segunda-feira, julho 03, 2006

Liberalismo Realista

O Rui Albuquerque das Blasfémias escreveu um belo poste, amigável e filosófico, de resposta a esta minha provocação não menos amigável embora talvez menos filosófica. Sobre o cerne da argumentação nada a objectar: ou estou de acordo, ou quando não o estou inteiramente, parece-me assente em interpretações perfeitamente defensáveis. É uma consolação ver o Rui Albuquerque defender precisamente, por via da tradição liberal clássica, uma leitura apologética de (um certo) papel do Estado. Em nome de uma ideia de realismo liberal com que simpatizo (como afirmação das convicções e da possibilidade de que elas transformem as coisas, mas recusa da cegueira de forçar o mundo, desde já, a encaixar-se ilusoriamente nelas, custo o que custar).

Aceito e simpatizo com a existência de um realismo liberal que o Rui advoga - auto-limitado, muitas vezes designado como defensivo, de, possivelmente, Morgenthau a, certamente, Jack Snyder. Mas também há um realismo anti-liberal. Que nega a possibilidade de uma real cooperação entre Estados e a combate activamente como uma perigosa ilusão. Um exemplo extremo é o actual embaixador dos EUA na ONU, John Bolton, mas o próprio Vice-Presidente Dick Cheney ou Rumsfeld não andam muito longe disso. Bush filho tem dado, até muito recentemente, amplo espaço a essa corrente com os efeitos desastrosos que se conhece. Ou seja, a explicação liberal e racional do Rui Albuquerque para o papel internacional dos EUA esquece quem tem dominado a agenda em Washington desde 2000. Esquece que lhes interessa, acima de tudo, defender os interesses e a segurança dos EUA, de preferência por via militar. (Veja-se Charles Krauthammer que nos seus escritos faz dos EUA um Gulliver a precisar de se libertar dos liliputianos europeus! Ou a bem oficial Estratégia de Segurança Nacional dos EUA de 2002.)

Uma interpretação liberal do papel hegemónico dos EUA é plausível na sua relação com a Europa e o Japão durante o período da Guerra Fria e o início da pós-Guerra Fria (as presidências de Bush pai e Clinton.) Foi a pensar nessa época que Geir Lundestad cunhou a frase “império por convite”. Mas isso deixou de fazer grande sentido com Bush filho no poder. Como é que se pode falar de contrato quando de Washington mandam dizer que o que realmente interessa são alianças ad hoc, “coalition of the willing”, agrupamentos ocasionais de países avulsos dispostos a seguir a potência imperial até ao fim do mundo, haja o que houver? A política internacional reduzida a um Western. (Gosto, mas no cinema).

Ilustrando a dificuldade prática de aplicar estas nossas vãs filosofias, o Rui Albuquerque sendo elogioso da UE, no entanto parece equacionar qualquer reforço dos seus poderes ou instituições como uma traição do federalismo. O problema é que o termo federalismo sendo filosoficamente perfeito, é prática e politicamente ambíguo. Federaliza-se devolvendo poderes de um Estado centralizado (como a Espanha), ou federaliza-se reforçando uma estrutura confederal como a União Europeia? O critério da subsidariedade ajuda, em princípio, mas na prática não facilita muito as escolhas. Porque é disso que se trata: de escolher. Por exemplo, para muitos - como eu - escoulher deixar de continuar a depender excessivamente dos EUA, e assumir mais e melhor as responsabilidades pela defesa dos interesses e valores europeus, no que tenham de coincidente (espera-se que muitas vezes) e divergente (se preciso for) com os EUA.
Da mesma maneira não vejo coisa mais racional e liberal - estado mínimo e isso tudo - do que entregar cada vez mais à UE, em co-soberania, por exemplo, a responsabilidade pela defesa europeia: gastar-se-ia menos, a concentração de esforços garantiria maior rendibilidade do dinheiro empregue, e as ameaças são comuns de qualquer forma. Mas isto não é feito por que seria tocar no essencial da imagem tradicional da soberania estatal.

O que me parece evidente é que um liberal coerente, não tendo nada que ser anti-patriótico ou anti-americano, ou anti-europeu, em nome da defesa dos interesses bem entendidos das comunidades a que pertence, e dos valores universais derivados da dignidade da pessoa, deve combate o nacionalismo agressivo e o unilateralista, seja na Europa, seja nos EUA. Espero que, nisto, estejamos de acordo. (E vamos mas é todos ver a bola e dar largas ao nosso nacionalismo agressivo, mas com boas maneiras, se faz favor.)