e os Judeus
Sobre Aristides Sousa Mendes gostaria de recordar que o nosso cônsul em Bordéus foi punido disciplinarmente pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros português da altura, não pelo facto de ter passado vistos a judeus que fugiam aos nazis, mas por ter expressamente desobedecido a ordens entregando vistos a todos aqueles que fugiam à guerra fossem eles judeus, católicos, protestantes, muçulmanos, agnósticos ou ateus –bastava que o procurassem no consulado e, depois, nas imediações deste ou já próximo da fronteira com Espanha.
É verdade que, em princípio, de todos aqueles que receberam vistos portugueses e procuraram em Portugal um porto de abrigo ou de saída para o Novo Mundo, os judeus eram os que mais poderiam, a prazo, temer pelas suas vidas. De qualquer modo, convém recordá-lo, ainda estava a um par de anos de distância o início da política sistemática de extermínio de judeus levada a cabo pela Alemanha nacional-socialista por praticamente toda a Europa. Em 1940, como nos seis ou sete anos anteriores, as autoridades alemãs entretinham-se, sobretudo, a eliminar de forma mais ou menos sistemática comunistas, sociais-democratas, democratas-cristãos, membros das SA (na célebre "noite das facas-longas"), deficientes, alguns católicos, cidadãos polacos, ciganos, etc., etc..
Depois convém recordar que não há notícia – nem haverá nunca – de que à esmagadora maioria daqueles europeus que recebeu em Bordéus um visto ilegal, tenha sido recusada pelas criminosas e fascistas autoridades portuguesas a sua entrada ou permanência neste rectângulo à beira mar plantado.
Ainda sobre Aristides Sousa Mendes sublinho que se tratava à época de uma personagem nada bem vista dentro do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fosse pelo facto de ter sido alvo de alguns processos disciplinares antes da crise dos refugiados em Bordéus, fosse por seu irmão ter ocupado por algumas semanas o cargo de ministro dos Negócios Estrangeiros – vigorava a Ditadura Militar – e com isso, e por várias razões, ter criado animosidades e inimizades não apenas contra si – também diplomata de carreira – mas contra o seu irmão. Este conjunto de factos, infelizmente, terá contribuído para agravar a aversão daqueles que o julgaram e, também, o teor da pena de que foi alvo por causa da sua prodigalidade na distribuição de vistos.
Finalmente, e ainda por causa do nosso cônsul em Bordéus em 1940, vale a pena que perguntemos por que razão tardou a democracia tanto tempo, tantos governos, tantos ministros dos Negócios Estrangeiros e uns quantos presidentes da República, a reconhecer publicamente a bondade da sua obra, nomeadamente anulando a pena de que fora alvo e, consequentemente, instituindo a sua categoria de herói nacional – embora aqui se tenha cometido pecado de o transformar em inimigo político de Oliveira Salazar, coisa que, manifestamente, nunca foi.
Discordo do João Miguel Almeida quando compara o franquismo ao salazarismo (e estes ao fascismo italiano), tanto quanto à sua natureza político-ideológica genérica, como, sobretudo, quanto à sua atitude em relação aos judeus. Deixando para outros carnavais o primeiro ponto, aproveito para recordar que enquanto o “fascismo” português nunca foi anti-semita, o “fascismo” espanhol foi-o. Para além de outros pormenores importantes, sublinho que nunca fez parte da retórica do Estado Novo qualquer discurso anti-semita. Por seu lado, e durante muito tempo, mesmo depois de 1945, este discurso alimentou não apenas a retórica mas também algumas atitudes políticas celebradas pelo caudilho e por vastos sectores da Falange, do carlismo, das Forças Armadas e da Igreja Católica espanhola. O anti-liberalismo, o ódio à democracia e ao capitalismo, o temor e a desconfiança em relação aos EUA, por exemplo, já para não falar dos pesadelos de Franco com o poder internacional da Maçonaria, deveram-se em grande medida ao seu anti-semitismo e ao anti-semitismo espanhol (apesar da proporção de população judaica a viver em Espanha nos primeiros três quartéis do século XX ter sido insignificante). Também por causa do seu anti-semitismo foi sempre Franco um nostálgico da velha Espanha católica, imperial e inquisitorial. Para Franco, como para muitos espanhóis e para alguns portugueses, mas nunca para Salazar, a Inquisição fora uma instituição meritória por, justamente, ter colocado a Espanha e os espanhóis ao abrigo de ideias políticas nefastas e que, mal ou bem, tinham sempre, ao menos, uma maõzinha judaica. Salazar teve muitos defeitos, alguns eventualmente piores do que outros que são assacados a Franco. Porém, o pecado do anti-semitismo não se lhe conhece. Uma observação produzida aqui ou ali feita em privado, mas nunca um discurso público anti-semita ou anti-judaico.
Recorde-se que enquanto que no não reconhecimento pelo Portugal de Salazar e de Caetano do Estado de Israel (salvo erro Israel foi reconhecido por Portugal em 1976, sendo primeiro ministro Mário Soares e ministro dos Negócios Estrangeiros José Medeiros Ferreira, facto que criou alguns amargos de boca aos intervenientes principais do processo) contaram apenas e só cálculos de política internacional relacionados com a esperança, aliás frustrada, de não alienar os árabes nas discussões e votações que tinham lugar em fóruns internacionais e nos quais se discutia a política colonial portuguesa, a sua política externa e a natureza “fascista” do Estado Novo, já a Espanha de Franco não reconheceu Israel também por puro preconceito ideológico – independentemente de contar com essa atitude para colher vários benefícios junto dos países muçulmanos (na simpatia pelos árabes e nas críticas a Israel e aos judeus, devo dizer que Zapatero se parece, não por acaso, muito com o caudilho).
11 Comments:
A discussão sobre o carácter fascista do Estado Novo parece-me bastante nominalista: tudo depende da definição mais lata ou restrita de fascismo. Depois ainda há a questão da periodização, de saber se o Estado Novo foi o mesmo tipo de regime durante 40 anos, ou se era fascista nos anos 30 e autoritário conservador no período do pós-guerra.
Estou bem ciente das diferenças entre Salazarismo, Franquismo e fascismo italiano. Mas continuo a achar que há mais semelhanças entre estes três regimes do que entre o fascismo e o nazismo.
Fernando, parabéns por este texto sobre o Aristides Sousa Mendes.
Obrigado pelos esclarecimentos.
«Quanto ao carácter desalinhado, ou não, do "amigo do povo", confesso que me ultrapassam as lamentações de Sabine». Lamentaçoes? Onde? Deve ter interpretado mal! Foi apenas uma contastação minha, baseada no facto de ser leitora frequente deste blogue desde à alguns meses.
Fernando,
quando referes "desobediência expressa" presumo que te refiras ao incumprimento da famosa circular nº 14/1939 do MNE. Ora, se não estou em erro, essa directiva não referia estrangeiros foragidos e sem meios de forma genérica, antes discriminava estar proibida a emissão de vistos, (entre outros, não recordo todos) a "apátridas", portadores de "passaportes Nansen", "russos" e a
"judeus". Não me parece de todo incorrecto associar directamente a penalização (sem precedente, aliando a imposta pelo Conde de Tovar ao agravamento determinado pelo próprio Oliveira Salazar)de Sousa Mendes à ajuda concedida aos judeus em fuga. Se assim não fosse, não faria sentido que um dos últimos movimentos do próprio com vista à reparação do seu nome e anulação da pena sofrida tivesse sido um requerimento dirigido ao Presidente da Assembleia Nacional, em 1945, invocando a inconstitucionalidade da referida circular nº14, à luz do artigo 8º da Constituição de 1933 [relativo à liberdade e privacidade religiosa, que, invocava sousa Mendes, lhe não teria permitido recusar vistos com base na averiguação da crença de cada um].
Ana, obrigado pelas tuas observações. Assim de repente não posso dizer a tudo aquilo que afirmas nem que sim nem que não. De qualquer modo, sempre interpretei a pena aplicada a Aristides Sousa Mendes sobretudo como uma questão política interna ao MNE. A questão dos vistos foi um pretexto - e que pretexto - para o MNE se ver livre de Aristides Sousa Mendes. A questão judaica, digamos assim, é sobretudo uma variável introduzida à posteriori, com a história a ser lida não do passado para o presente, mas do futuro para o passado. Convém recordar - talvez - que a questão do anti-semitismo e do Holocausto só começou a fazer parte, digamos assim, da agenda da historiografia sobre a segunda guerra mundial (1939-1945) e o nazismo (1933-1945)a partir de finais da década de 1970.
Realmente vocês são um blog desalinhado. Disso não há dúvidas nenhumas. Por aquilo que escrevem e as ideias que partilham concluo que efectivamente são diferentes uns dos outros. Um deve se salazarista, outro franquista, outro fascista de cariz italiano e outro um nacional-socialista. A outra, responsável pela publicação do almanaque do povo, isto é, da publicitação de mais blogues "desalinhados" mas com esta raiz de pensamento, deve ser um híbrido entre estas quatro filosofias.
O "todo"que faz "O Amigo do Povo"está a prestar um excelente serviço ´de interesse público,sem quaisquer subsídios,ao qual não falta sequer o "contraditório".Bem-hajam por isso!
Fernando,
saberás mais do assunto do que eu, mas a partir do que li a minha interpretação é diferente da que propões: parece-me que a "questão dos vistos" foi mais que um pretexto no processo de despromoção e reforma compulsiva de Sousa Mendes, e que ela está intimamente ligada à "questão judaica". Não quero com isto ignorar que o diplomata, ao arrepio do seu irmão gémeo, tinha na ficha reparos disciplinares (de natureza política) desde o fim do sidonismo, e que não era bem visto no MNE.
O não entendi no teu anterior comentário é se consideras a "questão do anti-semitismo na II Guerra" uma construção artificial (ou contemporânea). No tocante ao nosso país, não era por cá que pontualmente se usava, mesmo em documentação oficial, e pelo menos até ao fim do referido conflito, a antiquíssima expressão
"gente limpa" para designar os não-judeus?
[desculpa se me alonguei :)]
Ah, e Co-Blogueiros, Rapazes do Amigo do Povo, já vi que temos nesta caixa de comentários o nosso primeiro comentador-anónimo-verdadeiramente-hostil; a assim ser, já nada nos falta para a promoção à SuperBlogueLigaNacional; como arcar com semelhante responsabilidade?; mais importante, teremos de pagar alguma taxa por isso?
Sr.anónimo/Srª. anónima,
como sugere, aqui o "híbrido" é mais para o transgénico que, por exemplo, para o fotogénico. Quanto ao mais, é capaz de não ser exactamente como afirma. Boa Noute.
"(na simpatia pelos árabes e nas críticas a Israel e aos judeus, devo dizer que Zapatero se parece, não por acaso, muito com o caudilho)".
No conozco ninguna crítica de Zapatero a los judíos. ¿Puede citar alguna? Sí le he oído defender la existencia de dos estados soberanos, Israel y Palestina, y condenar las acciones armadas de las milicias árabes y del ejército Israelí. Puede considerársele políticamente naif, pero la acusación de antisemitismo, asociada a sus muestras de preocupación y solidaridad con los sufrimientos de los palestinos, es injusta.
Ana, algum anti-semitismo oficial em Portugal sempre houve. Poderá ter ganho novo fôlego com e depois do sidonismo. Mas continuo a defender que o caso de Aristides nada teve que ver com anti-semitismo oficial portugfuês. Note-se que pública e oficialmente Salazar sempre o criticou, poucos eram os seus homens de mao com preconceitos anti-semitas e, sobretudo, os judeus sempre foram acolhidos em Portugal sem grandes problemas a partir de 1933. Aliás, outro pessoal diplomático português hou que "fez asneira" com vistos a judeus durante a guerra e nao foi penalizado como Sousa Mendes. Há ainda um outro aspecto importante na penalizacao da atitude do consul em Bordéus. Elas eram político-militares: as tropas alemas estavam a chegar aos Pirinéus, nao se sabia se por la ficariam ou os cruzariam. Tao pouco se sabia se havia qualquer entendimento germano-espanhol para uma entrada da Espanha da guerra com a consequente ocupacao de Gibraltar e Portugal.
Quanto ao meu comentário a Zapatero lamento que nao tenha sido compreendido. Nao sei se Zapatero é ou nao anti-semita, embora acredite que nao o seja. Agora parece-me indiscutivel que a sua política para o Médio Oriente é hoistil aos interesses de Israel e ao favorável aos da Síria, do Irao e dos terroristas do Hezzbolla e do Hamas. Se errei foi porque coloquei mal Franco na fotografia (isto é pensado, nao é uma provocacao). No seu anti-semitismo talvez nao se atrevesse a ser tao pró-terrorista. A ida do ministro Moratinos a Damasco foi, já agora, absolutamente ridícula, a nao ser, claro, para martcar pontops internamente - vejam-se, entre outras, as reaccoes patéticamante nacionalistas de muita imprensa espanhola por estes dias. Os franceses, os britânicos e os americanos, ja para nao falar nosraelitas e em alguns chancelarias árabes moderadas ficaram, no minímo, atónitas.
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