"Multinacional" e "Ditadura"
Muito doutos, todos eles representam aquilo que de pior existe em Portugal. Isto é, a incapacidade para perceberem que qualquer sociedade é incapaz de funcionar quando as regras ou as leis existentes e previamente democraticamente discutidas e aceites por outras não são afinal para ser cumpridas. De facto, as regras antidemocráticas actualmente existentes e que gerem todo o “fenómeno” desportivo não foram arbitrariamente impostas mas sim livremente aceites. Têm a chancela, no caso do futebol, tanto da FIFA, como do Estado de Direito Democrático português e, obviamente, da FP e da LFP. É claro que podem (e devem) ser discutidas e, eventualmente, mudadas. Mas não me parece, por um lado, que seja boa política pretender mudá-las no meio de uma crise como a que existe. Não me parece que devam ser radicalmente mudadas. Finalmente, também não penso que os encarniçados defensores do Gil Vicente – uma espécie de clube Bosman, como os casos pudessem comparados – se interessem minimamente em avaliar o alcance das suas palavras, propostas e indignação, caso elas fossem não apenas escutadas como, sobretudo, postas em prática. Refiro-me não tanto às consequências imediatas – suspensão de equipas portuguesas e selecção nacional de futebol de todas as provas internacionais – mas a outro tipo de consequências.
Imagine-se o que seria o futebol em Portugal e em todos os países do mundo onde há ligas e/ou federações, a partir do momento em que fosse livre, discricionário, o recurso à “justiça” não desportiva para resolver pleitos desportivos, não desportivos ou semi desportivos – deixo desde já de lado a discussão da definição daquilo que deve ou deveria ser considerado desportivo, semi desportivo ou não desportivo. Por outro lado, imagine-se o mesmo tipo de solução para todas modalidades: do automobilismo ao andebol, do xadrez à canoagem, do halterofilismo ao judo, do atletismo à constelação de desportos de Inverno. Em primeiro lugar, e embora antecipadamente se pudesse sempre recorrer a uma justiça a justiça desportiva que continuava a existir, ela ficaria esvaziada nas suas competência e utilidade. Dificilmente seria possível impor limites ao recurso à justiça não desportiva em todos as situações. Desde a despenalização ou agravamento de sanções disciplinares a desportistas, ao dopping, passando por queixas contra arbitragens, tudo seria passível de recurso para tribunais comuns. Independentemente da modalidade, da competição da situação. Em segundo lugar, e como não existe um sistema legal universal, nem tão pouco um Direito universal, aquilo a que se assistiria seria a nada mais do que a uma gestão da justiça desportiva segundo princípios e regras de direito – e portanto sociais, económicas, políticas e culturais – completamente distintas. Far-se-ia essa gestão de acordo exclusivamente com o Direito local, regional, nacional ou internacional. Qualquer caso de justiça desportiva teria sempre um desenlace completamente distinto embora, ao menos no início, provavelmente muito curioso. No caso concreto que agora se vive e discute em Portugal – caso a FIFA acordasse naquilo que infrenes defensores da democracia e do Estado de Direito propõem – as soluções a que se chegaria seriam das mais diversas, sucedessem elas não apenas entre nós, mas também no Tonga, no Chile, na Califórnia, em Timor, na República Popular da China, na Roménia ou na Nova Zelândia. Liquidar-se-ia a “ditadura” da FIFA, faliria a “multinacional”, mas o futebol e o desporto em geral enquanto um dos mais importantes e interessantes fenómenos de criação de uma comunidade global certamente extinguir-se-ia. Por exemplo, e porque o Estado de Direito não tem nem pode ter limites, imagine-se o que seria, e ainda e só no domínio do futebol, pretender litigar nos tribunais comuns por imposição dos princípios do citado Estado de Direito – noção que não é universal, longe disso – um incidente que tivesse lugar durante uma competição desportiva com uma duração (relativamente) reduzida. Eram nomeados tribunais especiais? E estes seguiam que regime ou sistema de Direito? As competições eram suspensas enquanto as questões suscitadas eram julgadas? E se uma das partes insistisse em pôr em prática procedimentos que impusessem sucessivos adiamentos e recursos que, por absurdo, conduzissem um determinado processo ao Tribunal Europeu dos Direitos Humanos? A FIFA ou o Comité Olímpico Internacional, para citar apenas dois exemplo dos mais relevantes, não são nem ditaduras nem multinacionais. Tratam-se de organizações internacionais de desporto com um papel único à escala global. Nomeadamente, são instrumentos ímpares num processo absolutamente único de integração de uma comunidade ou sociedade internacional repleta de particularismos e particularidades (umas vezes saudáveis, outras antes pelo contrário). Nenhum dos seus membros o é por obrigação. Por outro lado, são organismos democráticos ainda que, naturalmente, imperfeitos. E não o são apenas para dentro e por dentro pelo facto dos seus líderes serem eleitos e as suas regras serem discutidas e aprovadas ou rechaçadas. São ainda democráticas porque as regras que produzem têm aplicação em Estados e sociedades democráticas que, naturalmente, jamais as aceitariam caso elas não cumprissem os mais elementares direitos, liberdades e garantias normalmente acauteladas pela tradição e pelo Direito.Pode ser que eu veja tudo mal, e se estiver tal for o caso gostaria que fosse demonstrado. Será pedir muito?
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