segunda-feira, setembro 04, 2006

Encore Esplanar: Salazarismo e Fascismo

Por especial e esplanado pedido aqui vai... Concordo com o Daniel Melo que uma coisa é o Fascismo italiano como regime e realidade histórica, outra o fascismo genérico, ou seja, a corrente ideológica que se pode deduzir desse modelo italiano. Qualquer tentativa de definir uma ideologia apresenta dificuldades e provoca inevitáveis controvérsias. Mas o fascismo é, por exemplo face ao comunismo, particularmente difícil de definir. Porque, mesmo quando se pensa apenas em Itália, escasseia material doutrinal e abunda o pragmatismo do regime. Não sou, no entanto, dos que consideram que fascismo só em Itália: precisamente porque, também aí, houve variações importantes entre prática e ideologia.

Conheço a interessante tese de Manuel de Lucena: o salazarismo como um fascismo sem movimento. E a ser fascismo, seria realmente isso. Mas, para mim, falar de fascismo sem partido de massas militante é aceitar uma noção tão difusa de fascismo que pode confundir-se com qualquer tipo de autoritarismo nacionalista de direita. Implica pôr de lado à partida aquelas que me parecem as questões centrais que essa ideologia coloca à história: a relação entre o chefe e o partido, entre o partido e o Estado. Implica esquecer que Salazar não rejeitou apenas a criação de um partido fascista, mas também o culto do estatismo totalitário amoral, o culto do chefe carismático acima do direito e da razão e em relação directa com a multidão. Construiu o regime (sobretudo e na maior parte do tempo) noutras bases.

Para mim não faz sentido ignorar que houve uma série de regime autoritários de direita que rejeitaram e reprimiram movimentos fascistas. Em Portugal, mas também na Áustria, na Roménia, na Hungria, as ditaduras de direita no poder reprimiram os partidos que imitavam explicitamente o fascismo italiano, dos «nossos» Camisas Azuis até à Guarda de Ferro. Estes fascistas genuínos, como era o caso de Rolão Preto, criticavam os ditos regimes como "centristas", moles, de meias-tintas. Em 1937, Salazar deu-se ao trabalho de publicar em francês para a Expo de Paris – a montra de todos os regimes europeus da época – um panfleto (traduzido sob o título Como se Levanta um Estado?) em que se demarca explicitamente do totalitarismo italiano e alemão.

Tal como o João Almeida, estou próximo das teses de Fernando Rosas quanto ao pluralismo (naturalmente com limites - desde logo a aceitação do poder ditatorial de Salazar - e inviesado para a direita) do salazarismo, em que conviveram diferentes tendências com mais ou menos peso em alturas ou áreas distintas. Os nacional-sindicalistas (ou fascistas portugueses) que aceitaram submeter-se a Salazar eram apenas uma dessas correntes que pesavam, mais ou menos, no Estado Novo. E esta corrente até teve relativamente pouco peso, se exceptuarmos o período da Guerra Civil de Espanha que constituiu um perigo iminente e vital para o regime e originou, por exemplo, o campo de concentração do Tarrafal e um investimento crescente na PVDE, antecessora directa da PIDE. Além disso, é preciso considerar que alguns dos membros mais destacados desta corrente nacional sindicalista evoluíram depois para posições diferentes, tal foi o caso, famosamente, de Marcelo Caetano.

Se calhar isto é muito confuso para certas mentes desejosas de um passado (e futuro?) a preto e branco, que preferem a equação simples: mau em política = fascista. De acordo com essa lógica assistismos agora ao espetáculo cómico dos pós-trotskistas neo-conservadores norte-americanos (o pós-trotskismo não é exclusivo do nosso Bloco de Esquerda!) a colocarem na boca de Bush a ideia de «fascismo islâmico». A ideia de que os ditadores têm de ser em tudo maus (não podem alfabetizar, electrificar ou construir auto-estradas) e serão sempre fascistas é uma ilusão confortável mas perigosa. Alimentar essa ilusão é um frete a que a História não se deve prestar.

LEITURAS RECOMENDAS: Dois volumes de síntese, do melhor da historiografia recente, fazem da crise do liberalismo no período entre as duas guerras um tema central: A Era dos Extremos de Eric Hobsbawm e, sobretudo, o magnífico Dark Continent de Mark Mazower (inexplicavelmente por traduzir em Portugal). Para aprofundar o tema do fascismo a amplíssima antologia comentada de Roger Griffin parece-me imbatível. António Costa Pinto escreveu dois livros essenciais sobre a relação entre Salazar e o Fascismo. E Robert Paxton veio renovar o tema no excelente The Anatomy of Fascism, em que dá a devida relevância ao conflito entre Salazar e os Camisas Azuis.

5 Comments:

Blogger Luís Aguiar Santos disse...

Concordo com quase tudo, excepto a questão da "direita". E, já agora, a propósito de Tarrafal etc. e tal, uma dúvida: a que inspiração "fascista" deveu a III República francesa uma colónia penal como a da Guiana, retratada na literatura no célebre "Papillon"? A questão não é a natureza dos crimes, mas o "conceito penitenciário".

3:31 da tarde  
Blogger CLeone disse...

Estamos todos de acordo, afinal. Só uma emenda: o primeiro parágrafo deste post responde a (algumas) perguntas que eu deixei ao BCR, apesar da remissão para o DM (com o qual estive de acordo nesta discussão). Já sobre o último parágrafo não sei a quem se dirige, mas na altura das declarações do Bush até deixei um Vox Populi a chamar a atenção para a expressão dele. Estamos msmo em sintonia...
Boas leituras,
CL

10:12 da tarde  
Blogger Fernando Martins disse...

Todos muito amigos. Assim é que eu gosto. Vamos lá fundar uma União "Sagrada", que também pode ser "Nacional", e salvar a pátria.
Era a brincar!

11:50 da tarde  
Blogger João Pedro disse...

Bom post, e boa bibliografia. Hobsbawn, apesar da sua influência marxista (o que faz com que seja liminarmente rejeitado por alguma direita mais primária), consegue traçar uma importante diferença entre os regimes autoritários europeus - Portugal surge como "estado corporativo de influência católica", embora surjam depois algumas comparações com o fascismo. Na Roménia, Codreanu, o líder da Guarda de Ferro, o mais radical dos movimentos de direita, acabou morto crê-se que por ordem do próprio Rei Carol.

12:03 da manhã  
Blogger bruno cardoso reis disse...

Caro Carlos Leone também me parecia que tinhamos chegado a certo consenso mínimo, mas como se queixou da minha falta de vontade de trabalhar o tema, achei melhor voltar ao local do crime para ter a certeza de que não escapava nada.
Bons livros e poucas uniões nacionais é o que desejo a todos.

10:52 da manhã  

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