segunda-feira, outubro 02, 2006

Estado Crítico


O suplemento cultural do DN publicou há umas semanas, dois interessantes depoimentos recolhidos pelo Pedro Mexia sobre a crítica e a sua influência, do Carlos Leone (que tem escrito frequentemente sobre o tema) e do Rui Tavares. Sobre isso, para citar Dupond (ou será Dupont?), sempre diria mais...

O tema da crítica sempre me interessou, mas também sempre me pareceu ter um lado um pouco bizantino. Desde logo, de que crítica é que se está a falar? Se da crítica de arte, sigo (se bem me lembro) a linha clara de um professor e historiador que muito admiro, Peter Burke, que defende que uma não pode existir sem a outra. Se em todo o lado há cultura, só existe arte onde existe crítica: onde se cria um campo reconhecidamente e explicitamente organizado em torno de critérios estéticos e da sua discussão.

Quando os artistas dizem que não ligam à crítica, quando os críticos se queixam de que têm pouca influência isso pode ser subjectivamente muito relevante, mas em termos de uma análise um pouco mais de fundo não tem grande sentido. Os artistas tiveram algum tipo de formação – nem que seja informal e auto-didacta – que não surge do nada, e foi orientada e está sustentado, mesmo que isso não seja explicitado, por um determinado discurso crítico. Sobretudo, os artistas não existiriam enquanto tal, se as suas obras não fossem vistas e comentadas com a especificidade de objectos de arte. Que liguem ou não ao que se diz sobre eles é, deste ponto de vista, relativamente pouco relevante. Os críticos podem queixar-se da sua impotência individual e presente, mas a sua existência, os seus debates e os seus consensos não deixam de ser fundamentais.

Outra questão, relacionada mas mais ampla, é a levantada pela teoria crítica da Escola de Frankfurt, de Horkheimer e Habermas. Portando, da linha de ensaísmo que a segue na defesa da ideia do intelectual pública que deve pensar o político, não de acordo com o que se denuncia como a conservadora e normal ambição académica de ajudar a orientar, e portanto sustentar, o estado de coisas vigente, mas sim de procurar formas de emancipação. Nos jornais e revistas de reflexão não me parece mal, traz mais diversidade. Na academia parece-me que se trata de recomendar o suicídio como remédio para o perigo da morte: como ela poderá estar politizada, então o melhor é politizá-la mesmo, mas no sentido certo. (Isto, claro, partindo do pressuposto de que a emancipação é algo simples de perceber e certo). A vaga de ensaísmo que daqui resultou tende, de facto, a adoptar uma postura, digamos que crítica, relativamente a toda e qualquer política vigente, a qualquer Estado existente. Não é propriamente de espantar que tal anarquismo intelectual, por muito interessante intelectualmente que (por vezes) seja, tenha pouca influência prática fora de movimentos de protesto (o que já é alguma coisa, o problema é quando alcançam o poder: lá se vai a magia da emancipação).

Trabalhei um pouco esta tema da influência dos intelectuais no campo específico das decisões da política internacional. Mas sobre isso prefiro não sintetizar. Prefiro deixar dois testemunhos interessantes. O primeiro é de Sir Lawrence Freedman que me disse – quando a Prospect o nomeou um dos 100 intelectuais mais influentes da Grã-Bretanha – que o problema de se saber quando é que se está realmente a influenciar alguém (no sentido de o fazer mudar de ideias) ou se está simplesmente a fornecer argumentos mais claros e vias mais racionais para fazer o que ele já queria fazer. O segundo é de Raymond Aron, que fazendo o balanço do peso de décadas de análise da política nacional e internacional na imprensa francesa dizia que não acreditava que fosse possível atribuir-lhe directamente grandes viragens na vida da França – caso da decisão de dar a independência à Argélia – pois a análise crítica, mesmo quando influente, funciona no médio e longo prazo, por agregação, ajudando a criar tendências em crescendo. (E ainda acrescentava que era sempre mais fácil dizer o que se devia fazer do que fazê-lo.)

Finalmente, e para voltar as (pre)textos originais, o Rui Tavares defende que os críticos portugueses, suponho que na imprensa, devem ser afoitos e investir temas em que não são especialistas. Ser uma espécie de voz da consciência pública que se questiona sobre todas as grandes questões. Eu até tendo a simpatizar com a intenção em abstracto. Desde que isso não traga implícita a noção de que a análise especializada não tem lugar na imprensa.O meu problema é o concreto português em que vejo uma imprensa dominado por um cronismo crónico mais ou menos piadístico, em que quase deixou de haver espaço para a análise, seja de especialistas, seja do tal discurso crítico realmente interessado em explorar campos que lhes são pouco conhecidos. Em que o que abunda é a invectiva, a excomunhão, o desprezo pelo conhecimento e a afirmação orgulhosa de um fanatismo ideológico cego e primário. Talvez seja isso que o público quer. É claramente isso que alguns editores de jornais têm querido. Basta ver quantos colunistas ou comentadores portugueses estão activos na política (nem todos maus, evidentemente, mas o ponto não é esse). Francamente parece-me fácil avaliar a qualidade ou influência desta «crítica»: apenas tende a reforçar e dar argumentos aos preconceitos dominantes, prega aos convertidos.
AGRACIMENTO - Ao Caspar David Frierich, onde quer que esteja, pela graciosa colaboração (até ver) na ilustração deste poste com Wanderer über Nebelfeld.

3 Comments:

Blogger Pedro Picoito disse...

Caro Bruno, se bem me lembro, a frase sobre a crítica e a arte não é do Burke, autor que também muito aprecio, mas do Gombrich. Am I wrong?

1:39 da tarde  
Blogger Cláudia [ACV] disse...

Bruno,gostei de ler estas tuas considerações. Quanto à intervenção pública não especializada, levantada pelo Rui Tavares e retomada por ti, tendo a ser muito céptica na sua aceitação. Regra geral, há tanta impreparação, tanta falta de trabalho de casa. Uma coisa é conversarmos ou postarmos uma impressão repentina, acerca de um artigo ou facto de que tomámos conhecimento, outra deveria ser escrever um artigo de opinião na imprensa, ou comentar na rádio ou televisão. Eu sinto que esta distinção entre "apreciação amadora" e "opinião trabalhada" é em Portugal cada vez menos considerada, que é o mesmo que dizer que encontro poucos intervenientes nos media clássicos que me pareçam falar com propriedade, com trabalho de casa feito. Independentemente da minha apreciação pelas suas posições ideológicas, duas figuras que raramente parecem ser apanhadas desprevenidas no que escrevem ou dizem são, por exemplo, Adriano Moreira e Ruben de Carvalho.
Custa-me dizê-lo, mas é só ler os principais jornais espanhóis, para não falar nos ingleses, italianos e franceses, e a diferença na fundamentação nas colunas de opinião, a transmissão de factos, de dados, é muito superior.
Não sei se foi sempre assim, ou se a bitola da opinião pública hoje é outra, se há mais exigência, mas torna-se difícil aceitar as generalidades de boa parte das figuras mediáticas - quantas vezes nos sentamos de volta do jornal ou frente à tv com dois ou três amigos, acontecendo um ser agrónomo, outro comerciante, outro bancário, e em conversa detectarmos rapidamente erros factuais e de análise, numa crónica ou num talk-show?

12:11 da manhã  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Acho que esse e realmente um problema serio. Tambem e verdade, para ser justo, que nem sempre sera facil encontrar especialistas interessados em falar claro (e capazes de o fazer). Mas aqui entra-se facilmente num ciclo vicioso. E acho que ha muito paternalismo neste imperio do soundbyte e da estrela mediatica.

11:13 da manhã  

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