terça-feira, agosto 22, 2006

Ainda a História virtual

Na viagem pela blogosfera no rasto da discussão acerca do revisionismo histórico, deparei com este texto de Luciano Amaral, que insinua argumentos contra-factuais para defender os seus pontos de vista. Antes de contestar Luciano Amaral, devo esclarecer que a minha acepção de revisionismo é a mesma de Daniel Melo. A revisão de teses é inerente ao trabalho de historiador e não por acaso foi escolhido o título de Penélope para uma conhecida revista de História. «Tudo o que é humano está sujeito a revisão» podia ser uma máxima filosófica e a História, tratando da vida de homens e mulheres no tempo que fazem seu, não pode deixar de se rever. Creio, no entanto, que o substantivo «revisionismo» deve ser reservado para textos imbuídos de intenção ideológica. Não há uma visão «pura», neutra, das coisas humanas, mas deve distinguir-se entre a intenção de conhecer o passado, fazendo o possível por ultrapassar condicionalismos culturais, ideológicos, etc, da intenção de tomar posição acerca de questões actuais usando o conhecimento do passado como arma de arremesso. Distinções idênticas podem estabelecer-se entre o verbo «negar» e o substantivo «negacionismo».
O artigo de Luciano Amaral formula um contra-factual explícito acerca do sentido da Guerra Civil de Espanha: o triunfo da revolta de 1934 daria origem a uma ditadura de esquerda. Teria sido entre esta hipotética ditadura e a histórica ditadura franquista que a Guerra Civil de Espanha se resolveu. Miguel Madeira refutou aquela interpretação da revolta de 1934 aqui.
Luciano Amaral parte do princípio de que uma ditadura de esquerda seria a única História alternativa possível à guerra civil de Espanha e é com base neste pressuposto que tece uma interpretação da História, rematando com uma série de reflexões pseudo-morais. Tanto na guerra civil de Espanha como na II Grande Guerra descortina uma «associação espúria entre democracia e comunismo» e declara: «A ambiguidade da II Guerra Mundial resultou na prática entrega de cerca de metade da Europa à tirania comunista. A ambiguidade da Guerra Civil de Espanha resultou na grande mentira histórica segundo a qual a vitória de Franco terá significado a derrota da democracia». É altura de fazer uma pausa e perguntar: e o que seria uma posição «não-ambígua» que evitasse a tirania comunista no pós-II Grande Guerra? Só me lembro de uma resposta: uma batalha conjunta dos países demo-liberais contra Hitler e Estaline. Para dar alguma verosimilhança a esta hipótese podemos imaginar que o pacto germânico-soviético se mantinha durante toda a Guerra de 1939-1945. O resultado mais provável seria a ocupação de toda a Europa ocidental e parte substancial de África pelos nazis. A menos que os Estados Unidos, a partir de 1945, usassem as armas atómicas para derrotar Hitler, arrasando e contaminando o território europeu.
Outra História alternativa era possível para a Guerra Civil de Espanha: a França, o Reino Unido e os Estados Unidos apoiavam o lado republicano, dando força aos sectores liberais como a URSS a deu aos comunistas, e garantiam que a vitória sobre Franco fosse uma vitória democrática.
A estas objecções virtuais, Luciano Amaral talvez me respondesse com o sentido trágico da História, como faz no final do seu artigo: «nem sempre é possível escolher um dos lados e ficar de bem com a nossa consciência. A esquerda e a direita que dela procuram tirar lições edificantes para o seu lado respectivo, como ainda hoje tristemente acontece em Espanha ou no Parlamento Europeu, deviam antes tirar lições edificantes acerca daquilo que cada um fez então. E depois, procurar não repetir.» Pacheco Pereira já respondeu aqui a esta tirada. Eu apenas lembrava que foi justamente a experiência da Guerra Civil espanhola que fez soar as consciências de George Orwell e de Bernanos. E se a II Grande Guerra não acabou com uma vitória de Hitler ou a destruição atómica da Europa foi porque a Guerra Civil de Espanha não se repetiu a uma escala maior.

4 Comments:

Anonymous Anónimo disse...

Parece que a escola do pseudo historiador Pío Moa tem pelo menos um discípulo - LA - em Portugal. Só posso lamentar e esperar que sejam poucos.

4:23 da tarde  
Blogger Pedro Picoito disse...

Excelente post, caro João. Mas se devemos guardar o nome de revisionismo para aa releituras da história com intenção "ideológica", o que é exactamente ideológico? Se eu, para contrariar a tese de Cunhal (ultra-ideológica) de que a crise de 1383-85 foi uma "revolução popular", disser que não senhor, foi uma manifestação de incipiente nacionalismo, isso é ideológico? A ideologia vem só da esquerda? A visão liberal da história (supondo que exista) será menos ideológica? Defender que a independência americana se deve mais ao anseio de liberdade das elites da Virgínia do que aos seus interesses comerciais não será ideológico?
Ficam as perguntas. Para nenhuma delas tenho resposta (para já).

6:46 da tarde  
Blogger Daniel Melo disse...

Estimulante post, este, parabéns.
Em relação ao comentário anterior: não se trata do historiador ter uma perspectiva cívica e filosófica da vida e da história, mas sim de trazer os seus interesses presentes de contenda político-ideológica para a escrita da História, em sacríficio desta. Desenvolvo um pouco esta difícil questão no Fuga para a Vitória.
Qt. à tese do Luciano Amaral nesse tx. «A única lição» (só o título é já um programa), temo que seja ainda mais radical do q o q apresentas: a ideia é mesmo q o q a esquerda fez na II República foi tudo anti-democrático, o q é inaceitável.
Para o tira-teimas, attente-se nesta passagem:
"Não há dúvidas sobre os procedimentos democráticos da II República. Mas também não há dúvidas de que, dominada pela esquerda republicana e o PSOE (um partido muito diferente do PSOE de hoje), a República viu esses procedimentos sistematicamente atraiçoados pela esquerda: quando a Confederação Espanhola das Direitas Autónomas (CEDA) ganhou as eleições de 1933, a esquerda inicialmente conseguiu impedi-la de governar. E quando a CEDA finalmente entrou no Governo (embora em pastas secundárias), uma coligação do PSOE com anarco-sindicalistas, comunistas e independentistas catalães e bascos juntou-se para desencadear uma revolta em 1934. Acaso esta revolta (de que resultariam cerca de um milhar de mortos) tivesse triunfado, ter-se-ia instaurado em Espanha uma ditadura de esquerda".
Compara-se isto com uma História não instruemntal da Espanha deste período e vejam-se as gritantes diferenças, ao nível dos factos e seu encadeamento, das correntes em presença, dos antecedentes e contextos interno e externo.
Tudo se torna bem mais complexo e distinto. Que diferença...

11:11 da tarde  
Blogger João Miguel Almeida disse...

Caro Pedro Picoito,

Eu também não tenho respostas para todas as perguntas. Não creio que a ideologia seja só de esquerda e que um historiador sem ideologia seja melhor do que um historiador sem ideologia e convicções. Em relação ao exemplo da crise de 1383-85, eu penso que, depois de José Mattoso ter mostrado como a nobreza portuguesa estava dividida, manter as teses de Álvaro Cunhal seria preterir a História em relação à ideologia. Mas penso que, teoricamente, um historiador que se identificasse politicamente com Cunhal podia adoptar as teses historiográficas de Mattoso por as considerar melhor fundamentadas.
Acho que o que distingue a História da ideologia não são necessariamente as teses, mas os métodos, a argumentação e fundamentação. A História toma o conhecimento do passado como um fim em si mesmo. A ideologia tem como fim mudar a sociedade e usa a História para cimentar a sua «visão do mundo». Uma não exclui a outra, mas quando a História se deixa instrumentalizar pela ideologia deixa de ser História.

10:22 da manhã  

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