quarta-feira, março 12, 2008

Regicídio e outros acidentes de trabalho


O assassinato do rei D. Carlos há cem anos atrás foi objecto de um interessante colóquio (há umas escassas semanas atrás). Segui o conselho do João e assisti a algumas das comunicações. Ficam umas notas dispersas e incompletas.

Das intervenções a que assisti não ficou claro qual foi o impacto real do regicídio português de 1908. Foi um acontecimento fortuito, um contributo menor para o fim da monarquia, ou um momento de viragem decisivo? Aliás a questão está intimamente ligada ao tema quente do contra-factual. Se foi irrelevante matar D.Carlos tudo não passou de um vulgar crime. Se foi um facto político maior, então é preciso apontar quais teriam sido as consequências prováveis de ele não ter acontecido.

Rui Ramos foi - tirando D. Carlos - o ausente mais presente nas comunicações, com algumas denunciando o recurso ao contra-factual em termos muito indignados mas pouco argumentados. Apesar de tudo o dito método, discutível como todos, até já valeu um prémio Nobel da Economia - não exactamente o tipo de coisa que costuma premiar jogos florais - a um (re)conhecido historiador norte-americano.

A interessante comunicação de Paulo Jorge Fernandes ganha aqui particular relevo. Pois, embora ele próprio se mostre (algo) crítico de Rui Ramos, ao apontar para as queixas do Partido Progressista contra um rotativismo muito imperfeito parece mostrar que o projecto de favorecimento régio de um partido reformista do sistema contra a lógica do bipolarismo – como sucedia em 1908 com o apoio de D. Carlos a João Franco – já tinha tido um importante precedente bem sucedido no apoio de D.Luís e Fontes Pereira de Melo, até com direito a uma conspiração contra o monarca com envolvimento progressista em 1883. A diferença em 1908 fui que alguns dissidentes do sistema político monárquico puderam pagar carabinas à Carbonária republicana. A Carbonária transformou-se assim numa organização dotada de armas de precisão para uma operação bem sucedida de decapitação do trono para benefício imediato das elites rotativas, mas no prazo de dois anos dos republicanos.

O regicídio, note-se, não é propriamente uma novidade portuguesa. Esse foi talvez o ponto mais importante que o colóquio terá sublinhado.

Houve no final do século XIX e início do século XX a primeira grande onda terrorista internacional, com grupos mais ou menos organizados e relacionados, partilhando simpatias anarquias, estendendo-se pela Europa e EUA. Frequentemente explodiam bombas que matavam os próprios bombistas e uns quantos inocentes incautos naquilo que a nossa imprensa republicana e radical gostava de designar como acidentes de trabalho. Mas também alvejavam mais alto.

Das muitas tentativas de matar reis, imperatrizes, presidentes e ministros algumas tiveram sucesso. No entanto, os efeitos foram muito distintos. Porquê as diferenças? A questão é complicada - embora a solidez das instituições e o peso das personalidades pese - e muito ganha com uma abordagem comparada, mas ficou em boa parte por responder.

Pode-se perguntar concretamente porque não foi a repressão dos carbonários mais eficaz? António Ventura deixou claro que a polícia sabia muita coisa dos carbonários portugueses. Mas nestas questões das informações sobre redes terroristas é normal a polícia saber muito, mas não saber o essencial: de provas incriminadoras, de datas, locais e acções específicas. Sem isso que importa que uns quantos tipos subversivos se reúnem de forma suspeita nuns barracões?

Há ainda os limites políticos da repressão. Embora a Lei "Celerada" de 1896 desse, num padrão típico, ao Estado Português poderes extraordinários em reacção ao desencadear de uma vaga terrorista, raramente as condições políticas e policiais para a utilização desses poderes arbitrários de detenção e deportação sumárias se mantêm por muito tempo.

É esta vaga internacional, e esta impotência que tornam difícil de sustentar a tese de João Madeira sobre o regicídio como o culminar de uma revolta social assente na pobreza do povo português. Não só o povo português já tinha sido bem mais pobre, como houve outras grandes vagas de protesto laboral e até mais organizadas e contra um regime mais repressivo. No entanto, em 1973, nem o PCP, nem mesmo os incipientes grupos armados, pensaram em matar Marcelo Caetano. Há que dar mais espaço ao exemplo dos regicídios exóticos. Há que dar mais espaço à ideologia, à doutrinação anarquista e republicana. Há que dar mais espaço à decisão individual de um Luz Almeida, Alpoim, Ribeira Brava, Franco, D. Carlos ou Buíça.

Muito rica foi a reflexão de Fernando Catroga (com abundantes referências internacionais) sobre o perfil do terrorista típico dessa mudança de século. Ele aliava ambição de fama - esta é a época de nascimento da imprensa de massas - com o ideal de martírio ao serviço da pátria oprimida. Central na legitimação do acto de outra forma criminoso estava a noção de tirania. Já o assassino de Lincoln a tinha invocado, gritando: "assim morrem sempre os tiranos!". O problema é que para muitos anarquistas do início do século XX não havia inocentes na sociedade burguesa!

Em suma, não se avançou para um consenso (atrever-me-ia a dizer, contra-factualmente) impossível e indesejável. E bom seria que as palavras iniciais de Fernando Rosas sobre uma visão plural de um acontecimento complexo continuassem a ser praticadas.

Certo, mesmo, talvez seja simplesmente o facto de que, quer D. Carlos, quer Buíça teriam visto (com justiça) a respectiva morte como um acidente de trabalho. Nem espantaria que o rei, caçador exímio, mostrasse admiração pela pontaria de outro atirador de eleição. Talvez aqui, no entanto, esteja a levar o contra-factual longe demais: quais seriam os pensamentos além túmulo de D.Carlos é ir um pouco longe demais para a história, mas parece-me ficar bem no espaço virtual de um blogue.

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