Quanto à série de Joaquim Furtado, A Guerra cumpriu o seu objectivo: juntar testemunhos nunca vistos. Nesse aspecto é mesmo notável. Continua a não ter análise histórica. Mas os historiadores que estão actualmente a trabalhar sobre o assunto (como eu) têm muitas razões para lhe ficarem gratos. E seria até bom que os muitos testemunhos recolhidos - de que certamente só uma pequena parte sobreviveu à montagem na série - fossem preservados e disponibilizados aos investigadoress (depois da série acabar, claro). Talvez se a RTP não se interessar pelo assunto, a Fundação Mário Soares pudesse pegar nesta arca de memórias.
O que dizer de mais particular sobre o primeiro episódio? Temos o espetáculo do terror racista da UPA contra portugueses e todos os negros não-bacongos em todo o seu esplendor. Porquê? Dizem os veteranos da UPA porque no colonialismo todos eram inimigos: os portugueses e os amigos dos portugueses, os homens, as mulheres e as crianças. Talvez. Ou talvez a UPA só tivesse mudado de nome (de UPNA - União dos Povos do Norte de Angola), mas continuasse a ser realmente um movimento tribal bacongo, como se veria nas suas divisões posteriores.
Uma outra pista essencial é dada por Holden Roberto: o seu grande inspirador foi
Franz Fanon, que até visitou a região para o aconselhar. Fanon defendia o terror racial, a violência contra os brancos é a única forma dos negros se libertarem realmente de séculos de subordinação e de qualquer complexo de inferioridade.
Este documentário torna portanto mais difícil pensar que o mesmo tipo de estratégia genocidária da UPA aconteceu numa explosão de anti-colonialismo espontâneo: as ordens mortíferas e o seu sentido são citadas a partir de documentos da época.
Quanto às queixas de faltas de tropas nas colónias, de faltas de pistas, de faltas de previsão dos acontecimentos apesar de anunciados por ameaças e avisos vários, de falta de preparação em que os testemunhos insistem sempre, mostram as fragilidades da aposta apenas no testemunho. Esse tipo de queixas são típicas destes conflitos (e algumas - a falta de meios - são típicas de todos os conflitos armads). A dificuldade em saber em que rumores acreditar, idem. Esta frágil ocupação é típica de todas as colónias europeias em África.
O que é atípico é que em alguns anos, a partir do final dos anos 50, e apesar da resistência (aliás também típicas neste tipo de situações) de muitas chefias militares convencionais, Salazar tinha garantido que havia muito mais tropas, algumas com preparação específica para este tipo de guerra, melhor armadas, e mais pistas de aviação do que alguma vez tinham existido na histórica colonial portuguesa. E se não havia mais era porque não se podia mobilizar o país da mesma forma sem haver guerra, e, sobretudo porque faltou disponibilidade dos nossos aliados tradicionais, EUA e Grã-Bretanha, para responderem aos pedidos de ajuda em meios militares e até em encomendas comerciais feitas por Portugal nestes anos. Suprema ironia é que nesse esforço Costa Gomes desempenhou um papel fundamental.
Veremos o que segue n'A Guerra e se consegue a difícil tarefa de manter algum equilíbrio e rigor numa narração dependente de testemunhos.
Etiquetas: Descolonização, Guerra, País das Maravilhas
0 Comments:
Enviar um comentário
<< Home