terça-feira, agosto 29, 2006
Eu, como o mais velho aqui do Amigo do Povo, posso garantir que também me lembro bem da Cornélia e do concurso que lhe deu o nome. Tudo aquilo era deprimente – a RTP a preto e branco arrogantemente monopolista, o Raul Solnado, o Fialho Gouveia – paz à sua alma –, o Júri, os concorrentes e, sobretudo, o país. Um país tristonho e miserável, sem futuro, sem império e sem “Europa”, traumatizado pela ditadura, pelo PREC, pela falsa liberdade, pela inflação, pelo desemprego e pelas taxas de juro de quem nem vale a pena falar, já para não falar nas constantes desvalorizações do escudo de má memória. Na altura as mulheres portuguesas – e os homens – vestiam-se ainda pior do que hoje e fugiam do cabeleireiro, da depilação e da “manicura” como é suposto o Diabo fugir da cruz. Se alguém sente saudades ou nostalgia da Cornélia e daqueles tempos deprimentes em que o único leite com chocolate disponível no mercado era o UCAL, ou bem que lhe dou os sentidos pêsames, ou lhe recomendo uma rápida ida ao médico a ver se lhe param o evidente, rápido e preocupante processo de deterioração da memória. Eu não sinto saudades apesar de na altura ter para aí uns doze ou treze anos de idade. Se calhar era por isso. Tinha mais medo daquilo que futuro me parecia reservar do que hoje tenho da morte – mesmo agora que já comecei a dá-la como certa.
Agora que o post está bem escrito, isso sem dúvida que está. Não chega é para que reveja na mensagem. Que mil cowsparades floresçam!
9 Comments:
A minha memória do país real dessa época é muito distorcida. É verdade que não guardo boas recordações da instrução primária, mas, como só tinha aulas de manhã e as férias grandes eram mesmo grandes, tinha muito tempo para me divertir a ler e com as «aventuras» que ia inventando. Mas olha que nesse quadro tristonho que traças «a Gabriela» devia ser a excepção a cravo e canela. E pelo que li na Internet(não fiz o link porque era demasiado longo e complicado) a vaca Cornélia e a Gabriela foram dois programas de viragem da televisão portuguesa.
Não me lembro o suficiente para fazer uma crítica fundamentada do programa, mas creio que seria mais divertido e criativo que o «Big Brother».
A História não é linear. Agora temos o «Gato Fedorento», mas também muitas horas de telelixo.
O meu texto é uma homenagem à vaca Cornélia, mas também à cowparade, de objectos muito desiguais. Foi pena que não tivessem aproveitado a Cornélia para trabalhar/reflectir criativamente, na cowparade, a memória televisiva portuguesa.
Por acaso, tenho, como o Fernando, a memória de um país bastante tristonho e cinzento nesses tempos de 1977, 1978...
Caro João Miguel, posso garantir-te que quando a televisão era a preto e branco também havia bastante "telelixo". Era outro, mas também era lixo e entrava na casa das pessoas pela televisão. Desde logo nos telejornais que eram uma autêntica vergonha sem qualquer possibilidade de se poder melhor pelo facto da televisão ser monopólio estatal - ou seja, governamental.
Sim, mas tb. tenho a impressão, do pouco q me lembro, q aquilo era um programa um bocadinho menos deprimente e quadrado do q o habitual no comercialóide mainstream (eu estou à vontade, deixei de ver tv, já me dá água pelas barbas aqui a Internet, e o resto).
Ademais, o leite UCAL continua a ser imbatível, e não é a p/b, é castanho escuro. Bem bom!
Sobre vacas, é impressão minha, ou é uma obsessão aqui dos Amigos?
Boa bebida.
Se é ou não obsessão não sei. Mas que a vaca é um belo animal, parece-me quase insdiscutível. Afinal, sempre há boas razões para que me mantenha carnívoro. Quanto ao deixar de ver televisão tem muito que se lhe diga. É uma opção que não seria capaz de tomar. Não sou capaz de viver sem TV. Aqui como no estrangeiro (embora ande pouco por aí, como diria o outro). Parece-me cada vez mais a melhor e a mais barata forma de conhecermos uma boa parte daquilo que nos rodeia.
Rapazes,
não sei se isto é uma pergunta, se um comentário, mas sempre me intrigou o unanimismo acerca do cinzentismo social pré-25 de Abril. Até pessoas muito novinhas, como vocês eram por essa altura, falam hoje de uma época triste e cinzenta. Quando se diz isto, de que se fala, e por comparação com o quê? Do ambiente devido guerra à ultramarina? Do ambiente político? Estas são, obviamente, curiosidades de quem não tem experiência pessoal desse tempo. Eu sou do tempo em que uma certa enfermeira-parteira disse a uma certa progenitora para ser breve, que estava quase a começar um episódio Gabriela :)
Errata: onde está pré-25 de abril, leia-se pré-1980.
Cara Ana Cláudia,
Enquanto aguardo, com expectativa, as memórias do Fernando, vou escrever aqui algumas notas sobre a minha memória dos anos 70. A minha formação de historiador leva-me a travar uma frase do tipo «o tempo da infância é sempre o mesmo tempo». A verdade é que a minha namorada nasceu em 1980 e, olhando para as fotografias da sua infância, noto poucas diferenças em ambientes, nomeadamente o ambiente rural da Beira Alta. Foi curioso descobrir que a mobília dos nossos quartos em casa dos pais, em Lisboa, era igual. A nível da vida quotidiana, a ruptura ter-se-á dado no final da década de 80, quando o nível de vida dos portugueses se aproximou da média europeia.
Algumas crianças da minha geração eram militantemente levadas pelos pais a comícios. Outras tinham familiares exilados por causa da Revolução. No colégio em que passei a adolescência tinha alguns colegas da segunda categoria e nenhum da primeira. A minha família não pertencia a nenhuma destas categorias. É certo que tenho memórias do meu pai a levar-me às cavalitas, a uma manifestação; dos meus pais terem amigos barbudos e que tresandavam a tabaco; de ficar intrigado ao ouvir a notícia de que tinham descoberto uns pides num cano de esgoto. Apesar de ser mais visual do que auditivo, mais dado ao cinema do que à música, houve toadas que me ficaram no ouvido: «Uma gaivota voava, voava», «Canta, canta, amigo canta...».
Ao reflectir sobre a infância, ganho uma inesperada consciência de que, apesar de filho único até aos seis anos e vivendo em grande parte num mundo imaginado por mim, todas as minhas memórias só se compreendem delimitadas por circunstâncias datadas. Hoje as férias grandes não seriam tão longas nem tanto tempo passadas numa aldeia da Beira Alta, para a qual os meus avós se tinham retirado. Mesmo que convivesse com o meu avô, seria improvável que ele gastasse o tempo da sua reforma a cultivar uma vinha, para uma vez por ano poder encher uma Cuba e oferecer o fruto do seu labor às visitas da casa. Nem que disfarçasse mal o embaraço por eu, aos 14 anos, não apreciar tinto. E se os «primos da terra», afastados no parentesco mas próximos nas brincadeiras, emigrassem para os Estados Unidos seria provavelmente depois de tirarem uma licenciatura e não acharem emprego adequado em Portugal. Hoje também não alimentaria a minha imaginação, como tantas outras gerações, com as aventuras dos «Cinco» da Enid Blyton ou do «Sandokan», mas com o Harry Potter. Provavelmente não leria uma pequena colecção de livros da «Queres Saber» sobre figuras célebres, nem o meu pai me escreveria uma dedicatória ao terminar, aos oito anos, de ler a biografia do Benjamin Franklin. Andaria a ler coisas na Internet, talvez descobrindo na Wikipédia ou no Google Earth, de outro modo, o que li na «Fauna» ou nos livros de divulgação de Geografia.
Enfim, tive uma infância feliz. O Fernando não tem saudades dos seus 13 anos e eu também não, mas nessa altura eu estava na década de 80. A infância tinha acabado, a vida adulta parecia longe. As contradições entre os meus desejos e a minha vida concreta pareciam insuportáveis. A minha crise religiosa tinha um sentido muito mais violento e sério do que hoje posso recordar. Esta nota já vai longa e dava um post, mas prefiro deixá-la na caixa de comentários, um sítio mais discreto, como quem espreita da gaveta onde devia estar...
João,
gostei mesmo muito de ler esta tua nota-memória, obrigada por a partilhares.
Enviar um comentário
<< Home